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A responsabilidade civil e ética do médico no atendimento à distância

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Agenda 19/12/2016 às 14:23

CONSULTA MÉDICA À DISTÂNCIA

       1. Conceituação:

Caracteriza-se como o ato médico no qual de um lado está o médico e de outro está o paciente, ambos mantendo contato por meio de uma “webcam”, através de qualquer aplicativo ou programa digital, permitindo o acesso do profissional à história clínica do paciente, aos exames complementares que este porventura disponha e à avaliação do fácies, de alguma deformidade, mancha ou outra alteração cutânea, com as limitações do meio utilizado; estas limitações podem se dever à qualidade inadequada dos equipamentos, à pouca habilidade de utilização de tecnologia por uma ou ambas as partes, à inadequada velocidade de transmissão dos dados, à insuficiente capacidade de descrição dos sintomas por parte do usuário etc. Obviamente que itens do exame físico como ausculta, palpação e percussão não serão possíveis.

Diferentemente da telemedicina, portanto, neste tipo de atendimento o paciente não contaria com a presença de um médico assistente ao seu lado que o examinasse, não havendo intercâmbio profissional; o relacionamento seria exclusivo e direto com o médico à distância.

2. Normatização:

Não há Resolução do CFM, até o momento, regulamentando esse tipo de atendimento, devendo o médico cumprir a Resolução CFM nº 1958/2010 quando se tratar de consulta médica.

Há uma máxima na Medicina que diz que “a clínica é soberana”, significando que nada é mais importante que o exame físico do paciente para se chegar a uma impressão diagnóstica e, assim, quando necessário, solicitar os exames subsidiários que poderiam confirmá-la ou não. Sem o exame físico, mesmo um número excessivo de exames poderá não firmar o diagnóstico exato, gerando apenas custos desnecessários e resultados às vezes insatisfatórios, que poderão ocasionar desconforto maior ao paciente, ambos motivos suficientes para abalar a relação médico-paciente e suscitar reclamações cíveis ou éticas.

Além de sempre presencial, todo atendimento médico deve gerar registro em prontuário (ou ficha de atendimento), que deverá ficar sob a guarda do médico ou da instituição onde houve o atendimento (artigo 86 do CEM), sendo este documento de fundamental importância para comprovação de todas as providências tomadas pelo profissional. No ato à distância, o registro do atendimento em prontuário também poderá ser prejudicado e a confidencialidade dos dados dependerá da qualidade dos equipamentos e dos programas utilizados pelas partes envolvidas.

A conceituação de telemedicina feita pela OMS fala em “intercâmbio de informações válidas para promoção, proteção, redução do risco da doença e outros agravos e recuperação”, corroborando a interpretação de que a telemedicina envolverá a participação de dois médicos que farão esse intercâmbio de informações, não cabendo o uso do termo quando se tratar de atendimento por um médico à distância sem a participação do assistente ao lado do paciente.


PRONTUÁRIO MÉDICO

O art. 86 do CEM/09 determina o registro de todos os atendimentos em prontuário. Como enfatiza o CFM, na Resolução 1638/2002, ele é documento valioso para o paciente, para o médico que o assiste e para as instituições de saúde, bem como para o ensino, a pesquisa e os serviços públicos de saúde, além de instrumento de defesa legal.  

Quando o médico fornecer o prontuário para sua própria defesa na esfera judicial, deverá sempre solicitar que seja observado o sigilo profissional, conforme determina o parágrafo 2º do artigo 89 do CEM/2009. Quando for solicitado judicialmente, o prontuário deverá ser disponibilizado ao médico perito designado pelo juiz (parágrafo 1º, mesmo artigo).

O art 1º da Resolução supra referida define o prontuário médico (tanto na versão em papel quanto na eletrônica) como:

O documento único constituído de um conjunto de informações, sinais e imagens registradas, geradas a partir de fatos, acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e a assistência a ele prestada, de caráter legal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicação entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao indivíduo.

De acordo com a legislação brasileira, documentos arquivados em papel somente poderão ser destruídos após a microfilmagem, o que é autorizado pela Lei nº 5.433/68 e pelo Decreto nº 1.799/96, que a regulamenta. O prontuário do paciente, em qualquer suporte (papel ou microfilme), deve ser preservado pelo prazo mínimo de 20 (vinte) anos, a partir do último registro. O art 8º da Resolução CFM 1.821/2007 mantém esse prazo para documentos não digitalizados. Essa mesma Resolução aprova o “Manual de Certificação para Sistemas de Registro Eletrônico em Saúde” e estabelece regras quanto à digitalização e eliminação de prontuários em papel.


SIGILO PROFISSIONAL

Um aspecto dos mais importantes diz respeito à quebra do sigilo profissional (Resolução 1643/2002 do CFM), que poderia resultar em infração ao artigo 73 do CEM/09. Esta poderia ocorrer por diversos fatores inerentes aos equipamentos, por inadequado sistema de segurança de dados (quanto a invasão por programas maliciosos e/ou “crackers”) ou por divulgação não autorizada pelo paciente, seja no atendimento de telemedicina, seja por uma “webcam”, “e-mail”, “WhatsApp”, etc.

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Particular cuidado quanto ao sigilo deve ser observado quando, no atendimento de uma celebridade ou de um caso de grande comoção pública, são emitidos boletins médicos ou dadas entrevistas coletivas à imprensa, sendo necessária a autorização prévia do paciente ou familiares e o relato objetivo de fatos de interesse, evitando emitir opiniões não embasadas em fatos científicos.

Em um artigo muito interessante, Carreiro alerta para alguns aspectos relativos ao sigilo, colocando, por exemplo, que uma foto obtida durante a internação, para fins de documentação médica, constante do prontuário do paciente, em primeiro lugar deveria ter a autorização do mesmo para fazê-la e, depois, deveria ser armazenada em programas com códigos de segurança que somente permitissem o acesso de pessoas autorizadas; alerta que sua cópia para computadores pessoais do médico ou qualquer outra mídia poderia representar apropriação indevida, se efetuada sem a necessária autorização do paciente. Ressalta o risco de compartilhamento acidental (ou mesmo intencional) quando essas imagens são gravadas em CD’s, pendrivers, laptops etc, sem esquecer a possibilidade de extravio ou furto de tais equipamentos, com a consequente quebra do sigilo.


RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL

Em vista da crescente “judicialização da Medicina”, alguns médicos atualmente a exercem de maneira altamente defensiva, vendo no paciente ou seu representante/responsável alguém que a qualquer momento poderá se voltar contra ele. Essa pode ser a razão da solicitação de grande número de exames desnecessários para um determinado caso, do encaminhamento cada vez maior para especialistas, da elaboração de Termos de Consentimento Informado cada vez mais detalhados e de uma relação com o paciente onde é falado somente o estritamente necessário, procurando o profissional que assim age se resguardar de alegações de erro em sua conduta. Todavia, essa maneira de encarar o exercício profissional acaba por gerar maior descontentamento do paciente, que não se vê “abraçado” em sua doença pela aparente impessoalidade da relação.

O descontentamento do paciente, mesmo que não tenha havido falha técnica no procedimento realizado, é um dos principais fatores determinantes de denúncias nos Conselhos Regionais de Medicina e na esfera judicial. Esse conflito na relação médico-paciente pode ser devido a um erro médico (imperícia, imprudência ou negligência), a um mau resultado, a uma insatisfação com o resultado (mesmo que não haja erro) ou a fatores outros que culminam com a quebra do bom relacionamento pessoal.

O Código Civil em vigor, no artigo 927, diz que aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo. Portanto, é direito inquestionável do paciente buscar a reparação pelo dano sofrido, na esfera cível, e a responsabilização do médico na ético-profissional. Entretanto, como veremos a seguir, a responsabilidade do médico sempre será atribuída através da constatação de culpa, como ocorre com os diversos profissionais liberais.

Fatos como a quebra do sigilo profissional poderão ocorrer por ato voluntário (dolo) ou involuntário (culpa) do médico ou do paciente ou, ainda, por inobservância das normas de segurança para documentos digitais, já antes citadas, e o médico sem a certificação digital (ICP-Brasil) poderá ser responsabilizado; se a quebra se deu por culpa comprovada do paciente, isto exclui a responsabilidade do profissional.


RESPONSABILIDADE CIVIL

A Medicina deve ser vista como atividade de meios, onde o médico buscará dentro do seu conhecimento científico a melhor solução para o problema apresentado pelo paciente, sem garantir este ou aquele resultado. Exceção é feita à cirurgia plástica estética, à anestesiologia, ao diagnóstico por imagem e à patologia clínica, onde se entende, como regra geral, que há um contrato de resultados.

Diante de um mau resultado ou de insatisfação do paciente com a conduta que considerou prejudicial de alguma forma, este tem o direito de pleitear reparação pelos danos sofridos, mesmo que puramente morais (direito de ação, garantido pelo art 5º, XXXV, da Constituição Federal, que estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”).

A responsabilidade prevista no artigo 927 do Código Civil, que determina que aquele que causar dano a outrem, por ato ilícito, fica obrigado a repará-lo, remete-nos à apreciação dos artigos 186 e 187 do mesmo Código para que a configuremos como subjetiva ou objetiva, na dependência do agente considerado.

 Responsabilidade subjetiva:

Como ocorre com os profissionais liberais em geral, a responsabilidade civil do médico será sempre do tipo subjetiva, ou seja, há necessidade de demonstração de culpa (imprudência, negligência ou imperícia), do dano (prejuízo reprovável social e/ou legalmente) e da vinculação do nexo causal.

A responsabilidade subjetiva é prevista no artigo 186 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), que diz que comete ato ilícito aquele que “por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral”.

O artigo 951 do mesmo Código estabelece que nos casos de demonstração de culpa do profissional, no exercício de sua atividade, por negligência, imprudência ou imperícia, vindo a “causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho”, aplica-se o disposto nos artigos 948, 949 e 950 no caso de indenização devida.

O CDC (Lei nº 8.078/90) abraça também a responsabilidade subjetiva do médico quando determina, em seu artigo 14, que o fornecedor de serviços responda, independentemente da existência de culpa, por danos causados ao consumidor por defeitos na prestação dos serviços, ressalvando, entretanto, no parágrafo 4º, que “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação da culpa”.

Ainda com relação ao CDC, a culpa do médico decorre de um defeito na prestação do serviço (§ 1º do art 14), devendo-se considerar algumas circunstâncias para caracterizá-la, como o modo da realização do serviço, o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam e a época em que foi prestado. No atendimento à distância, muitos são os riscos, conforme já comentado, porém sempre deverão ser observados os excludentes da responsabilidade subjetiva, tais como realizar o ato no estrito cumprimento do dever legal ou quando o dano é resultante de caso fortuito ou força maior ou de culpa exclusiva da vítima; também quando se trata de fato de terceiro ou de ausência de nexo causal.

 Responsabilidade objetiva:

Este tipo de responsabilidade, para sua caracterização, exige apenas a comprovação do dano sofrido pelo paciente e do nexo causal entre o dano e a atividade profissional questionada; portanto, se o atendimento (telemedicina ou consulta à distância) é feito dentro de uma instituição prestadora de serviços de saúde e ocorre o dano, esta será responsabilizada sem a necessidade de demonstração de culpa (art 187 do CC e art 14 do CDC), já que sua atividade, por sua natureza, implica em riscos para os direitos de outrem; mesmo assim, não haverá prejuízo da apuração da responsabilidade dos profissionais envolvidos.

Algumas situações específicas chamam a atenção nesse tipo de responsabilidade. Por exemplo, se o médico é empregado de um hospital ou atende em nome de um plano de saúde, essas instituições poderão ser responsáveis solidariamente. Basta a demonstração do dano e do nexo causal nesses casos, sendo ponto pacífico sua responsabilização. Porém, quando apenas o hospital ou plano de saúde é acionado judicialmente e é condenado, sem que o médico tenha sido chamado à lide, há o direito de ação de regresso em desfavor do médico, para que este também arque com a sua quota de participação em caso de indenização ao paciente.

A situação do médico de hospital público (como empregado ou conveniado) que tenha seus atos questionados ao exercer seu mister na instituição, levará esta a responder solidariamente, de acordo com o disposto no § 6º do art 37 da Constituição Federal e do art 43 do Código Civil em vigor, a menos que estejam presentes os excludentes de responsabilidade subjetiva do profissional.

Sobre o autor
Manoel Walber Silva

Concluinte de MBA em Direito Médico pelo IPOG; médico, graduado pela UFPA em 1981. Exerci a perícia médica de 1982 a 2012. Conselheiro do CRM-PA, (ex-Vice Corregedor, atual 1º Tesoureiro).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Manoel Walber. A responsabilidade civil e ética do médico no atendimento à distância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4919, 19 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54127. Acesso em: 19 dez. 2024.

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