4. PRINCÍPIOS GERAIS DA ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Na Constituição Federal brasileira de 1988, a ordem econômica está presente no Título VII, a partir do art. 170 até o art. 192. No entanto, os princípios fundamentais não constam apenas nesses artigos. Eles estão dispersos por todo o texto constitucional.[78]
4.1 FUNDAMENTOS DA ORDEM ECONÔMICA
Conforme o art. 170 da Constituição Federal brasileira de 1988, a ordem econômica tem como fundamento a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, com o objetivo de assegurar a existência digna aos cidadãos (dignidade da pessoa humana), conforme os ditames da justiça social e observados alguns princípios, tais como a soberania nacional (inc. I), a propriedade privada (inc. II), a função social da propriedade (inc. III), a livre concorrência (inc. IV), a defesa do consumidor (inc. V), a proteção do meio ambiente (inc. VI); a redução das desigualdades regionais e sociais (inc. VII), a busca do pleno emprego (inc. VIII) e o tratamento diferenciado para as empresas de pequeno porte (inc. IX).
O parágrafo único desse artigo dispõe que o exercício da atividade econômica é livre ao exercício dos particulares, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. A atividade econômica a que se refere este parágrafo único, bem como os princípios do art. 170, é a atividade econômica em sentido estrito, ou seja, a atividade sob o domínio dos particulares.[79] Esta não se confunde com a prestação de serviços públicos que, embora seja uma espécie do gênero atividade econômica (sentido amplo), é de domínio do Estado, regida pelo art. 175 da CF/88 e deve observar princípios outros, e não os do art. 170 da CF/88), tais como o princípio da continuidade do serviço público, da regularidade, da generalidade ou universalidade, modicidade, segurança, atualidade, adaptabilidade ou mutabilidade, eficiência e cortesia.
O artigo 170 da CF/88 dispõe como fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, ambos considerados, ainda, fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. IV, CF/88). A dignidade da pessoa humana, além de fundamento da República (art. 1º, inc. III, CF/88), corresponde como a finalidade a ser alcançada pela ordem econômica, de acordo com o ditame da justiça social. Assim, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2649, de relatoria da Min. Carmén Lúcia, entendeu que os valores constitucionais, extraídos do fundamento da República e do princípio da dignidade da pessoa humana, devem ditar a atuação instrumental do Estado para sua concretização. O Estado atua de forma instrumental para buscar concretizar os valores previstos e consagrados no texto constitucional.
4.1.1 Valorização do trabalho humano
Como já abordado acima, a valorização do trabalho é tanto fundamento da ordem econômica (art. 170, caput, CF/88) quanto da República (art. 1º, inc. IV, CF/88). O trabalho deve ser entendido em sentido amplo, como o conjunto de atividades realizadas por indivíduos com o objetivo de atingir determinada meta econômica ou não. Ressalta-se que o trabalho ao qual o art. 170 da CF/88 é apenas o trabalho com finalidade econômica, enquanto o trabalho previsto no art. 1º, IV, da CF incluiria qualquer tipo de trabalho, inclusive aquele sem finalidade econômica ou apenas de forma beneficente.
De toda forma, o conceito amplo de trabalho não se resume à figura do trabalhador, tendo, por outro lado, a livre iniciativa como uma expressão do trabalho e, assim, corolária da valorização do trabalho, do trabalho livre em uma sociedade livre e pluralista.[80] Dessa forma, a Constituição reconhece o valor social do trabalho e, dessa forma, da livre iniciativa, a qual exerce papel fundamental no desenvolvimento sócio econômico do país, seja no pagamento de tributos, seja na abertura de novos postos de trabalho, seja em fornecer à sociedade (o consumidor) as suas necessidades básicas, bem como satisfazer a sua vontade ao fornecer os produtos e serviços.
4.1.2 Livre iniciativa
A Constituição Federal de 1988 reconhece o sistema econômico capitalista.[81] A base deste sistema econômico é a liberdade econômica,[82] cuja livre iniciativa é um dos seus corolários. Ao afirmar a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica, a Constituição reconhece a “autonomia empreendedora do homem na conformação da atividade econômica, aceitando a sua intrínseca contingência e fragilidade,”[83] de modo a reconhecer a iniciativa privada como centro da ordem econômica, e não a atividade estatal. Por outro lado, é necessário ponderar, conforme observa o STF, que
o princípio da livre iniciativa, inserido no caput do art. 170 da CF, nada mais é do que uma cláusula geral cujo conteúdo é preenchido pelos incisos do mesmo artigo. Esses princípios claramente definem a liberdade de iniciativa não como uma liberdade anárquica, porém social, e que pode, consequentemente, ser limitada.’” (AC 1.657-MC, voto do Rel. p/ o ac. Min. Cezar Peluso, julgamento em 27-6-2007, Plenário, DJ de 31-8-2007.)
A livre iniciativa tem como uma dos seus principais corolários o princípio da livre concorrência (art. 170, inc. IV, CF/88).[84] Poderíamos dizer que o princípio da livre iniciativa e princípio da concorrência fazem parte da mesma forma, observado de lados opostos. Só há concorrência livre se for possibilitada a livre iniciativa; e se a iniciativa for livre aos cidadãos, a livre concorrência é uma consequência natural.[85] A livre concorrência pressupõe uma desigualdade no seu resultado, a partir de uma igualdade jurídico formal.[86]
E ainda: na Constituição Federal brasileira em vigor, o princípio da livre concorrência é um dos balizadores necessários para que a livre iniciativa possa corretamente atender à sua função social. Esse princípio impõe obrigações positivas e negativas aos agentes econômicos. Se de um lado permite a adoção de quaisquer técnicas lícitas de conquista de mercado[87] – para o que conta com a neutralidade do Estado –, de outro proíbe (e pune, se for o caso) a utilização de meios que falseiem a livre competição.[88]
Eros Grau afirma que a livre iniciativa deve ser entendida em sua dupla face[89]: enquanto liberdade de comércio e indústria (art. 170, parágrafo único) e enquanto liberdade de concorrência (art. 170, IV). O primeiro consistindo nas liberdades públicas de não sujeitar-se a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei e na faculdade de criar e explorar uma atividade econômica a título privado.
Quanto à liberdade de concorrência, pode ser entendido nos seguintes sentidos: faculdade de conquistar a clientela; proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência (liberdade privada); e neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos concorrentes (liberdade pública).[90] Este princípio, no sentido que lhe é atribuído – “livre jogo das forças de mercado, na disputa de clientela” -, supõe desigualdade ao final da competição, a partir, porém, de um quadro de igualdade jurídico-formal.[91] Nesse sentido, tem-se que a análise da livre iniciativa encontra necessária “complementação na ponderação do princípio da livre concorrência.” [92]
4.2 FINALIDADE DA ORDEM ECONÔMICA: A DIGNIDADE HUMANA
A dignidade da pessoa humana é o núcleo duro e a base de todos os direitos fundamentais. Ela consiste no “princípio axiológico fundamental e limite transcendente do poder constituinte” (metaprincípio).[93] Na Constituição Federal brasileira de 1988, ela é considerada como fundamento da República Federativa (art. 1º, inc. III) e, ao mesmo tempo, como a finalidade da ordem econômica (art. 170, caput). Dessa forma, ao mesmo tempo em que a República considera a dignidade da pessoa humana a sua base, o seu fundamento (princípio político constitucional conformador), a sua atuação na ordem econômica deve ser dar com o objetivo (princípio constitucional impositivo – Canotilho –, ou diretriz – Dworkin) de concretizar a dignidade da pessoa humana (norma objeto).[94]
A dignidade da pessoa humana, a partir do ensinamento de Kant, consiste em o homem não ser tratado como uma coisa.[95] O ser humano não pode ser tratado como um objeto, como um meio para a prossecução de fins de outrem, inclusive do Estado, ou mesmo para os seus próprios fins.[96]
A dignidade é um valor interno de cada homem, no qual a autonomia da vontade, atrelada à natureza racional e a liberdade individual, é o princípio supremo da moralidade.[97] Conforme ensina Jorge Miranda, a dignidade da pessoa humana é uma escolha individual, de forma que ela determina o respeito pela liberdade da pessoa, bem como pela sua autonomia. E, por isso, para sua concretização devem ser observados alguns pontos, dentre eles, a exigência de condições adequadas da vida humana (dignidade material) e a procura da qualidade de vida.[98]
Do ponto de vista material, a dignidade está atrelada ao mercado, e é necessário estar incluso nele para atingir a sua plenitude. Por isso, Hayek[99] entende que o mínimo existencial é encontrado no valor necessário para estar incluso no mercado. Do ponto de vista formal do ordenamento jurídico brasileiro, poderíamos dizer que o mínimo vital é deduzível a partir do salário mínimo: conforme o art. 7º, inc. IV, da CF/88, o salário mínimo deve ser “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.”
Por outro lado, em uma sociedade capitalista, para estar incluso no mercado e atingir a sua máxima dignidade é necessário trabalhar e buscar concretizar suas necessidades básicas.[100] Cabe ao Estado oferecer as oportunidades básicas para que cada cidadão possa, a partir daí, buscar garantir as suas necessidades. Para aqueles que não conseguem o básico para o seu próprio sustento e o da sua família, o Constituição prevê o sistema de assistência social, previsto nos arts. 203 e ss. da CF/88.
Entendemos a dignidade da pessoa humana como o processo final do desenvolvimento, como a expansão das liberdades substantivas – na vertente do ensinamento de Amartya Sen –, em que cada um busca a concretização de suas necessidades, valores e expectativas, a partir das oportunidades presentes na sociedade e ofertadas por estas ou pelo Estado. A dignidade humana está em o cidadão atuar de acordo com seus valores, ideologias e expectativas, a partir de suas capacidades e sem amarras em liberdades substantiva (ver o princípio do desenvolvimento).
4.3 PRINCÍPIOS DA ORDEM ECONÔMICA[101]
4.3.1 O princípio da democracia econômica (art. 1º, 3º, inc. IV e 170 da CF/88)
A democracia econômica pode ser entendida como a inclusão real de toda sociedade na ordem econômica (mundo do ser), mais especificamente no mercado, bem como a concretização dos direitos fundamentais. Entretanto, é necessário observar que a concretização de um Estado Democrático de Direito, bem como dos direitos fundamentais, especialmente os direitos sociais, custam dinheiro e, por isso, é fundamental a atuação tanto da sociedade como do Estado na ordem econômica. A atuação estatal na econômica tem de ter por finalidade a concretização dos direitos fundamentais e os objetivos traçados na Constituição, em seu artigo 3º; e como diretrizes, alguns princípios constitucionais, como a livre concorrência (art. 170, inc. IV, CF/88), a propriedade (art. 170, inc. II, CF/88) e sua função social (art. 170, inc. III, CF/88), o meio ambiente (art. 170, inc. VI, CF/88), dentre outros. Por outro lado, o Estado não pode exercer atividade econômica (art. 170 da CF/88, parágrafo único), salvo em casos excepcionais, com fundamento no imperativo da segurança nacional ou no relevante interesse coletivo (art. 173, caput, CF/88). Em virtude disso, o capital utilizado pelo Estado na busca para satisfazer suas finalidades decorre necessariamente do arrecadado pela tributação.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o Estado deve atuar na ordem econômica de forma a concretizar direitos fundamentais e os objetivos traçados na Constituição, ele deve atuar com vistas às diretrizes constitucionais e observar as garantias dos cidadãos contra o abuso de poder estatal, as quais atuam como limite ao poder deste. Para Carlos Mota Pinto[102] o princípio democrático no domínio da atividade econômica traduz-se: a) forma de concretização das noções ideológicas recebidas; b) processo de realização dos objetivos definidos; c) modo de execução das tarefas do Estado, através das indicações do sufrágio.
Entendemos que as noções ideológicas recebidas atuarão na escolha dos meios para a concretização dos objetivos constitucionais e dos direitos fundamentais e na forma de execução das tarefas estatais. De certa forma, a Constituição traça um horizonte a ser buscado, dentro de certo caminho (diretrizes). A ideologia dos governantes, exposta nas eleições e presentes no plano do governo, deve ser aprovada pelo crivo popular (art. 1º, parágrafo único, CF/88), bem como devem possuir certa eficiência (art. 37, caput, CF/88); salvo contrário, haverá responsabilização política. Não se pode esquecer que tais propostas e intenções devem estar atinentes aos mandamentos constitucionais, sob pena de serem declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.
Da mesma forma, o legislador infraconstitucional, fundado na sua legitimidade democrática,[103] vincula-se pelos fins constitucionais, assim como pelos seus princípios e diretrizes.[104]
4.3.1.1 Princípio da legalidade
O princípio da legalidade, presente no art. 5º, inc. II, CF/88, é uma garantia do cidadão contra o abuso do poder estatal. Por ele, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, ou, sob outro ponto de vista, à Administração Pública (sentido amplo) só é possível incidir sobre atuar onde houver prévia previsão legal, e dentro dos limites legais.[105]
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal entendeu que "aparenta inconstitucionalidade a resolução de autoridade estadual que, sob pretexto do exercício do poder de polícia, discipline horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais, matéria de consumo e assuntos análogos." (ADI 3.731-MC, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 29-8-2007, Plenário, DJ de 11-10-2007.) Da mesma forma, ADI 3.691, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 29-8-2007, Plenário, DJE de 9-5-2008.
O princípio da legalidade é, pois, uma decorrência do princípio da democracia econômica: se, por um lado, a regra da maioria exige a mediação da vontade da maioria para atuar em matéria de âmbito socioeconômico; por outro lado, consiste em uma garantia dos cidadãos contra o abuso do poder estatal, de forma a limitar a sua atuação.[106]
Com o Estado Regulador e o crescimento e o reforço das agências reguladoras – autarquias em regime especial -, as quais atuam no exercício do seu poder normativo com vistas a regular o mercado de forma técnica, a doutrina debruça-se sobre o instituto da deslegalização e sua constitucionalidade.
4.3.1.1.1 Deslegalização
A deslegalização,[107] cuja ideia básica foi desenvolvida na Itália, consiste na possibilidade de o Parlamento estabelecer princípios gerais e diretrizes sobre determinada matéria que não seja reserva absoluta de lei, porém já disposta em lei formal; e, nessa mesma lei deslegalizadora (superveniente), atribuir competência delimitada ao governo para editar decretos regulamentares, o qual pode acabar por ab-rogar a lei formal vigente[108].
A deslegalização, também chamada de delegificação, acontece, segundo J. J. Gomes Canotilho[109], quando há um rebaixamento formal da matéria pela lei, sem a sua regulamentação, para que esta matéria venha a ser tratada por regulamento. E ainda: tendo como limite as matérias constitucionalmente reservadas à lei.
Esse instituto, criado pela doutrina europeia, tem sido tema de grandes discussões entre os doutrinadores pátrios e estrangeiros. A doutrina contrária à tese fundamenta-se: a) a deslegalização atuaria delegando poderes do Legislativo ao Executivo, o que só seria possível em sede constitucional; nos demais casos, seria inconstitucional face ao artigo 25 dos Atos de Disposição Constitucional Transitória; b) com a degradação do grau hierárquico da lei, haveria malferição ao princípio da legalidade, pois possibilitaria a inovação na ordem jurídica através de regulamentos (autônomos), que, com força de lei, poderia, inclusive, revogar leis.
Para essa doutrina, haveria uma delegação primária do Poder Legislativo ao Executivo. Essa forma de delegação não seria possível em nosso ordenamento constitucional, pois possibilitaria ao Executivo elaborar regulamentos com força de lei (regulamentos autônomo), assim como o artigo 25, inc. I, da ADCT[110] haveria vedado expressamente a possibilidade de delegação de competência normativa do Legislativo ao Executivo[111].
Por outro lado, com o rebaixamento hierárquico, estar-se-ia prevendo a possibilidade de regulamentos autônomos, não admitidos na Constituição Federal de 1988. Tais regulamentos iriam poder inovar na ordem jurídica, ferindo frontalmente o princípio da separação dos poderes e o princípio da legalidade (art. 5, inc. II, CF/88), e criar direitos e obrigações não previstos em lei. E ainda: esses regulamentos teriam força, inclusive, para revogar leis.
Gustavo Binenbojm[112], com fulcro no princípio da legalidade, afirma que tal preceito é inconstitucional, no ordenamento jurídico brasileiro, tanto em seu aspecto formal quanto material. Quanto ao primeiro, isso corresponderia à possibilidade de o legislador alterar o procedimento legislativo previsto na própria Constituição Federal, configurando uma delegação legislativa inominada - incompatível com a carta da República. Quanto ao ângulo material, chegaríamos à própria crise da legitimidade democrática, pois possibilitaria às agências a não se sujeitarem mais às normas ditadas pelos cidadãos – ampliação discricionária.
Acompanhando o mesmo raciocínio, Letícia Queiroz de Andrade[113] fundamenta-se, principalmente, no princípio da legalidade (art. 5°, II, da Constituição Federal) para afirmar que regulamentos não podem gerar direito e obrigações e que não é possível haver delegação de competência (para a autora, a deslegalização implica delegação de competência legislativa). A doutrinadora filia-se à corrente de que aquela permissão geraria regulamentos autônomos[114], e que estes não são possíveis no sistema jurídico brasileiro.
No entanto, não concordamos com o posicionamento dessa doutrina. Primeiramente, quanto ao artigo 25 da ADCT, pensamos que essa argumentação não deve prosperar, haja vista a redação de este artigo dispor retroativamente, e não de forma ultrativa. Nesse mesmo raciocínio, Fabiano Mendonça[115] afirma que se deve contextualizar a interpretação da norma – realizar uma interpretação lógico-sistemática da Carta Magna: o art. 25 da ADCT tem como contexto a elaboração da Constituição, após um longo período ditatorial. Neste era possibilitada, através do Ato Institucional 05/68, a delegação de competência do Legislativo para o Executivo, assim como o Presidente da República tinha autorização não só para decretar o recesso do Congresso, como, inclusive, editar emendas constitucionais, como o fez. Dessa forma, não é possível realizar uma interpretação mais extensa, pois, assim, o próprio Congresso, livre e democrático, controlaria todo o seu exercício de poder.
Esse artigo dispõe que “ficam revogadas, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição (...) todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada ao Congresso Nacional” (grifo nosso). Por esse artigo, percebemos que há uma disposição voltada para o passado, inclusive a finalidade das normas do ADCT, fazer a transição entre os regimes constitucionais, do antigo ao novo. Não tem nenhuma validade esse artigo nos dias atuais, até porque ele concede o prazo de 180 (cento e oitenta dias) da promulgação da Constituição para a revogação do dispositivo que faça a delegação de poderes. E como sabemos, esse prazo já se exauriu muito tempo atrás. Dessa forma, não há mais a possibilidade de se invalidar uma lei delegante de poderes normativos com base nesse dispositivo.
No entanto, também entendemos a impossibilidade da delegação primária do Legislativo ao Executivo, contudo, esse não é o caso das leis que atribuem competência normativa às agências reguladoras. Se assim o fosse, realmente poder-se-ia dizer que aqueles entes estariam elaborando regulamentos autônomos, com força de lei. No caso das agências, seus regulamentos possuem natureza infralegal (competência normativa derivada), decorrente de uma delegação imprópria; permitido pelo ordenamento jurídico pátrio.
A lei deslegalizadora atua estabelecendo parâmetros e princípios (standards) a serem seguidos pelo regulamento, cuja vinculação será inerente, tanto ao quadro normativo legal (natureza infra legal) quanto aos princípios constitucionais, expressos e implícitos. A lei atribui ao órgão regulador “o papel de preencher a moldura com conhecimentos técnicos à luz da realidade em que a lei vai ser aplicada” [116]. Por isso que, para Rafael Carvalho Rezende de Oliveira[117], ao invés de se falar em delegação de poderes, seria mais adequado falar em atribuição de competência pelo legislador ao administrador.
Conforme Alexandre dos Santos Aragão[118], a possibilidade da deslegalização ocorre em virtude do princípio da essencialidade da legislação, no qual o próprio legislador, como uma política legislativa, tem a faculdade de transferir certas matérias para serem reguladas em outra sede normativa. Não há que se falar em transferência de poderes legislativos. Assim, o autor questiona[119]:
se este tem poder para revogar uma lei anterior, porque não o teria simplesmente para rebaixar o seu grau hierárquico? Por que teria de, direta e imediatamente revogá-la, deixando um vazio normativo até que fosse expedido o regulamento, ao invés de, ao degradar a sua hierarquia, deixar a revogação para um momento posterior, ao critério da Administração Pública, que tem maiores condições de acompanhar e avaliar a cambiante e complexa realidade econômica e social?
Diogo Figueiredo Moreira Neto[120] afirma que a deslegalização é uma decorrência do poder de disposição do Legislador, o que pode, por via legislativa, transferir um específico espaço decisório de matérias que lhe são constitucionalmente deferidas (sem cláusula de exclusividade) a certos órgãos e sob certos pressupostos. Nesse mesmo sentido, Aragão[121] ensina que o poder de disposição é prerrogativa do Legislativo, o qual permite atribuir um espaço normativo ao Executivo de matérias afeitas ao Legislativo. Contudo, a atuação da Administração continua em caráter infralegal, sem poder, no entanto, haver a revogação das leis por regulamentos.
Ora, se a própria Constituição prevê matérias reservadas à lei, as quais não podem os regulamentos adentrar em seu conteúdo, poderíamos entender, em uma interpretação a contrário sensu, que as demais matérias, não reservadas à lei, não há impedimento em haver regulamentação por dispositivo infralegal. Conforme ensina Eros Grau, “se há um princípio de reserva de lei - ou seja, se há matérias que só podem ser tratadas pela lei - evidente que as excluídas podem ser tratadas por regulamentos”[122]. Além disso, a própria lei deslegalizante tem a função de autorizar a disciplina da matéria por regulamentos, e somente naquelas matérias que não contemplem reserva de lei[123].
O Supremo Tribunal Federal (STF), no Habeas Corpus 30.555, Rel. Min. Castro Nunes[124], entendeu que o princípio da indelegabilidade (delegação normativa primária) não impede a delegação normativa secundária de certas matérias a órgãos do Executivo no que concerne a fatos e operações de natureza técnica. No Recurso Extraordinário nº 13.357, de Rel. do Min. Ribeira Costa, o STF entendeu que apesar de ser vedado ao Parlamento delegar a competência legislativa, é permitido a ele autorizar, via disposição legal, a Administração a “determinar fatos ou um estado de coisas de que dependa, nos termos que ela mesma estatui, a sua execução ou eficiência”.
Ademais, procedendo a análise dessa linha de defesa em conjunto com o disposto no artigo 174 da CF[125], entendemos que não há delegação de competência normativa primária na deslegalização, em virtude dessa norma ter conferido ao Estado a característica de agente normativo e regulador, devendo ser exercidas, na forma da lei, as funções a esses poderes conferidos.
Nesse diapasão, urge concluir que aquele dispositivo indica, em termos gerais, a faculdade do Poder Executivo atuar como regulador de mercados, distribuindo-se tal competência também pelos entes administrativos descentralizados, posto que o Texto Máximo não impõe exclusividade em prol do chefe da Administração. E também: a lei que cria a agência reguladora deverá determinar o seu campo de atuação normativa, que deverá, logicamente, fazer parte do seu campo de atuação.
Quanto à argumentação de na deslegalização os regulamentos terem poder para revogar leis, entendemos não encontrar sustentação razoável. A revogação da lei anterior não acontece no momento da expedição do ato normativo da Administração. Há uma “revogação diferida no tempo”, em que a própria lei deslegalizadora revoga a lei anterior, mas utiliza-se do ato normativo da agência para escolher o momento mais adequado para a revogação[126]. Ou seja, a revogação da lei anterior é operada por outra lei, qual seja a lei deslegalizadora: as agências, dentro de suas atribuições técnicas, escolherão o melhor momento para tal “procedimento”.
Seguindo essa linha de raciocínio, cabe colacionar o julgado do Supremo Tribunal Federal, em sede de Recurso Extraordinário, que admite a tese ora defendida:
EMENTA: TRIBUTÁRIO. IPI. ART. 66 DA LEI N° 7450/85, QUE AUTORIZOU O MINISTRO DA FAZENDA A FIXAR PRAZO DE RECOLHIMENTO DO IPI, E PORTARIA N° 266/88/MF, PELA QUAL DITO PRAZO FOI FIXADO PELA MENCIONADA AUTORIDADE. ACÓRDÃO QUE TEVE OS REFERIDOS ATOS POR INCONSTITUCIONAIS. Elementos do tributo em apreço que, conquanto não submetido pela Constituição ao princípio da reserva legal, fora legalizado pela Lei n° 4502/64 e assim permaneceu até a edição da Lei. n° 7450/85, que, no art. 66, o deslegalizou, permitindo que sua fixação ou alteração se processasse por meio da legislação tributária (CTN, art. 160), expressão que compreende não apenas a lei, mas também os decretos e as normas complementares (CTN, art. 96). Orientação contrariada pelo acórdão recorrido. Recurso conhecido e provido[127]. (grifo nosso)
Esse mesmo julgado (RExt n°140.669-1/PE), além da tese da deslegalização, admitiu, ainda que implicitamente, a tese da revogação diferida. Isso porque, apesar de existir o Decreto Lei n°326/67 fixando prazos específicos para o pagamento de IPI, o STF entendeu que este Decreto foi revogado pela Lei n°7450/86, mas que somente se operou após a edição da Portaria Ministerial n° 266/88.
No julgamento do AC n°1.193 QO-MC/RJ[128], o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional o procedimento licitatório no âmbito da Petrobrás estabelecido por Decreto presidencial (Decreto n° 2475/98) após a Lei n°9478/97 remeter toda a matéria para esta via. Ou seja, foi admitida, mais uma vez, a possibilidade da deslegalização.
Quanto à argumentação de malferição ao princípio da legalidade, entendemos que os regulamentos são, em maior ou menos escala, inovadores na ordem jurídica. E que o artigo 5º, inc. II, da CF/88 prevê uma reserva de norma, e não reserva de lei[129] (ver item anterior).
Com relação aos limites à técnica da deslegalização, além da reserva de lei específica, Rafael Carvalho[130] aponta, no ordenamento jurídico brasileiro, algumas outras. São elas: matérias reservadas à lei complementar e matérias que devem ser instituídas em caráter geral. E ainda: a medida provisória deslegalizadora deve respeitar tanto os requisitos de relevância e urgências, quanto o processo constitucional de legitimação da sanção legislativa; não podendo, logicamente, deslegalizar aquelas matérias as quais ela é vedada (art. 62, I, II, III e IV, da CF)
4.3.1.1.2 Princípio da participação
O princípio da participação atua de forma complementar ao princípio da democracia representativa, e vice-versa. O princípio da participação é observado em dois momentos da ordem jurídica econômica, tanto no processo normativo decisório das agências reguladoras[131] quanto na prestação da atividade econômica (sentido amplo) pelos particulares com vistas a concretizar a função social da propriedade e a concretizar a dignidade da pessoa humana do ponto de vista material, ao fornecer melhores produtos e serviços à sociedade (consumidor), principalmente quando atrelado a um mercado com forte concorrência.
Na regulação econômica, a competência das agências passa a ser amortecer tensões, supervisionar o jogo econômico, manter o equilíbrio do setor regulado, além de direcionar e harmonizar a atuação do particular para a consecução do interesse público, dentre outras. Para manter a neutralidade assumida e a posição externa no jogo econômico, elas atuarão mais como árbitro e como guia, do que como ator da regulação.
No entanto, se alega a ilegitimidade do processo regulatório pelo fato deste não ser realizado no âmbito do Poder Legislativo, em que estão situados os representantes eleitos pelo povo, no modelo de democracia representativa. Nas agências reguladoras, as decisões normativas são tomadas em sua própria seara, por um órgão colegiado no qual os seus dirigentes não são escolhidos diretamente pelo voto popular. Assim, diversos doutrinadores advogam o déficit democrático desse processo normativo, afirmando que os cidadãos estariam sujeitos a decisões não elaboradas por representantes do povo. Por outro lado, as normas elaboradas por esses entes regulatórios poderiam, inclusive, contrariar o interesse do Chefe do Executivo, eleito democraticamente para representar o povo. E não há que se falar em transferência democrática (transferência da investidura popular) uma vez que os dirigentes das agências são escolhidos pelo presidente e sabatinados pelo parlamento.
É através do procedimento participativo que a moral e os princípios serão incluídos e concretizados no sistema com o objetivo de se alcançar decisões mais racionais, justas, maior aceitabilidade na sociedade e eficiência. A participação permitirá maior ampliação sobre a gama de informações necessárias (sobre as expectativas) a decisão, através do debate público, para a ponderação da situação e dos direitos fundamentais e, assim, a concretização do interesse público através da norma criada pelas agências. Ou seja, a participação nos procedimentos discursivos possibilita ao Estado acolher, detectar, processar e atender as demandas plurais da sociedade, escolhendo, com vista ao interesse público, quais os valores, dentre aqueles gerados no debate público, devem ser institucionalizados.
Essa nova análise da legitimidade, decorrente dessa pluralização da Administração Pública, é essencial para a garantia dos princípios da liberdade, igualdade e dignidade humana, assim como ao princípio ético, moral e jurídico-constitucional da justiça, dentro da nova Administração Pública.
A moral é introduzida no sistema jurídico através de procedimentos racionais, abertos e argumentativos (Habermas). O direito e a moral completam-se reciprocamente, e, no Direito Administrativo, adquire notável importância através da positivação no caput do art. 37 da Constituição Federal de 1988. A moralidade embutida no direito positivo possui força transcendente de um processo que se autorregula e que controla a sua própria racionalidade. A legitimação decorre, pois, do processo de fundamentação (argumentativo), em um procedimento aberto aos interessados.
Caso apontado algum déficit de legitimidade seja em virtude de determinadas decisões serem tomadas em instâncias externas ao parlamento, na esfera do Poder Executivo, decorrente da descentralização política-administrativa, esse suposto déficit é fortalecido pelo acréscimo de legitimidade alcançado com a introdução dos atores sociais em um procedimento com abertura participativa voltada para a consensualidade.
Com foco no ordenamento jurídico brasileiro, no qual a Constituição Federal de 1988 atua como mecanismo de fechamento operacional do sistema jurídico, a democracia participativa é uma decorrência do princípio democrático (parágrafo único do art. 1° da CF), e é expressão da cidadania e do pluralismo político, ambos os fundamentos da República (respectivamente art. 1°, inc. V e II, da CF), assim como da consciência nacional. Sob outro ponto de vista, o princípio ora em comento consiste em uma evolução na gestão da coisa pública (princípio da República), no momento em que concede aos cidadãos a possibilidade de atuar na sua gestão.
O direito dos interessados participarem do processo normativo decorre tanto do princípio de participação popular (vertente do princípio democrático) e do princípio republicano quanto do devido processo legal constitucional (art. 5º, LIV e LV, CF/88) e o direito de petição (art. 5°, inc. XXXIV, “a”, CF/88).
No processo normativo das agências, o devido processo legal consiste em observar, dentre outras coisas, na observância do princípio da publicidade (art. 37, caput, CF) em todos os atos praticados por esses entes; a isonomia; o livre acesso às informações aos interessados (art. 5°, XXXIV, CF), o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF/88) e o princípio da motivação etc.
Nesse sentido, é possível afirmar o direito de participação como um direito fundamental decorrente de normas constitucionais. E, como direito fundamental, é dever do Estado, nesse caso específico das agências reguladoras, não só estar aberto à participação, mas buscar sempre a ampliação da participação dos interessados e dos seus meios nesse processo.
Como afirmamos acima, também entendemos o princípio da participação em os particulares fornecerem produtos e prestarem serviços à sociedade de forma a atender a sua função social, que pode ser observada em três momentos: no atendimento da vontade do consumidor; ao abrir novos postos de trabalho e no pagamento de tributos, essenciais para que o Estado cumpra a sua finalidade.
A democracia econômica tem por finalidade a inclusão de toda a sociedade no mercado. Este é entendido como um conjunto de atividades e relações interpessoais, com objetivo econômico. A atuação positiva do Estado na prestação de produtos e serviços só é legítima em casos excepcionais, quando os particulares, através de um sistema concorrencial, não possa prevalecer (v.g. monopólio natural) ou por questões de interesse coletivo ou segurança nacional (art. 173, CF/88). De outra forma, se a sociedade, por si só, se autorregula, através da sua livre vontade, de forma a atender suas necessidades, não é legitima, portanto, a atuação positiva estatal.
A atuação se dá, nesse caso, de forma negativa, quando os particulares atuarem com abuso de poder de poder econômico, tal como prever o artigo 173, parágrafo 4º, CF/88. Ou ainda, o papel do Estado será regulatório, com a função de fiscalização, incentivo ou planejamento (art. 174, CF/88), como afirmado cima.
Nesse sentido, a atuação direta dos particulares na prestação da atividade econômica não só favorece a melhora das relações interpessoais da sociedade e a ampliação do princípio da ampla concorrência, como também concretiza o princípio da livre iniciativa e da função social da propriedade, ao atender aos consumidores (sociedade) com melhores produtos e serviços – consequência natural da livre concorrência -, ampliar postos de trabalho e aumentar a carga tributária.
4.3.1.2 Princípio da subsidiariedade (art. 173, caput)
Com a mudança de atuação do Estado no domínio econômico – a passagem de um Estado Providência para um Estado Regulador – o princípio da subsidiariedade assume uma importantíssima feição.
A subsidiariedade é um corolário do princípio da livre iniciativa.[132] No âmbito brasileiro, a Constituição Federal de 1988 afirma que as atividades econômicas em sentido estrito devem ser livres aos particulares: “A exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei” (art. 173, CF/1988), ressalvados os casos expressos na Constituição. Ou seja, o princípio da subsidiariedade, previsto no art. 173 da CF/88, consiste em a atuação do Estado no mercado se dar em um papel secundário, em caráter excepcional.[133] Mais especificamente, o Estado deve atuar no mercado apenas naquelas situações em que o mercado não consiga se regular por si próprio,[134] a atividade não possa ser desenvolvida pelos particulares ou em que a atuação estatal direcionando, fiscalizando ou planejando a ordem econômica, exercida primariamente pelos particulares, seja essencial para concretizar os seus objetivos. Dessa forma, entende ser competência da iniciativa privada gerir as atividades geradoras de riquezas, com base nas submissões introduzidas pelo Estado.[135] E quando for necessária atuação estatal, ele deve atribuir a competência aos órgãos e entidades mais aptos a atuar com racionalidade, presteza e proximidade do cidadão. Com fundamento nesse ideário se propugna que o Estado se concentre nas tarefas consideradas essenciais ao interesse público, transferindo as demais funções para a prestação por particulares – desenvolvida com maior eficiência-, sob regulação estatal.
Jacques Chevallier entende o princípio da subsidiariedade como um princípio fundamental da sociedade “pós-moderna”, no qual há essencialmente três características: a supletividade, a proximidade e a parceria.
“A supletividade implica que o Estado, em lugar de se substituir aos atores sociais, encoraja as iniciativas que eles adotam naquilo que concerne à gestão das funções coletivas (...) e apoia os acordos que eles negociam para disciplinar suas relações recíprocas” (...) “a proximidade postula que os problemas sejam tratados primeiramente pelos cidadãos no nível em que eles se põem, evitando todo mecanismo sistemático de remessa para uma instância mais elevada” (...) “parceria traduz-se pela preocupação de associar os atores sociais à implementação das ações públicas: a gestão delegada se estende doravante a todos os níveis (nacional e local) e por todos os serviços (sociais, culturais, econômicos, mesmo os intrinsecamente estatais); e se vê o desenvolvimento de novas fórmulas de “parceria público-privada” (PPP). (...) “os recursos e o know-how dos particulares são desse modo colocados a serviço da ação pública”.
A privatização acaba por ser uma decorrência do princípio da subsidiariedade.[136] Transfere-se à iniciativa privada todas as atividades consideradas “indevidamente” prestadas pelo Poder Público.[137] O objetivo é impor uma maior eficiência à prestação dessas atividades e, por outro lado, liberar monopólios estatais para propiciar uma prestação em regime de disputa no mercado, o que, em virtude da concorrência, seria possível alcançar uma melhor prestação de serviços públicos, tanto na qualidade dos serviços quanto na redução dos preços.
Juan Martin Gonzáles Moras o coloca como princípio político de organização social: aquele irá discutir a relação indivíduo, sociedade e poder público, e redefinir o espaço em que cada esfera poderá atuar (no concernente à atividade econômica), sem invadir o espaço do outro[138]. Sob esse ponto de vista, não podemos deixar de esquecer que a atuação estatal tem em sua base o exercício da força e, por conseguinte, a restrição das liberdades dos indivíduos. A privatização, nessa perspectiva, acaba por ser uma forma de devolver à própria sociedade uma parcela da liberdade antes retirada pelo ente político. Se a própria sociedade consegue se auto-organizar e satisfazer suas necessidades, através do mercado, não há justificativa para prestação desse serviço ser realizado pelo poder público. E, assim, reduz-se a tensão entre os direitos de liberdade e propriedade e os direitos sociais.
4.3.3 Princípio do desenvolvimento econômico
A ideia de “desenvolvimento” surgiu, pela primeira vez em 1972, na Conferência de Estocolmo, em seu princípio 14. (princípio 14 da respectiva Declaração). Em 1986, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas reconheceu o direito ao desenvolvimento como um direito humano (fundamental) inalienável (art. 1º), confirmando que a liberdade de oportunidades para o desenvolvimento é uma prerrogativa tanto das nações quanto dos indivíduos que compõem as nações (art. 2º). O direito ao desenvolvimento é visto como um processo econômico, cultural e social, que visa ao progressivo aumento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base na participação ativa, livre e significativa, no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios resultados.
O “Relatório Brundtland”, em 1986, definiu desenvolvimento sustentável[139] como aquele modelo de desenvolvimento que “atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras de atenderem suas próprias necessidades”. O relatório parte do pressuposto da possibilidade e da necessidade de conciliar crescimento econômico e conservação ambiental e divulga um conjunto de premissas que desde então tem orientado os debates sobre desenvolvimento e questão ambiental. Assim, criou um enfoque conjunto do meio ambiente e do desenvolvimento, denominado desenvolvimento sustentável que, tendo como ideia básica a chegada a uma economia mundial sustentável, passou a se considerar a ideia de desenvolvimento sustentável não somente como um conceito, mas como um princípio do direito internacional contemporâneo – incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro em face do art. 5, parágrafo 2º, da Constituição Federal.
Em 1993, a Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, reafirmou, na parte I, nº 10, que o direito ao desenvolvimento seria um direito universal e inalienável e parte integral dos direitos humanos. Dessa forma, o “desenvolvimento” passa a ser visto, pela comunidade internacional, como a síntese de todos os direitos humanos – tanto coletivos quanto individuais –, através da inter-relação e interdependência de todos os direitos humanos, na compreensão de processos sociais, econômicos, políticos e culturais, em detrimento de direitos humanos individualistas, estatistas e formalistas. Oliveira, Mendonça e Xavier[140] afirmam que
O direito ao desenvolvimento é uma síntese dos direitos fundamentais, na exata medida em que aglutina a possibilidade de o ser humano realizar integralmente as suas potencialidades em todas as áreas do conhecimento. Pode-se dizer que ele é o marco caracterizador da nova conjuntura de direitos (como a liberdade e a igualdade material noutras eras) e tem como elemento fundamental de seu regime o acesso a políticas públicas.
Conforme o preâmbulo da Constituição Federal de 1988, esta Carta é promulgada para instituir um Estado Democrático de Direito, com o objetivo de assegurar, dentro de uma sociedade fraterna e pluralista, “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”. Um pouco mais a frente, o artigo 3º da Carta Magna dispõe como objetivo da República Federativa do Brasil a garantia do desenvolvimento nacional (inc. II) e a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” (inc. I); e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (inc. III).
Ademais, para compreender o princípio do desenvolvimento em um Estado Democrático de Direito, a doutrina do indiano Amartya Sen é fundamental.
Amartya Sen[141] vê o desenvolvimento como um processo de expansão das liberdades substantivas dos indivíduos, os quais devem atuar como agentes livres e sustentáveis. As liberdades substantivas correspondem à capacidade dos indivíduos de fazerem escolhas livres e exercer sua cidadania, a partir das oportunidades oferecidas. Para isso é necessário remover as amarras privativas da liberdade – os entraves que os impedem de agir de acordo com as suas vontades, suas próprias escolhas –, possibilitando a presença de fatores determinantes para aquela expansão, tais como os fatores sociais e econômicos (ex. serviços de educação e saúde) e os direitos civis (ex. liberdades para participar de discussões e averiguações públicas)[142].
Duas razões fazem da liberdade individual o ponto nuclear do processo de desenvolvimento: a) razão avaliatória: aferição acerca da expansão das liberdades públicas das pessoas. Uma sociedade deve ser avaliada a partir das liberdades substantivas que seus membros usufruem. Assim, ter mais liberdade é importante para o indivíduo tanto como pessoa quanto para a sociedade, em virtude dos resultados valiosos que poderão ser atingidos; b) razão da eficácia: abordagem acerca das relações empíricas relevantes, relações mútuas entre os diversos tipos de liberdade. Mais liberdade significaria uma melhora no potencial das pessoas para cuidar de si mesmas – expansão das liberdades individuais –, e para influenciar o mundo, pois ajuda a tomar disposições sociais mais apropriadas e eficazes[143].
Isso porque há uma relação cíclica entre as liberdades e o desenvolvimento: enquanto a liberdade é fundamental para o desenvolvimento, este, por sua vez, assegura e fortalece as demais liberdades. Assim, as liberdades devem ser vistas tanto como o meio (instrumento, método) do desenvolvimento quanto como o seu fim primordial. Ou seja, a liberdade é analisada sob dois aspectos: a) como um meio de desenvolvimento (papel instrumental): no qual se refere à “permissão” da liberdade de ações e decisões; e b) de oportunidades reais ou do fim primordial (papel constitutivo), decorrente de circunstâncias pessoais e sociais; da possibilidade da pessoa fazer escolhas e exercer a cidadania.
Em sentido contrário, a privação da liberdade pode ser decorrente tanto de processos inadequados quanto de oportunidades inadequadas que as pessoas têm para realizar o mínimo que gostariam[144].
O papel constitutivo da liberdade diz respeito à importância da liberdade substantiva na melhora da vida humana (ex. saúde, moradia, segurança, qualidade de vida), incluídas, assim, as capacidades elementares, as capacidades para realizar suas próprias vontades, tais como a participação política e a liberdade de expressão[145].
Quanto ao aspecto instrumental da liberdade, este consiste na forma como os diversos direitos, bens e oportunidades se relacionam para a expansão da liberdade humana (constitutivas) e para a promoção do desenvolvimento[146].
Em suma, podemos afirmar, com base na doutrina de Amartya Sen, que o desenvolvimento é o processo de expansão das liberdades individuais (substantivas), em que para essa expansão é fundamental a ampliação das liberdades instrumentais e a retirada de certas amarras da liberdade, como, por exemplo, a fome, educação, saúde, a falta de moradia, a insegurança etc.
4.4 PRINCÍPIOS EXPRESSOS NO ART. 170 DA CF/88
Os princípios do artigo 170 da Constituição Federal de 1988 apresentam uma dupla função: a) dar forma a ordem econômica do ser, ao estabelecer o sistema econômico adotado pela norma fundamental, bem como suas bases; e b) estabelecer diretrizes de atuação ao Estado na busca pela concretização dos objetivos da República.
Primeiramente, o princípio da livre iniciativa (art. 170, parágrafo único, CFB/88), a propriedade privada (art. 170, inc. II, CFB/88) e o princípio da livre concorrência (art. 170, inc. IV, CFB/88), em uma interpretação sistêmica, podem ser entendidos como princípios que dão forma a estrutura da organização econômica do Estado, de modo a definir o sistema econômico adotado (princípios constitucionalmente conformadores, na formulação de Canotilho); bem como estabelecem limite – o núcleo da liberdade que não pode ser restringido – à atuação estatal do Estado na sociedade e nos direitos fundamentais de primeira dimensão (princípio garantia, na formulação de Canotilho).
Por outro lado, conforme já definiu o Supremo Tribunal Federal, o princípio da livre iniciativa, bem como os demais princípios citados acima, não configuram uma liberdade ilimitada. A livre iniciativa deve ser entendida como uma cláusula geral, cujo conteúdo deve ser preenchido pelos demais princípios previstos nos incisos do art. 170 da CF/88. Ou seja, “Esses princípios claramente definem a liberdade de iniciativa não como uma liberdade anárquica, porém social, e que pode, consequentemente, ser limitada.” (AC 1.657-MC, voto do Rel. p/ o ac. Min. Cezar Peluso, julgamento em 27-6-2007, Plenário, DJ de 31-8-2007.)
Nesse sentido, apesar de a Constituição Federal Brasileira de 1988 ter adotado o regime capitalista, ele prevê diversos valores que não podem ser desprezados na atividade econômica, verbi gratia o meio ambiente (art. 170, inc. VI, CFB/88) e o consumidor (art. 170, inc. V, CFB/88), de modo a criar obrigações ao Estado de proteção desses valores (princípios constitucionais impositivos, na formulação de Canotilho, ou princípios diretrizes, na formulação de Dworkin).[147] Esses princípios – direitos fundamentais de 3º dimensão – justificam/legitimam a atuação estatal na ordem econômica e, por conseguinte, a restrição de direitos, especificamente os delineados nos parágrafos anteriores.[148]
De outra forma, o art. 170 prevê, ainda, típicos princípios que são programas de atuação do Estado (princípios impositivos, na formulação de Canotilho, e princípios diretriz, na formulação de Dworkin). Especificamente, estamos a tratar do princípio da redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, inc. VII, CFB/88) e o princípio da busca do pleno emprego (art. 170, inc. VIII, CFB/88). Observe que o princípio do inc. VII do art. 170 da CFB/88 também está previsto como um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, inc. III, CFB/88).[149] A Constituição, ao estabelece-lo como princípios do art. 170, reitera a sua diretriz e obriga o Estado a ter esse norte na sua atuação do Estado na economia, ou seja, uma diretriz que deve pautar a intervenção do Estado no sistema capitalista, o que justifica e legitima a restrição estatal nos direitos de liberdade e propriedade.
A Constituição, assim, prevê diversos princípios a serem observados pelo Estado na sua atuação infraconstitucional, através dos seus poderes. A Constituição Federal Brasileira prevê os princípios de forma aberta, a possibilitar aos governos a moldura da ordem econômica a depender da época e da necessidade, ora mais interventiva ora mais liberal.
O papel do Judiciário ganha deveras importância em razão de ser imprescindível o choque de princípios na atuação infraconstitucional do Estado, bem como na atuação de controle sobre governos que tenham uma vertente ideológica mais extremista e busque atuar fora dos preceitos constitucionais.
Dessa forma, o Judiciário deverá adotar, em diversos casos, a técnica hermenêutica da ponderação, em razão do choque de princípios constantes no art. 170 da CFB/88. A ponderação de valores ou ponderação de interesses é técnica hermenêutica própria quando há conflito de princípios e casos difíceis (“hard cases”), no qual seja inadequada a subsunção.[150] Esta técnica hermenêutica procura estabelecer, no plano filosófico, o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos e a preservação, tanto quanto possível, do núcleo mínimo do valor que esteja cedendo passo; seus balizamentos devem ser o princípio da razoabilidade/proporcionalidade.[151]
O autor[152] afirma que no processo hermenêutico, para que haja a ponderação, são necessárias algumas etapas: 1) identificar os comandos normativos ou os enunciados normativos em conflito; 2) examinar as circunstâncias concretas do caso e suas repercussões sobre os elementos normativos (identificação dos fatos relevantes), daí se dizer que a ponderação depende substancialmente do caso concreto e suas particularidades; 3) a fase da decisão – se estará examinando conjuntamente os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos sobre eles, a fim de apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diferentes elementos em disputa. E ainda: a proporcionalidade/razoabilidade é o fio condutor de todo esse processo intelectual.
O princípio da proporcionalidade/razoabilidade[153] é considerado um princípio implícito na Constituição, decorrente do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CF/88) e do princípio do devido processo legal (art. 5º, inc. LIV, CF/88), e concretizado na Lei nº 9.784/99, em seu art. 2º, parágrafo único, inc, VI (adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público). Esse princípio objetiva garantir a precisão da atividade estatal, assim como limitar a sua atuação além do essencial, do necessário para atingir determinado fim (relação meio e fim).
Além da relação entre meio e fim, poderíamos afirmar que a razoabilidade/proporcionalidade implica uma relação de fato, meios e fins[154]. Conforme Teoria Tridimensional do Direito[155], “a norma jurídica é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um caminho, devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor.”[156] Ora, a produção da norma jurídica decorre de um conhecimento da realidade (fato) em direção a atingir determinado interesse previsto pelo ordenamento jurídico (valor). A norma, assim, deve ser razoável/proporcional com vistas a atingir a sua finalidade pública (interesse público), a partir de uma realidade (fato) preexistente.[157]
Por isso, a importância cada vez maior de a ciência jurídica dialogar com as demais ciências, principalmente a economia, para buscar os meios mais eficientes de atingir a sua finalidade, de modo a emanar normas razoáveis/proporcionais. Se a forma da ordem econômica está pautada na liberdade econômica, embora como cláusula geral a ser limitada em razão dos demais princípios da ordem econômica, essa restrição à liberdade deve se dar de forma razoável, o que implica, por conseguinte, uma análise dos meios mais eficazes a atingir os valores públicos (interesse público) consagrados pelo ordenamento jurídico.[158]
O princípio da razoabilidade/proporcionalidade deve ser entendido, assim, como elemento disciplinador do limite (material) à competência institucional atribuída aos órgãos estatais de restringir a área de proteção de direitos fundamentais[159]. Ou seja, segundo Dimoulis e Martins,[160] a razoabilidade corresponde aos limites externos da discricionariedade, isto é, da liberdade de decisão do aplicador-concretizador[161] desses direitos.[162]
Para que uma norma seja razoável/proporcional é necessário a sua análise através dos seus três subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade sem sentido estrito.[163] A adequação consiste na possibilidade de a medida alcançar de forma eficaz o fim pretendido. Humberto Ávila[164] afirma que para se considerar uma medida adequada é preciso realizar uma análise acerca dos meios disponíveis e dos fins pretendidos, em seu aspecto (quantitativo), qualitativo (qualidade) e probabilístico (certeza).[165] Alexandre dos Santos Aragão[166] afirma, pois, que “a restrição à liberdade do mercado deve ser apropriada à realização dos objetivos sociais perquiridos.”[167]
O elemento da necessidade pressupõe a adequação e acrescenta que, apesar de a medida ter de atingir de forma eficaz o fim pretendido, ela deve ser a menos restritiva aos direitos fundamentais, sobretudo a liberdade. Surge, assim, a questão das soluções alternativas: dentre as diversas soluções possíveis de serem adotadas, deve-se buscar a mais suave às liberdades dos particulares, através de duas etapas de investigação: 1º) o exame da igualdade da adequação dos fins, no qual se verifica “se os meios alternativos promovem os mesmos fins”; e 2º) o exame do meio menos restritivo, “se os meios alternativos restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente afetados.”[168]
Nesse elemento, há o exame entre os motivos e o objeto do ato: avalia-se se os pressupostos do motivo justificam o conteúdo do ato praticado[169]. Ou seja, na necessidade não se aufere se os motivos existem, se são insuficientes e/ou adequados nem, ainda, se o objeto é apto a atender o interesse público; mas, sim, a relação entre o motivo e o conteúdo jurídico da norma. E assim que as razões de sua existência não puderem mais ser justificadas, tanto em seu aspecto temporal quanto material, a medida deve ser anulada[170].
A proporcionalidade em sentido estrito (ou proibição do excesso) deve buscar a relação específica entre o meio e o fim, a ponderação dos bens e dos interesses e a repercussão da norma para os direitos fundamentais[171]. Não basta a medida ser eficaz e a mais suave na concretização do interesse público, ela deve ser “justificada” em relação ao interesse público almejado (“valer a pena”)[172]. Aragão ensina que “a restrição imposta ao mercado deve ser equilibradamente compatível com o benefício social visado.”[173]