INTRODUÇÃO
Desde a antiguidade a violência contra a mulher está presente na sociedade, que sempre atribuiu um papel coadjuvante à figura feminina. Ao longo da história, os registros encontrados sobre a violência de gênero assumem várias formas e são cometidos por diversos agentes. Seja pelo Estado, que em muitas partes do mundo ainda não garante direitos iguais a homens e mulheres, seja pela Igreja, ou ainda pelas Famílias – que reproduzem o modelo patriarcal adotado ao longo dos séculos – o fato é que as mulheres sofrem diariamente a consequência da institucionalização da violência, condicionada ao simples fato do ser humano pertencer ao sexo feminino. As consequências históricas desta disparidade de gênero refletem diretamente na aplicação do Direito, sobretudo nos casos de violência doméstica, como será observado neste artigo.
A violência de gênero, portanto, denota as agressões físicas, psíquicas, sexuais, morais e patrimoniais praticadas pelo homem como um agente agressor que anseia dominar, disciplinar e intimidar a mulher. Isto se observa seja nos espaços privados, fato com o qual nos deparamos geralmente com relacionamentos afetivos, ou até mesmo nos espaços públicos, onde o gênero interfere no gozo dos direitos do cidadão.
Ao longo das últimas décadas o Brasil obteve alguns avanços legislativos no intuito de combater a violência doméstica, principalmente com a aprovação da Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. O principal objetivo do legislador foi o de prevenir e coibir a violência doméstica familiar contra a mulher, adotando medidas como a criação dos Jufam (Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher) e permitindo a prisão preventiva do agressor nas hipóteses abrangidas também pelo art. 312 do Código de Processo Penal.
No ano subsequente a aprovação da Lei Maria da Penha, os índices de violência doméstica e familiar apresentaram uma ligeira redução. Entretanto, o que parecia o início de uma nova era para as mulheres brasileiras tem se tornado em mais uma “lei pra inglês ver”, considerando que desde 2008 os índices de violência contra as mulheres aumentam exponencialmente. O que se observa na prática é a ineficácia das ferramentas legislativas para conter os abusos e opressões, seja pela falta de investimento em criação de mais Jufams e Delegacias de Proteção à Mulher, ou ainda pela falta de monitoramento do poder público.
O fato é que a Lei Maria da Penha não foi suficiente para reduzir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher e que devem ser adotadas medidas eficientes para conter o avanço desta violação que atinge os direitos fundamentais do ser humano.
Neste sentido, será verificada a possibilidade da aplicação da mediação penal como forma de resolução de conflitos que surgem no âmbito familiar, e as possíveis consequências de sua utilização em conjunto com as medidas previstas na legislação em vigor.
1. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA NO COMBATE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
A luta das mulheres por direitos iguais e o combate a violência doméstica e familiar é histórica e teve os primeiros avanços graças as articulações dos movimentos de mulheres e feministas realizadas internacionalmente a partir da década de 1970. Neste sentido, em 1975 a Organização das Nações Unidas (ONU) abriu a década da mulher, declarando aquele ano como o Ano Internacional da Mulher. Esse período deu início ao processo de construção histórica dos direitos das mulheres e colocou na pauta das discussões da sociedade as questões que afetavam as mulheres. A temática da violência contra as mulheres, principalmente, a violência doméstica e familiar, passou a ser uma das prioridades, chegando a ser definida como “carro chefe” das reivindicações feministas da década de 1980.
Porém, foi somente com a promulgação da Constituição Federal/1988 que foi garantido a igualdade plena de direitos entre homens e mulheres. O texto da Carta Magna, que ficou conhecida como “Constituição Cidadã” está repleta de institutos que visam garantir a proteção das mulheres.
A Constituição Federal vigente presta um importante papel na garantia dos direitos humanos das mulheres brasileiras, desde a sua promulgação até as Emendas que vem sofrendo. A EC n.º 45/2004, principalmente, trouxe um avanço incontestável para assegurar a finalidade do processo para as causas que se referem à violação dos direitos humanos. Isto só é possível porque os direitos fundamentais foram elevados à categoria de cláusulas pétreas perante a CF/88, portanto, formam um núcleo imodificável. É mais uma forma de tentar erradicar não apenas a violência cometida contra a mulher, mas, acima de tudo, erradicar a impunidade, tão presente nestes crimes motivados pelas questões de gênero.
Apesar dos ideais de igualdade e dignidade introduzidos pela Constituição, os avanços legislativos quando o tema é violência contra a mulher, principalmente no âmbito da violência doméstica, não surtem os efeitos esperados. Fatores sociais, culturais e institucionais sempre dificultaram o acesso à justiça para mulheres que são vítimas de agressão, pouco importando a classe social ou escolaridade.
Aliás, a violência doméstica e familiar é um fenômeno mundial, que independe da riqueza e do grau de desenvolvimento da nação, do nível de escolaridade dos envolvidos, do tipo de cultura – ocidental ou oriental –, ou da religião dominante.
Neste sentido, considerando a dificuldade no combate à violência contra a mulher na maioria dos países do mundo, a Organização dos Estados Americanos realizou a “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher”, mais conhecida como “Convenção Belém do Pará”.
Tal Convenção foi ratificada em 27 de novembro de 1995, quando ingressou no ordenamento jurídico brasileiro como legislação ordinária, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, permitindo que este documento seja utilizado perante o Poder Judiciário como fundamento legal em processos judiciais, além de significar um compromisso internacional diante dos países signatários.
A Convenção Belém do Pará discutiu amplamente sobre a interferência da violência na vida das mulheres e, pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro, introduziu uma norma que criminalizou de maneira específica as condutas violadoras dos direitos das mulheres.
Na tentativa de assegurar maior efetividade à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, o legislador alterou o Código Penal no ano de 2004 para acrescentar o tipo violência doméstica ao art. 129 §9º, tipificando a violência cometida no âmbito doméstico contra a mulher, que continuava a ser ignorada pelo poder público. Ocorre que, a norma acima descrita nasceu eivada de vícios que acarretaram verdadeiro prejuízo para as mulheres que, por vezes, denunciavam o agressor.
No intuito de dar mais celeridade aos processos penais que tramitavam na justiça brasileira, surgiram os Juizados Especiais Criminais, criados pela Lei nº 9.099/95. Observando a penalidade prevista para o delito da violência doméstica, percebemos a sua classificação como um crime de menor potencial ofensivo, logo, a competência para julgar esses casos pertence ao Juizado Especial Criminal.
Deste modo, preocupou-se o legislador em garantir celeridade ao processo, mas sem assegurar o resultado útil do mesmo. Ocorreu uma trivialização da violência contra a mulher, já que a pena mais comum aplicada para os delitos de menor potencial ofensivo seria o pagamento de multa ou cestas básicas. A pena não se reverter em favor da vítima, seja por meio material, seja por meio de segurança demonstrou a banalização da violência contra a mulher, uma vez que a vítima tem suas expectativas ignoradas e é excluída da decisão judicial.
A posição da vítima no desenrolar do processo era outro ponto ignorado pelas autoridades. As mulheres que lutavam por ajuda e proteção se deparavam com um sistema penal precário e ineficiente. Como percebemos, a vítima ocupa uma posição de desvantagem, pois os seus interesses são completamente relegados no processo penal. Daí surge a frustração da mulher, uma vez que não recebeu o apoio e o acompanhamento devidos, ficando totalmente desamparada e sem proteção adequada, o que por consequência gerava um grande número de arquivamento de processos/inquéritos por falta ou retirada da representação feita.
O JECRIM, no que se refere à violência doméstica, começou a se mostrar incapacitado para cumprir qualquer função preventiva ou reparatória nos litígios conjugais, visto que a violência doméstica passa a ser banalizada e a justiça se torna questionável, dando ensejo à impunidade. Se houvesse conciliação entre as partes, haveria a “limpeza” na ficha do acusado, sendo considerado réu primário, além de haver a possibilidade de transação penal, trazendo a opção de pagamento de multa ou de cestas básicas.
Diante deste quadro de impunidade, evidenciado pelo caso da biofarmacêutica Maria da Penha, que ficou paraplégica devido às tentativas de assassinato cometidas por seu ex-marido, com a pressão dos movimentos de mulheres e com incentivo do poder público, começou a ser discutido o projeto de lei que desaguaria na aprovação da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. O texto da lei foi discutido e reformulado por um grupo de trabalho interministerial, coordenado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), e enviada pelo Governo Federal ao Congresso Nacional, que realizou diversas audiências públicas sobre o tema, contando com ampla participação popular.
Entre as principais inovações da lei, destacam-se a tipificação da violência doméstica e familiar contra a mulher não só como agressão física, mas também a violência psicológica, sexual, patrimonial e o assédio moral. Além disso, a Lei retirou dos Juizados Especiais Criminais a competência para julgar os crimes de violência doméstica e determina a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar (Jufam).
Outro aspecto importante da Lei Maria da Penha é a proibição da transação penal e da substituição da pena privativa de liberdade por penas pecuniárias, o que garante maior efetividade na proteção da mulher, que não será obrigada a continuar convivendo com o agressor. O Juiz poderá, ainda, conceder no prazo de quarenta e oito horas, medidas protetivas de urgência (suspensão do porte de armas do agressor, afastamento do agressor do lar, distanciamento da vítima, dentre outras), dependendo da situação.
Desta forma, o Brasil passou a ser considerado um país vanguardista, no aspecto legislativo, no combate à violência doméstica. Entretanto, apesar da Lei 11.340/2006 ter suprido as falhas no ponto de vista legal, na prática, os índices de violência contra a mulher não cedem. De acordo com a ONG Compromisso e Atitude Lei Maria da Penha, nos dez primeiros meses de 2015 foram recebidas 63.090 denúncias de violência contra a mulher, sendo que 72,58% das vítimas sofrem agressões semanalmente.
Ainda segundo a ONG, dos 4.762 homicídios de mulheres registrados em 2013, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo a maioria desses crimes (33,2%) cometidos por parceiros ou ex-parceiros. Isso significa que a cada sete feminicídios, quatro foram praticados por pessoas que tiveram ou tinham relações íntimas de afeto com a mulher. A estimativa feita pelo Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil, com base em dados de 2013 do Ministério da Saúde, alerta para o fato de ser a violência doméstica e familiar a principal forma de violência letal praticada contra as mulheres no Brasil.
Deste modo, restou demonstrado que para o desenvolvimento de uma sociedade justa e igualitária, que respeite as diferenças de gênero e, sobretudo garanta a proteção às mulheres, não basta a criação de leis. Outras medidas devem ser tomadas para que o verdadeiro objetivo dos textos normativos seja atingido, qual seja, erradicar a violência contra a mulher. Falta maior investimento do poder público para criação de delegacias especializadas no atendimento às vítimas de violência doméstica, e o número de Juizados de Violência Doméstica e Familiar é insuficiente para processar as demandas em curso no país. Neste sentido, diante da inércia do poder público, é necessário pensar outras alternativas para solução desse conflito, eis que surge a análise da aplicação do instituto da mediação penal nos crimes de violência doméstica.
2. ASPECTOS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Abordando os desafios enfrentados pelo sistema de justiça em geral quanto à violência e à criminalidade, em meio à atual falência das instituições, deparamo-nos com um problema maior que a falta de eficiência do aparelho estatal, abrangendo, paralelamente, sua eficácia e efetividade. Esse modelo de Estado firmado numa justiça de caráter meramente retributivo não vem conseguindo atender aos anseios sociais e encontra-se em aparente colapso, reproduzindo aquilo que deveria combater, ou seja, a violência.
Destarte, vem ganhando força a busca por mecanismos hábeis a promover a efetivação do Estado Democrático de Direito, levando-se em consideração os progressos das ciências intrinsecamente a ele vinculadas. É neste contexto que a justiça restaurativa, buscando o esvaziamento das medidas meramente punitivas, surge como alternativa ao atual modelo, sendo um complemento às suas deficiências.
Dentro desta perspectiva, a justiça restaurativa institui uma redefinição do crime ao considerar a violação da norma jurídica e suas consequências, procurando corrigir falhas do sistema no atendimento às suas necessidades subjacentes e buscando promover uma análise qualificada dos conflitos, sem, contudo, promover qualquer responsabilização.
Neste modelo, os objetivos tradicionais do Direito Penal e Processual Penal são colocados em um plano paralelo, propondo-se meios de alcança-los através da restauração da ordem social. O objetivo, em princípio, é reparar os laços entre os agentes envolvidos no crime e a comunidade, restabelecendo a ordem jurídica partida. Com isso, restabelecida a paz jurídica, a eficácia da intervenção estatal se confirma, garantindo sua efetividade.
Não há unanimidade doutrinária quanto aos princípios da justiça restaurativa, tendo em vista que se trata de um conceito ainda em construção. Assim leciona Leonardo Sica (2007, p.33), ao dizer que “elencar princípios é o mais difícil, porquanto o modelo restaurativo ainda se encontra em elaboração e a variedade de programas orienta-se para realidades distintas”. O nobre autor também nos apresenta três princípios básicos, admitidos como premissas da justiça restaurativa, quais sejam:
• o crime é primariamente um conflito entre indivíduos, resultando em danos à vítima e/ou à comunidade e ao próprio autor; secundariamente, é uma transgressão da lei;
• o objetivo central da justiça criminal deve ser reconciliar pessoas e reparar os danos advindos do crime;
• o sistema de justiça criminal deve facilitar a ativa participação de vítimas, ofensores e suas comunidades. (SICA, 2007, p. 33)
As críticas mais contundentes à justiça restaurativa, no meio doutrinário, são de que este modelo representaria um retrocesso ao estado primitivo de controle jurisdicional, na medida em que promoveria a autotutela e incentivaria a vingança privada, pois seria carente de garantias individuais. Entretanto, a justiça restaurativa tem provado o contrário, reduzindo os impulsos vingativos e aumentando a percepção de segurança jurídica.
Importante esclarecer que não se quer, aqui, defender a substituição do atual modelo de justiça retributiva/preventiva pela justiça restaurativa. Os preceitos restaurativos e punitivos precisam complementar-se, formando um sistema capaz de reduzir o impacto dos crimes sobre o indivíduo e delimitar a punição proporcionalmente à culpa do infrator. Neste sentido, torna-se imprescindível o aparelho punitivo do Estado em diversas circunstâncias.
Neste contexto, a coexistência entre justiça retributiva e restaurativa apresenta-se como uma necessidade, devendo enfrentar os obstáculos a sua adoção. Mais que uma plataforma jurídica, a justiça restaurativa fundada nas ideias de reeducação e reinserção do condenado se torna um pressuposto de efetividade da jurisdição, devendo caminhar lado a lado com a justiça retributiva. Sintetizando, deve haver uma evolução que dissolva o paradigma meramente punitivo, construindo-se um novo onde uma complemente a outra.
Assim observa André Gomma de Azevedo (2007, p. 136), ao lecionar que “como parte dessa evolução, buscam- se novos (e mais eficientes) mecanismos de resolução de litígios voltados não apenas a transformar o ordenamento processual penal em um mecanismo retributivo mais eficiente, mas também voltado a ressocialização, prevenção, redução dos efeitos da vitimização, educação, empoderamento e humanização do conflito”. É neste contexto que se insere um dos mais importantes instrumentos da justiça restaurativa, ou seja, a mediação.