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Pedofilia: a ineficácia na punição e no tratamento

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Existe uma grande diferença entre o pedófilo e o estuprador que abusa de uma criança. Os pedófilos possuem uma perturbação psiquiátrica que se encaixa no grupo das parafilias, ou seja, é um distúrbio sexual; os estupradores que abusam de menores, não.

Resumo: Apoiado em uma perspectiva sociojurídica, este artigo analisa os dois aspectos da pedofilia junto ao ordenamento jurídico brasileiro: o crime e a doença. Tendo em vista que de acordo com a Organização Mundial da Saúde, a pedofilia é classificada como uma parafilia, sua exteriorização envolve a semi-imputabilidade do indivíduo, que recebe como pena o tratamento em Hospital de Custódia e Tratamento. A tônica do artigo é o estudo da ineficácia na punição e no tratamento do pedófilo, bem como a análise da substituição do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico por um novo órgão governamental eficaz, cujo tratamento digno reflita na conduta do doente apenado, garantido, assim, uma aplicação de pena adequada.

Palavras-chave: Pedofilia; Crime; Parafilia; Hospital de Custódia e Tratamento; Pena.


1. INTRODUÇÃO

Diante de todos os problemas e dúvidas que envolvem a pedofilia, é de suma importância, tanto para a sociedade, como para o mundo jurídico, que tais questões sejam analisadas e discutidas. É necessário pontuar que a parafilia pedofilia sempre existiu, porém não se tinha conhecimento de se tratar de um transtorno sexual. A legislação brasileira – mais especificamente o Art. 96. do Código Penal - ordena que os indivíduos com a presença de algum tipo de doença ou perturbação mental (que são considerados semi-imputáveis), quando cometem crimes, terão a substituição do encarceramento comum pela medida de segurança, ou seja, a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTPs).

Segundo o Art. 97, prescrito no mesmo código, tais instituições devem possuir estruturas hospitalares, entretanto, essas circunstâncias são inexistentes, havendo desde dopagens medicamentosas, até torturas físicas. Neste contexto, cabe ao presente trabalho analisar a necessidade de substituição dos HCTPs, por um novo órgão governamental que seja realmente eficaz na punição e no tratamento psiquiátrico dos pedófilos.

Na mesma linha de observação, os artigos científicos ‘’Tratamento Penal do Criminoso Mental‘’ e ‘’A História Esquecida: Os Manicômios Judiciários no Brasil’’ possuem análise sobre a situação deplorável das instituições responsáveis por manter em cárcere e garantir um suposto tratamento dos semi-imputáveis. Ademais, como resposta a questionamentos sobre a pedofilia ser considerada crime ou doença, pode ser mencionado o resumo expandido ‘’Pedofilia: Crime e/ou Doença?’’ (do qual este trabalho acadêmico é extensão), o artigo ‘’Pedofilia é Crime ou Doença? : A Falsa Sensação de Impunidade’’ e o também artigo ‘’Pedofilia como Transtorno Comportamental Psiquiátrico Crônico e Transtornos Comportamentais Assemelhados’’, escrito pelo psiquiatra, Danilo Antônio Baltieri, o qual será mencionado logo mais nesta pesquisa.

O restante do artigo está organizado da seguinte maneira. A seção 1 apresenta conceitos históricos sobre a pedofilia, bem como os seus aspectos. A seção 2 trata das condições dos HCTPs. A seção 3 abrange o real objetivo do trabalho, ou seja, a substituição dos atuais HCTPs por um novo órgão governamental que garanta a real eficácia no tratamento e na punição dos pedófilos.


2. DISPOSIÇÕES SOBRE A PEDOFILIA

Os subtópicos abaixo possuem como objetivo discorrer sobre os principais pontos encontrados no decorrer da pesquisa sobre a temática pedofilia. As questões abordadas são: a presença na história da doença mencionada, o correto significado do termo, a caracterização e comprovação como transtorno sexual, assim como a exteriorização da pedofilia.

2.1. Pedofilia e a história

Antes de abordar o principal conteúdo do presente trabalho, é de extrema importância discorrer sobre a pedofilia e a sua presença na história. Na Grécia e no Império Romano, a exploração sexual de menores era um costume tolerado e, até certo ponto, prezado. E, ainda, hoje, existe o consentimento da pedofilia homossexual no mundo islâmico. Infelizmente, a existência de relações sexuais com crianças e adolescentes foi e ainda é observada em quase todas as culturas, porém, uma pequena parcela dos homens e mulheres que participam dessas práticas podem se afirmar indivíduos pedófilos.

No Brasil, atos sexuais e imagens pornográficas envolvendo menores são considerados imorais para a sociedade e ilegais para o ordenamento jurídico. Entretanto, por se tratar de um tópico que medita sobre a pedofilia por um viés histórico, é de grande importância analisar que com o avanço da tecnologia e dos meios de comunicação, a erotização dos corpos infantis tem sido uma grande problemática para a sociedade. São comuns abordagens impróprias nos programas televisivos ou na internet sobre meninas na chamada “flor da idade”, exaltando os atributos da sexualidade. Três ótimos exemplos desta afirmativa são o filme Lolita (1962), de Stanley Kubrick, baseado no livro de Vladimir Nabokov, a cantora de funk MC Melody, e o chamado ‘’Caso Valentina’’, que ocorreu com uma candidata do programa MasterChef (2015).

A partir dos avanços tecnológicos e da expansão das redes sociais, os crimes realizados por pedófilos contra crianças e adolescentes vêm crescendo consideravelmente, visto que, a facilidade dos meios de comunicação e a sensação de anonimato ‘’atrás da tela’’ traz uma falsa impressão de impunidade. Muitas vezes, os indivíduos utilizam as redes sociais para conseguir ter uma conversa mais privada com a vítima e, assim, a seduzir com falsas ideias e promessas, chegando, em casos extremos da doença, ao ponto de não conseguir se controlar e marcar encontros com os menores ou obter fotos inapropriadas.

É necessário pontuar que a parafilia pedofilia sempre existiu, porém, não se tinha o conhecimento de se tratar de um transtorno sexual. Infelizmente, na realidade brasileira, o preconceito com os indivíduos dotados deste transtorno sexual ainda ocorre.

É inimaginável e, muitas vezes, inconcebível que a atração sexual com crianças e adolescentes sejam classificadas pela psiquiatria como uma doença crônica. Prova disso é o fato da mídia ainda não fazer a diferenciação do estuprador de menores para o pedófilo. Ou seja, os meios de comunicação possuem grande parcela de culpa desse preconceito que foi instaurado na sociedade, onde grande parcela da população não consegue ver a necessidade do pedófilo receber um tratamento adequado.

Como consequência disso, eles são extremamente marginalizados, o que acaba atrapalhando em uma discussão sobre o tema.

2.2. Uso incorreto do termo pedofilia

Pedofilia não é sinônimo de crime sexual praticado contra crianças ou adolescentes. A palavra pedofilia vem dos termos gregos paidós, que tem como significado criança, jovem, e philia que significa amizade, afeto, amor. Logo, o adjetivo caracteriza a pessoa que “gosta de crianças”. Existe uma grande diferença entre o pedófilo e o estuprador que abusa de uma criança. Os pedófilos possuem uma perturbação psiquiátrica que se encaixa no grupo das parafilias, ou seja, é um distúrbio sexual, porém, os estupradores que abusam de menores, não. Infelizmente, os meios de comunicação raramente fazem essa distinção. A mídia acaba nomeando, como pedófilos, todos os indivíduos que possuem contato sexual com crianças. O sujeito que comprovadamente possui pedofilia sente esse desejo sexual específico por crianças e pré-púberes. Isto é o que lhe causa fantasias sexuais, ereção e prazer. Já o estuprador, faz isso por opção e desvio de caráter. Ele quer manter uma relação sexual com qualquer pessoa, e se no momento do desejo for uma criança que estiver disponível, é com ela que se concretizará o ato.

De fato, nem todo molestador de crianças é pedófilo e, da mesma forma, nem todo portador de pedofilia é molestador de criança. Por exemplo, alguns indivíduos que sexualmente abusam de crianças podem, oportunisticamente, selecionar menores para o ato sexual simplesmente porque estes estão disponíveis em um determinado momento e em determinada situação. De outro lado, o indivíduo com diagnóstico médico de pedofilia pode manifestar fantasias sexuais intensas e recorrentes envolvendo crianças e púberes, mas jamais concretizar as fantasias. (BALTIERI, 2013, p.3).

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2.3. Aspectos da pedofilia

Após analisar a pedofilia na história, e o uso incorreto do termo, os subtópicos a seguir meditarão sobre os aspectos psicológicos da doença pedofilia (mencionando pesquisas e fatos que comprovam tal situação de desordem mental) e, também, as consequências jurídicas de quando tal parafilia é exteriorizada.

2.3.1. Pedofilia como parafilia

Diferente do que a maioria das pessoas acredita, a pedofilia trata-se de uma doença, caracterizada pela preferência sexual por crianças, sejam estes meninos, meninas ou de crianças de um ou do outro sexo, geralmente pré-púberes ou no início da puberdade. (OMS, 2003, p.359). Essa doença é um transtorno sexual, classificado como parafilia:

As características essenciais de uma Parafilia consistem em fantasias, anseios sexuais ou comportamentos recorrentes, intensos e sexualmente excitante, em geral envolvendo 1) objetos não-humanos 2) sofrimento ou humilhação próprios ou do parceiro, ou 3) crianças ou outras pessoas sem o seu consentimento, ocorrendo durante um período mínimo de 6 meses (Critério A). Em alguns indivíduos as fantasias ou estímulos parafílicos são obrigatórios para a excitação erótica e são sempre incluídos na atividade sexual. Em outros casos, as preferências parafílicas ocorrem somente episodicamente (p. ex., talvez durante períodos de estresse), ao passo que em outras vezes a pessoa é capaz de funcionar sexualmente sem fantasias e estímulos parafílicos. (DSM-IV, 2003, p.538).

Parafilias são desvios sexuais, são desejos e preferências sexuais diferentes das aceitas pela sociedade e que ameaçam a comunidade como um todo. Dentro do grupo das parafilias, podemos citar, além da pedofilia, o exibicionismo, que se caracteriza em expor os órgãos genitais a um estranho; o fetichismo, que envolve o uso de objetos inanimados, associados ao corpo humano; o frotteurismo, que consiste em esfregar ou tocar uma pessoa sem o consentimento da mesma; o voyeurismo, que tem como característica observar pessoas nuas ou pessoas no ato sexual sem o consentimento desta; o travestismo sexual, que o sujeito usa vestimentas consideradas do sexo oposto ao dele; o sadismo sexual, onde o indivíduo parafílico vê prazer no sofrimento do parceiro; o masoquismo sexual, onde o portador da patologia sente prazer quando lhe causam dor e sofrimento; e também existe a parafilia, sem outra especificação.

O último componente do grupo das parafilias - parafilia sem outra especificação - não se encaixa em nenhum critério dos outros componentes. Neste subgrupo, encontra-se a necrofilia, sexo com cadáveres; zoofilia, sexo com animais; parcialismo, quando se foca em uma única parte do corpo humano; escatologia telefônica, conversas obscenas por telefone ou por computador; entre outras.

A pedofilia é uma doença que se origina, geralmente, no final da adolescência, de caráter crônico, não tem cura, mas com os devidos tratamentos pode ser controlada. Existem alguns fatores que ajudam no diagnóstico da patologia, são eles: o indivíduo ter fantasias sexuais com crianças ou pré-púberes por um período mínimo de seis meses, as fantasias causarem certo sofrimento e prejuízos na vida social do indivíduo e, apresentar idade superior a 16 anos e ser, no mínimo, 5 anos mais velho que a vítima.

Para melhor entendimento da patologia, cientistas britânicos da Universidade de Yale desenvolveram uma pesquisa para o estudo do cérebro dos pedófilos. Neste estudo, voluntários portadores e não portadores de pedofilia foram submetidos a imagens de pornografia adulta. Notou-se que a atividade do hipotálamo, região do encéfalo que tem como algumas das funções, controlar hormônios e atividades relacionados ao desejo sexual, foi menor nos indivíduos pedófilos. Acredita-se que esta foi a primeira vez em que se identificou diferenças nas atividades cerebrais de portadores da doença.

Devido à doença, o indivíduo pedófilo, que não receber um tratamento apropriado para a sua patologia, pode acarretar um comprometido de parte do seu controle de impulsos. Em consequência disso, é mais provável que a exteriorização da doença possa ocorrer em casos de crimes praticados contra menores.

2.3.2. A exteriorização da pedofilia

Como já foi mencionado anteriormente, a OMS, maior órgão de saúde mundial, classifica a pedofilia como uma doença do tipo parafilia. Entretanto, quando o indivíduo a exterioriza com atos ilícitos, como o estupro de vulnerável (Vide Art. 217. do Código Penal) ou o comércio de material pornográfico envolvendo criança ou adolescente (Vide Art. 241. do Estatuto da Criança e do Adolescente), cabe ao ordenamento jurídico conceder uma punição que além de ser apropriada para o crime praticado, assista a situação mental do sujeito.

Tendo em vista que a perturbação psíquica que os pedófilos possuem garante um caráter semi-imputável para os referidos, o atual Código Penal permite que a pena privativa de liberdade em cadeias/penitenciárias comuns possa ser substituída pela Medida de Segurança, qual seja, a internação nos chamados Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (Vide Art. 96, inc. I do Código Penal).

De acordo com o Art. 98. do mesmo código, ‘’[...] necessitando o condenado de especial tratamento curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela internação, ou tratamento ambulatorial [...]’’ (BRASIL, 2016, p. 537).

Segundo a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria):

A doença mental segue a lógica das demais patologias médicas e quando se mostra grave ao ponto do paciente cometer um crime e necessitar de um atendimento em um Hospital de Custódia e Tratamento, é nossa obrigação avaliar as condições de atendimento e propor medidas que assegurem ao paciente um atendimento moderno, digno, baseado em evidências científicas, distante de posturas ideológicas e, o mais possível, do sistema carcerário. (MANUAL FORENSE, 2011, p. 1-2).

Porém, durante visitas realizadas em oito HCTPs, o próprio grupo de trabalho para avaliação das políticas referentes à psiquiatria forense concluiu que, o panorama da atual situação dessas instituições é degradante e necessita de mudanças urgentes.

As visitas realizadas constataram uma estruturação e gerenciamento dos HCTPs de forma insatisfatória, despersonalizada e deficitária, que não atendem às necessidades básicas do paciente em cumprimento de medida de segurança detentiva. Todas as instituições visitadas apresentaram um funcionamento aquém do mínimo desejado, ensejando hipóteses de descaso e/ou falta de preparo técnico por parte dos gestores responsáveis pelo setor junto ao poder público. ’’ (MANUAL FORENSE, 2011, p. 4).

A avaliação da ABP abordou os aspectos de estrutura arquitetônica dos prédios, recursos humanos e a reinserção social e acompanhamento terapêutico dos internos.

Infelizmente, em todas as unidades visitadas, tais critérios de avaliação tiveram um desempenho abaixo da média, recebendo sugestões de melhoria. Como conclusão, os avaliadores pontuaram que:

O trabalho realizado mostrou uma realidade triste e deplorável no que diz respeito ao tratamento, representando uma violação aos direitos humanos dos pacientes. A medida de segurança (MS) deve ser orientada e conduzida por tratamento psiquiátrico que inclui internação e acesso a todos os recursos psiquiátricos disponíveis. Urge que as autoridades responsáveis tomem medidas imediatas para a correção dos problemas apontados nesse relatório. (MANUAL FORENSE, 2011, p. 7).

Ademais, de acordo com o Art. 99. do Código Penal, tal instituição deve se caracterizar fundamentalmente por ser ao mesmo tempo um espaço prisional e hospitalar. ‘’O internado será recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento’’ (BRASIL, 2016, p. 537).

Além disso, o Art. 97. §1º, do mesmo código ordena que perícias médicas devam ser realizadas periodicamente para averiguar se o condenado já está hábil para retornar para a sociedade. “A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos”. (BRASIL, 2016, p. 537).

Porém, por conta da precariedade encontrada nos HCTPs, dificilmente esses indivíduos possuem condições psíquicas ou físicas para receber alta. E quando recebem, por total falta de opção social ou financeira, acabam permanecendo abrigados, superlotando a instituição. Por outro lado, se liberados de forma insensata, sem que o interno tenha a devida condição psíquica em ordem, a direção pode ser acusada de abandono de incapaz.

Por ter conhecimento da atual situação de calamidade pública em que se encontram os HCTPs, muitos advogados decidem, juntamente com os seus clientes, que a preferência será cumprir a pena do crime realizado em aprisionamento comum, não anexando nos autos laudos médicos que comprovem a parafilia pedofilia. Tal escolha vai contra a legislação que garante a medida de segurança para os semi-imputáveis e também contra a jurisprudência, que ordena o cumprimento de pena nos HCTPs para os sujeitos considerados pedófilos. Ademais, se fosse efetivado uma aplicação de pena condizente com a realidade do sujeito, ou seja, obedecendo a necessidade de tratamento a uma patologia de ordem mental, qual seja, a pedofilia, os altos índices de reincidência dos sujeitos que praticam crimes sexuais contra crianças e adolescentes, que atualmente giram em torno de 77%, cairiam consideravelmente.

É de grande valor mencionar neste tópico uma pesquisa realizada pelo psiquiatra Danilo Barltieri em uma penitenciária no interior de São Paulo, onde foi constatado que do total de 101 indivíduos presos por agressão sexual contra menores, apenas 21 (20,79%) possuíam a doença pedofilia, como demostra o gráfico abaixo.

Diante de todo o exposto, fica comprovado que a legislação brasileira assegura uma punição diferenciada para os pedófilos que exteriorizam a sua doença por meio de atos ilícitos. Entretanto, a instituição responsável por punir o crime e extinguir a periculosidade dos indivíduos com pedofilia encontra-se ineficiente e falida, tendo em vista que, nem mesmo aos requisitos legais, ela assiste. Enquanto não existir uma punição e um tratamento adequado para tais sujeitos, a sociedade continuará à mercê dos altos índices de reincidência dos crimes sexuais que são praticados contra crianças e adolescentes.


3. AS CONDIÇÕES DO HOSPITAL DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO (HCTP)

À luz do que foi exposto sobre a periculosidade da pedofilia, bem como o padrão do ordenamento jurídico brasileiro e respectiva jurisprudência quanto ao comportamento exteriorizado do pedófilo, sabe-se da possibilidade de substituição de pena privativa de liberdade por internação em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, conforme artigo 98 do Código Penal (BRASIL, 2016, p. 563). O HCTP, antes referido como Manicômio Judiciário, foi oficialmente criado no Brasil em 22 de dezembro de 1903, pelo Decreto nº 1.132/1903 (MAMEDE, 2006). Porém, sua existência remonta ao século 19, na prisão de Broadmoor, Inglaterra (CARRARA, 2010).

3.1. O hospital de custódia e tratamento no Ordenamento Jurídico

O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico é uma das espécies de medida de segurança no ordenamento jurídico, estabelecido pelo artigo 96 do Código Penal (BRASIL, 2016, p. 563). A lei prevê a finalidade curativa desse tipo de hospital:

"Na hipótese do parágrafo único do art. 26. deste Código e necessitando o condenado de especial tratamento curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela internação [...] pelo prazo mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos [...]" (BRASIL, 2016, p. 563).

Em seu artigo 99, o Código Penal declara os direitos do internado no HCTP: "O internado será recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento." (BRASIL, 2016, p. 563).

Além de ser positivado no Código Penal, o HCTP recebeu maior abrangência quanto aos seus deveres em relação ao internado e à justiça na Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001, que trata da proteção e dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental (BRASIL, 2001).

O Parágrafo único do Art. 2º da Lei nº 10.216 (BRASIL, 2001) estabelece os direitos essenciais das pessoas portadoras de transtornos mentais:

Art. 2º Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;

II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;

VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

O estabelecimento dotado de "características hospitalares", o HCTP, antigo manicômio judiciário, deve abarcar uma visão humanizada do indivíduo portador de transtorno mental. E, para isso, deve buscar a reinserção desse indivíduo na sociedade a partir de tratamento digno, seguro e adequado, fazendo uso de assistência médica, psicológica, social e familiar.

O artigo 4º da Lei nº 10.216 (BRASIL, 2001) dispõe sobre os aspectos da internação do indivíduo em ambiente hospitalar focado em saúde mental:

Art. 4º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

§ 1º O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.

§ 2º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.

§ 3º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2º e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º.

O HCTP deve se preocupar com os indivíduos internados há muito tempo. Isso serve para garantir que o ambiente hospitalar não se torne um ambiente de fuga e marginalização que impede a reintegração do paciente na sociedade:

Art. 5º O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário. (BRASIL. Lei nº 10.216, 2001, art. 5º)

De fato, o HCTP positivado e idealizado pelo ordenamento jurídico brasileiro promove tratamento curativo em harmonia com os direitos humanos e o princípio de dignidade da pessoa humana, além de possuir meios para frear suas ações debilitantes e assegurar ao internado o cuidado, tanto do Estado, quanto do meio em que ele está e será inserido.

3.2. A realidade do HCTP

Apesar do grande avanço dado pela propagação de uma reforma psiquiátrica - fato essencial para a aprovação da Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001 - os Hospitais de Custódia e Tratamento ainda não estão de acordo com a lei do país. Existe uma ruptura abrupta entre a realidade do papel e o que realmente acontece nos chamados HCTPs. Pela visão do ordenamento, essa espécie de medida de segurança tem plena capacidade de oferecer tratamento curativo em ambiente com características hospitalares, além de oferecer ampla assistência e diversas formas de terapia com o objetivo de reinserção do sujeito na sociedade.

Além de tudo, ressalta o esforço direcionado aos indivíduos que estão confinados por grande período de tempo, que podem dispor de uma política específica e reabilitação psicossocial assistida, a fim de garantir que possam voltar a viver de forma saudável na sociedade.

Entretanto, o que existe na prática são diversas formas de abuso, tratamento indigno e violação dos direitos humanos nos HCTPs, como relata Diniz (2013) ao falar sobre a ocorrência de internação que supera a pena máxima da infração:

[...] são os 606 indivíduos internados há mais tempo do que a pena máxima em abstrato para a infração cometida (Brasil, 2012). Eles são 21% da população em medida de segurança no país. Não há como prever quantos desses, atualmente em pior situação do que aquela em que estariam caso fossem apenados, se converterão em indivíduos abandonados e velhos em um hospital psiquiátrico de custódia.

Sem nenhuma capacidade de oferecer a reintegração do indivíduo que cumpre medida de segurança, o que realmente ocorre no HCTP é terapia inadequada, falta de assistência e mínima preocupação com as absurdas quantidades de tempo que um indivíduo pode passar no estabelecimento - muitas vezes, uma vida inteira. Para Carrara (2010, p. 17):

Os manicômios judiciários são instituições complexas, que conseguem articular, de um lado, duas das realidades mais deprimentes das sociedades modernas - o asilo de alienados e a prisão - e, de outro, dois dos fantasmas mais trágicos que “perseguem” a todos: o criminoso e o louco.

Segundo Santos, Farias e Pinto (2015, p. 1227):

Será necessário construir uma política de segurança sobre novas bases que não responda ao crime ou a qualquer violência produzida por sujeitos com transtorno mental em conflito com a lei com outra violência social, a institucionalização em HCTP, onde a reclusão para tratamento tem caráter punitivo, de custódia e de suspensão de direitos, em contraposição às metas prioritárias de tratamento humanitário em Centros de Atenção Psicossocial e outros dispositivos em saúde mental.

Essa violência social está presente de várias formas nos HCTPs. A principal delas é a tortura, método para o controle e abuso dos internados, que são sujeitos a altas doses de medicamentos a fim de se tornarem passivos e submissos a toda sorte de crueldade:

"Hospitais de custódia usados para abrigar pessoas com transtornos mentais e em conflito com a lei são potenciais espaços de tortura, conforme constatação de um comitê da Organização das Nações Unidas (ONU), a partir de visitas feitas no país. O Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT), vinculado à ONU e com a participação do Brasil, concluiu um relatório sobre a privação de liberdade em quatro estados e incluiu impressões sobre instituições que deveriam oferecer tratamento psiquiátrico a loucos infratores" (SASSINE, 2013).

Viana e Souza (2013) compreendem que há distância entre a lei e a realidade dos HCTP, e acreditam que isso se deve por inércia do âmbito jurídico:

"[...] a reforma psiquiátrica, assim como as reformas sociais, em geral, não dependem apenas de leis que as respaldem ou autorizem. Apesar das conquistas constitucionais de direitos de cidadania, incluindo o direito social à saúde, e da lei específica sobre o cuidado à saúde mental, as pessoas com transtorno psiquiátrico que cometeram delitos continuam a ser tratadas como não cidadãs. As internações prosseguem a ser efetuadas em instituições com características asilares, em locais insalubres e isolados do convívio comunitário. No âmbito jurídico brasileiro, por sua vez, não houve ainda qualquer movimento no sentido de alterar os dispositivos dos Códigos Penal e Processual Penal, visando impedir as longas internações compulsórias como resposta jurídico-penal aos delitos cometidos por doentes mentais, em estabelecimentos fechados, distantes das famílias e do meio comunitário de origem."

Claramente, a violência e o abuso estrutural fazem parte do cotidiano do HCTP. É grande o distanciamento entre o que está estabelecido na lei e o que realmente acontece na prática. Somente uma maior regulação por parte do ordenamento que a cria pode mudar sua conjuntura atual.

Sobre os autores
Helena Cinque

Acadêmica de Direito da Universidade Paranaense (UNIPAR)

Vitória Carolina Silva

Acadêmica de Direito da Universidade Paranaense (UNIPAR)

Igor Garrido Ferreira

Acadêmico de Direito da Universidade Paranaense (UNIPAR)

Thaís Fernanda Zanardi Vacari

Acadêmica de Direito da Universidade Paranaense (UNIPAR)

Anelise Ruiz Lopes

Acadêmica de Direito da Universidade Paranaense (UNIPAR)

Luís Irajá Nogueira de Sá Júnior

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Alta Paulista(1985), especialização em Didática do Ensino Superior pela Universidade Presbiteriana Mackenzie(1993), especialização em Direito Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie(1994), especialização em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Paranaense(1995), mestrado em Direito Processual e Cidadania pela Universidade Paranaense(2006) e aperfeicoamento em Curso Preparatório Para Concursos pelo Ministério Público e Magistratura Damásio Evangelista de Jesus(1991). Atualmente é Professor auxiliar "A" (TI) da Universidade Paranaense, Profissional Autônomo da Sá e Sirigu Advogados Associados e Membro de corpo editorial da Revista Autoclasse. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Privado. Atuando principalmente nos seguintes temas:Indenização, Reservas, Responsabilidade, Transporte, Turismo.

Bárbara Cossettin Costa Beber Brunini

Psicóloga Mestre em Psicologia e Sociedade pela UNESP/ SP, docente de graduação e pós graduação, professora convidada da Escola da Magistratura do Paraná e psicóloga concursada da prefeitura de Icaraima do Estado do Paraná e cedida ao Fórum da cidade de Icaraíma onde exerce a função de psicóloga jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CINQUE, Helena; SILVA, Vitória Carolina et al. Pedofilia: a ineficácia na punição e no tratamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4927, 27 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54486. Acesso em: 22 dez. 2024.

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