1. INTRODUÇÃO
A persecução criminal no Brasil se desenvolve em duas fases: investigação criminal e ação penal. O instrumento por excelência que materializa a investigação criminal é o Inquérito Policial. É por meio desse procedimento administrativo que as instituições de Polícia Judiciária, dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, apuram a materialidade e a autoria delitiva, além das circunstâncias da conduta criminosa.
O Inquérito Policial foi assim denominado com a edição da Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto-lei nº 4.824, de 28 de novembro de 1871. Consoante o artigo 42 da citada lei:
“O Inquérito Policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito”.
Não encontramos na legislação vigente um conceito acabado de Inquérito Policial. No entanto, da leitura dos artigos 4º a 23 do Decreto-lei 3.689 de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, podemos concluir se tratar de um procedimento preliminar de natureza administrativa, mediante o qual as instituições de Polícia Judiciária reúnem provas da materialidade, indícios de autoria e as circunstâncias de determinada conduta criminosa, permitindo o consequente oferecimento de denúncia por parte do Ministério Público ou, ainda, o ajuizamento de ação penal pelo particular interessado.
Doutrinariamente, podemos citar a definição de Nucci (2008, p. 143):
“É um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela Polícia Judiciária e voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e sua autoria”.
2. INQUÉRITO POLICIAL
2.1. A democratização da Investigação Criminal
A finalidade precípua da investigação criminal, materializada no Inquérito Policial, é reunir elementos mínimos de materialidade e autoria delitiva antes da instauração do processo criminal, evitando-se ações infundadas, as quais certamente implicam verdadeiro transtorno para quem se vê levianamente acusado por um crime que não cometeu.
O estigma provocado por uma ação penal pode perdurar durante toda a vida e, por isso, a acusação deve possuir fundamentos fático e jurídico suficientes para ser promovida, o que, em regra, somente se consegue por meio do Inquérito Policial. (QUEIROZ, 2010).
Modernamente, o Inquérito Policial deixou de ser o procedimento absolutamente inquisitorial e discricionário de outrora. A participação das partes, pessoalmente ou por meio de seus advogados ou defensores públicos, vem ganhando espaço a cada dia. O objetivo é garantir que o Inquérito Policial seja um instrumento imparcial de investigação em busca da verdade.
Esse novo cenário desencadeou, em 2009, a edição da Súmula Vinculante nº 14, que garante o direito de o defensor, no interesse do representado, ter amplo acesso aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por instituição com competência de Polícia Judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
Recentemente, a Lei nº 13.245/16 alterou o Estatuto da Advocacia, garantindo ao causídico, dentre outros direitos, o de assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração, apresentar razões e quesitos.
Sem embargo do alegado, não podemos olvidar que o Inquérito Policial consubstancia fase preliminar à ação penal. Por essa razão, durante o seu trâmite, não é possibilitado ao investigado o exercício de todos os direitos inerentes à fase processual, sob pena de se frustrar a investigação e, por conseguinte, a apuração da materialidade e autoridade delitiva. Daí decorre a necessidade da manutenção do sigilo das diligências em andamento, visando assegurar a eficiência da investigação, que poderia ser substancialmente prejudicada com a ciência prévia das partes ou de seus defensores. Seria o caso de dar publicidade ao investigado de interceptação telefônica em andamento ou, ainda, de representação por prisão temporária pendente de decisão judicial. (LIMA, 2016).
Ainda assim, é inegável que nos dias atuais o Inquérito Policial é conduzido em estrito respeito à legalidade, tendo as partes ampla oportunidade de manifestação e acompanhamento, além do controle externo exercido pelo Ministério Público e Poder Judiciário.
2.2. Desenvolvimento do Inquérito Policial
Uma vez instaurado o Inquérito Policial, caberá à Autoridade Policial e seus agentes direcionar todos os seus esforços em reunir a maior quantidade de provas da materialidade e de indícios da autoria delitiva.
Para tanto, poderão, dentre outras providências: colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações; determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias; apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais e proceder à reprodução simulada dos fatos.
O avanço tecnológico possibilita à Autoridade Policial explorar diversos softwares e hardwares especializados, para, por exemplo, pesquisar veículos por fragmentos de placa, analisar locais específicos em que trafegou determinado veículo, produzir retrato falado cada vez mais próximo à realidade, dentre muitas outras possibilidades.
Diante das informações reunidas durante o Inquérito Policial, poderá a Autoridade Policial, de acordo com seu convencimento técnico-jurídico, indiciar o investigado ao qual entende recair a autoria delitiva. É por meio do indiciamento, ato exclusivo da Autoridade Policial, que o juízo de possibilidade de autoria é intensificado, se transformando em juízo de probabilidade.
Ao final, cabe à Autoridade Policial elaborar minucioso relatório das diligências realizadas e dos elementos de prova coligidos e remeter os autos ao Juiz de Direito, que dará vista ao Ministério Público para eventual propositura de ação penal.
2.3. Competência para presidir o Inquérito Policial
Nos últimos anos a possibilidade de outras instituições presidirem a investigação criminal vem gerando muita discussão.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 144, atribui à Polícia Federal e às polícias civis dos estados as funções de Polícia Judiciária e a apuração de infrações penais. Como bem esclarece Zanotti (2015), a função de Polícia Judiciária é concretizada no cumprimento de determinações judiciais, como mandados de busca e apreensão, mandados de prisão, dentre outras. Por outro lado, a nomenclatura Polícia Judiciária se justifica no sentido de que sua função é essencialmente investigatória, almejando a colheita de provas e, assim, viabilizando o transcorrer da ação penal.
No âmbito infraconstitucional, prevê o Código de Processo Penal, em seu artigo 4º, que “a Polícia Judiciária será exercida pelas autoridades policiais”. Pacificando longa discussão acerca do tema, a Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013, tratou de cristalizar o óbvio: por autoridades policiais deve-se entender única e tão somente os Delegados de Polícia de carreira. É o que se extrai do artigo 2º, § 1º, daquele diploma legal:
“Ao delegado de polícia, na qualidade de Autoridade Policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de Inquérito Policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.”
Não obstante a robusta legislação que atribui a investigação criminal à Polícia Federal e às polícias civis, mostra-se cada vez mais comum a tentativa de outras instituições em usurpar essa função. Essa busca desenfreada pela condução da investigação criminal, além de configurar usurpação de função, impossibilita seus pretendentes de desempenhar com eficiência as atribuições que lhes foram conferidas pelo Poder Constituinte e pelo legislador infraconstitucional.
Nessa toada, é flagrantemente inconstitucional e desvirtuado o “ciclo” completo” defendido pelas polícias militares de alguns estados, a quem a Constituição Federal atribuiu a função de realizar o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública.
Adotado o tal “ciclo completo”, hipótese apenas para argumentar, caberia às duas polícias estaduais – civil e militar – as mesmas atribuições, ou seja, prevenir e reprimir a criminalidade. Ora, nada mais desarrazoado e conflitante seria a existência de duas instituições policiais em um mesmo estado, desempenhando as mesmas funções. A razão da divisão constitucional e legal de atribuições entre as polícias civis e militares é notória: permitir que cada instituição desempenhe com a maior eficiência possível sua especialidade, no âmbito da segurança pública estadual.
Oportuno transcrever a didática explicação de Nucci (2016, p. 43) a respeito da diferença teleológica entre as polícias civis e militares:
“A diferença básica entre ambas as polícias é a essência de suas atividades, pois assim desenhou o constituinte. Enquanto a polícia civil descobre, apura, colhe provas de crimes, propiciando haver processo criminal e eventual condenação do delinquente, a polícia militar, fardada, faz o patrulhamento ostensivo, isto é, visível, claro e perceptível pelas ruas. Atua de modo preventivo-repressivo, mas não é seu mister a investigação de crimes. Da mesma forma, não cabe ao delegado e seus agentes saírem pelas ruas ostensivamente em patrulhamento. A própria comunidade identifica na farda a polícia repressiva, quando ocorre um crime; é a primeira a ser chamada, como regra. Depois, havendo prisão em flagrante, por exemplo, atinge-se a fase de persecução penal, ingressando a polícia civil, sem farda e cuja identificação não se dá pelos trajes usados”.
Para o autor, o “ciclo completo” além de inútil, deflagraria uma competição entre instituições policiais, com possíveis conflitos e confrontos. Essa corrida investigatória interessaria apenas aos infratores da lei, nenhum pouco à sociedade. (NUCCI, 2016).
De igual modo, apesar do recente posicionamento favorável do Supremo Tribunal Federal durante julgamento do Recurso Extraordinário nº 593.727/MG, a investigação criminal não deve ser conduzida por órgão do Ministério Público, a quem a Constituição Federal atribui apenas e tão somente o controle externo da atividade policial.
Em respeito ao comando constitucional, cabe ao Ministério Público o controle externo ou, em outros termos, a fiscalização da legalidade do trabalho desenvolvido pelas polícias, tendo em vista a atribuição de custos legis dos membros do Parquet. Além do controle externo da atividade policial, pode o Ministério Público, ao vislumbrar a ocorrência de um crime, requerer à Autoridade Policial a instauração do pertinente Inquérito Policial, para apuração do fato. A investigação criminal presidida pelo Ministério Público não encontra guarida constitucional ou legal.
A esse respeito, vale mencionar o magistério de Badaró (2016, p. 154):
“A ausência de lei cria um insuperável óbice, por possibilitar a atuação discricionária na escolha dos casos a serem investigados. [...] ficaria ao livre-arbítrio do promotor de justiça escolher o que deseja e o que não quer investigar. Não raro, critérios midiáticos têm orientado tal escolha. São comuns investigações criminais realizadas pelo Ministério Público no caso de crimes cometidos por políticos, autoridades egrégias, ricos empresários ou figuras famosas. Desconhecem-se, por outro lado, investigações do Ministério Público, no caso de furto da mercearia, da lesão corporal grave, etc.”
Outro fundamento que pesa em desfavor da investigação criminal por parte do Ministério Público é o fato dele ser uma das partes do processo criminal. Não é razoável defender que uma das partes do processo tenha em suas mãos o poder de presidir a investigação que dará suporte à ação penal. Certo é que a imparcialidade na produção da prova na fase investigativa restaria prejudicada, dotado que estaria o Ministério Público de “super poderes”, em prejuízo da defesa. Nesse sentido, Badaró (2016, p. 155):
“Concentrar nas mãos de um único órgão as atividades de investigação e promoção da ação penal implicaria um perigosíssimo acúmulo de poder, que facilmente poderia ser utilizado de forma abusiva ou apaixonada”.
Em resumo, deve-se respeitar a distribuição de competências e atribuições oriunda do Poder Constituinte, de modo que cada instituição exerça suas atribuições com eficiência e de forma especializada em cada uma das fases que compõem a persecução criminal, cumprindo o dever estatal de garantir a segurança pública à população.
3. CONCLUSÃO
O Inquérito Policial é o principal instrumento de investigação criminal no país. É durante o seu trâmite que a Autoridade Policial busca provas de materialidade e indícios de autoria, para posterior ajuizamento de ação penal.
Por se tratar de procedimento preliminar de apuração criminal, deve ser exclusivamente presidido por Delegado de Polícia de carreira, autoridade imparcial a quem deve ser garantida a indispensável independência funcional.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 e, principalmente, após as recentes mudanças proporcionadas pela Súmula Vinculante nº 14 e pela Lei nº 13.245/16, o Inquérito Policial se consolidou como instrumento transparente e democrático de investigação criminal, ao admitir ampla participação das partes e de seus defensores, além de sua suscetibilidade a controle externo do Ministério Público e do Poder Judiciário.
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal, 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
LIMA, Renato Brasileiro de. Súmulas Criminais do STF e do STJ Comentadas. Salvador: JusPODIVM, 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos humanos versus segurança pública. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 5ª ed. rev., atual. e ampl. 3 tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
QUEIROZ, Carlos Alberto Marchi de. (Coordenador) Manual de Polícia Judiciária: doutrina, modelos, legislação, 6ª ed. São Paulo: Delegacia Geral de Polícia, 2010.
ZANOTTI, Bruno Taufner e SANTOS, Cleopas Isaías. Delegado de Polícia em ação: Teoria e Prática no Estado Democrático de Direito – 3ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2015.