5 A JURISPRUDÊNCIA MAIS RECENTE SOBRE O TEMA
Colacionaremos alguns casos mais recentes, envolvendo o tema em comento, e teceremos alguns comentários sobre tais decisões, tudo à luz do que foi exposto neste artigo. Iniciamos, destarte, por um caso julgado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, in verbis:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PROCEDIMENTO DO JÚRI. DOLO EVENTUAL E HOMICÍDIO NO TRÂNSITO. DECISÃO DE PRONÚNCIA PARCIALMENTE MANTIDA. TENTATIVAS DE HOMICÍDIO DESCLASSIFICADAS. 1. DOLO EVENTUAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA. Não há impropriedade jurídica ao imputar-se o dolo eventual ao agente que, supostamente, excede a imprudência admissível ao agir do homem médio na condução de veículos automotores e causa danos à integridade física de terceiros. Excepcionalidades concretas que, se acolhidas pelos populares como verídicas, autorizam o deslocamento das figuras típicas de crimes culposos, previstos no Código de Trânsito, para dolosos, previstos no Código Penal [...].[2]
Com a devida vênia, o que se percebe, neste primeiro julgado, é que o relator sequer possui elementos suficientes que demonstrem o dolo eventual perante a teoria do consentimento ou da assunção, afirmando “suposta excedência à imprudência admissível” que, se aferível pelo corpo de jurados, autorizariam o reconhecimento de injusto tipicamente culposo como se doloso fosse. Ora, primeiro há de se reparar que não existe “imprudência admissível”, pois toda imprudência incidirá como culpa e culminará nas penalidades desta. Em segundo lugar, malgrado o princípio da soberania do veredicto do Júri, não cabe aos jurados tais contorcionismos teóricos, isto é, simplesmente pelo fato do júri popular aceitar como dolosa a conduta não significa que assim seja de acordo com todos os preceitos que aqui explanamos. Em verdade, o agente delitivo nem deveria estar sendo julgado pelo Conselho de Sentença do Júri Popular.
Dolo eventual é mais do que mera excedência à imprudência, é mais do que assumir o risco, como destaca Luís Regis Prado (2014, p. 406), para o qual no dolo eventual o agente deve prestar anuência, consentir, concordar com a efetivação do resultado, preferindo o risco de sua produção do que a renúncia à ação.
Para Busato (2014, p. 61), na praxe forense muitos julgadores deixam de lado a verificação teórica aprofundada, fazendo uma análise perfunctória que não examina todos os fundamentos nos quais se sustentam suas decisões. Percebe-se uma restrição ao chamado fato de “assumir o risco”, olvidando-se os elementos volitivos, repetindo-se a famosa e não satisfatória “fórmula de Frank”[3] Interessante lembrar que Tavares (op. cit., p. 344-345) critica a fórmula ora mencionada, afirmando que a mesma decorre de critérios subjetivos (internos do agente), que não podem ser avaliados objetivamente pelo direito penal.
Vejamos outro julgado:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TENTATIVAS DE HOMICÍDIO NO TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. PRONÚNCIA. IRRESIGNAÇÃO DEFENSIVA. Comprovada a materialidade, bem como presentes suficientes indícios da autoria do fato, imperativa a pronúncia do acusado. Eventual dúvida acerca do seu agir deverá ser dirimida pelo Conselho de Sentença, uma vez que, nesta fase do judicium accusationis, não se faz necessária prova inequívoca da autoria, mas mero juízo de admissibilidade da acusação. O fato de estar dirigindo embriagado e em velocidade excessiva, atingindo o veículo em que se encontravam as vítimas, que trafegavam pela via preferencial, aliado à dúvida acerca de ter ou não o réu assumido o risco de produzir o resultado, constituem elementos suficientes para encaminhar o acusado a julgamento perante o Conselho de Sentença, constitucionalmente eleito para a apreciação dos crimes dolosos contra a vida. Desclassificação para outro delito diverso dos dolosos contra a vida. Inviável neste momento processual, na medida em que não restou demonstrada estreme de dúvidas a ausência do animus necandi no agir do réu. Recurso improvido, por maioria.[4]
In casu, observamos novamente a carência de análise mais detalhada dos institutos da teoria geral do delito. O julgador, no sobredito recurso, além de manter a pronúncia do réu, ou seja, o juízo de admissibilidade para julgamento pelo Júri, comete também o equívoco de aduzir que não foi demonstrada a ausência de ânimus necandi. Ora, o aludido termo latino significa “intenção de matar”, isto é, consciência e vontade de ceifar a vida de outrem, o que sequer ocorre no próprio dolo eventual, tampouco nos injustos culposos.
Disso se extrai a falta de critérios analíticos e a repetição de frases já saturadas em nosso sistema jurisprudencial, como verdadeiros “padrões” de julgamento, o que nos leva a crer na constatação extraída do artigo de Lênio Streck (2012) de que “[…] os juízes primeiro decidem, depois buscam o fundamento[...]”
A polêmica do dolo eventual chegou novamente à Corte Maior. No dia 21 de julho do ano em curso, em julgamento acerca do Habeas Corpus N°121.624, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria dos votos, pela manutenção da pronúncia do réu ao Tribunal do Júri por crime de homicídio de trânsito com embriaguez e excesso de velocidade.
Vejamos o resumo publicado no sítio de internet do Excelso Pretório[5]:
1ª Turma nega desclassificação de homicídio doloso para culposo em caso de embriaguez ao volante
Por maioria de votos, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão nesta terça-feira (21), indeferiu o Habeas Corpus (HC) 121654, impetrado por G.H.O.B. contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que manteve seu julgamento pelo Tribunal do Júri de Belo Horizonte (MG) em decorrência de acidente de trânsito com morte. Denunciado por homicídio simples (artigo 121 do Código Penal), ele pretendia desclassificar a acusação para homicídio culposo na direção de veículo automotor (artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro). De acordo com os autos, o acusado foi pronunciado (decisão que submete o réu a júri popular) por homicídio pelo Juízo do II Tribunal do Júri de Belo Horizonte (MG) por ter provocado acidente de trânsito com vítima fatal quando, “em estado de embriaguez”, conduzia seu veículo pela contramão, com excesso de velocidade, na avenida Raja Gabaglia. Em julgamento de recurso, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) cassou a decisão e determinou a remessa do processo ao juízo comum de primeiro grau por entender que deveria ser aplicada ao caso a lei especial – o CTB. O STJ, acolhendo recurso do Ministério Público estadual, concluiu pela competência do Tribunal do Júri, sob o argumento de que a pronúncia representou apenas juízo de admissibilidade da acusação, limitando-se ao exame da ocorrência do fato delituoso e dos respectivos indícios de autoria. Segundo a decisão do STJ, a indicação pelo juízo de crime doloso contra a vida, circunstanciado pela embriaguez ao volante, pela condução do veículo na contramão, somados ao excesso de velocidade, assentam a competência do júri popular para examinar, com base em fatos e provas, se o acusado agiu com dolo eventual ou culpa consciente. O relator do processo, ministro Marco Aurélio, que havia concedido liminar para suspender o acórdão do STJ até o julgamento final do habeas corpus, votou pela concessão do pedido. Em seu entendimento, como o CTB prevê o homicídio culposo na direção de veículo automotor e, segundo o TJ-MG, não ficou configurado o dolo eventual, o caso deveria ser julgado pela Justiça comum de primeiro grau. Ele foi acompanhado pelo ministro Luiz Fux. A divergência foi aberta pelo ministro Edson Fachin, que entendeu não ser o caso de desclassificação da pronúncia, pois a embriaguez ao volante, a velocidade excessiva e a condução do veículo na contramão, no momento da colisão com o outro veículo, são indicativos de crime doloso contra a vida, o que demanda exame pelo conselho de jurados. O ministro salientou que a manutenção da competência do Tribunal do Júri não representa juízo de valor sobre o caso, mas apenas que deve ser do júri popular a decisão sobre se houve dolo ou culpa. Votaram no mesmo sentido os ministros Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, formando assim a corrente majoritária pelo indeferimento do HC e a revogação da liminar (grifos nossos).
Percebe-se, novamente, a velha e corriqueira fórmula “embriaguez + excesso de velocidade = dolo eventual.”, o que, a bem da verdade, pode preencher o elemento cognitivo (o agente prevê o resultado), conforme vimos anteriormente, mas não satisfaz o elemento volitivo (aceitação do resultado), sob o prisma da teoria adotada pelo diploma penal – teoria do consentimento.
Gize-se, ademais, não ser a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal se manifesta neste sentido, o que podemos confirmar no julgado seguinte:
HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE HOMICÍCIO PRATICADO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO PREVISTO NO ARTIGO 302 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. DEBATE ACERCA DO ELEMENTO VOLITIVO DO AGENTE. CULPA CONSCIENTE X DOLO EVENTUAL. CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. CIRCUNSTÂNCIA QUE OBSTA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO. REEXAME DE PROVA. ORDEM DENEGADA. I - O órgão constitucionalmente competente para julgar os crimes contra a vida e, portanto, apreciar as questões atinentes ao elemento subjetivo da conduta do agente aqui suscitadas – o Tribunal do Júri - concluiu pela prática do crime de homicídio com dolo eventual, de modo que não cabe a este Tribunal, na via estreita do habeas corpus, decidir de modo diverso. II - A jurisprudência desta Corte está assentada no sentido de que o pleito de desclassificação de crime não tem lugar na estreita via do habeas corpus por demandar aprofundado exame do conjunto fático-probatório da causa. Precedentes. III – Não tem aplicação o precedente invocado pela defesa, qual seja, o HC 107.801/SP, por se tratar de situação diversa da ora apreciada. Naquela hipótese, a Primeira Turma entendeu que o crime de homicídio praticado na condução de veículo sob a influência de álcool somente poderia ser considerado doloso se comprovado que a embriaguez foi preordenada. No caso sob exame, o paciente foi condenado pela prática de homicídio doloso por imprimir velocidade excessiva ao veículo que dirigia, e, ainda, por estar sob influência do álcool (grifo nosso), circunstância apta a demonstrar que o réu aceitou a ocorrência do resultado e agiu, portanto, com dolo eventual. IV - Habeas Corpus denegado. (grifou-se).[6]
Neste último, cita-se a decisão do Tribunal do Júri pela condenação do réu por prática de homicídio doloso, cujo dolo eventual foi presumido pelo mero fato do motorista/agente encontrar-se ébrio. Não é raro encontrarmos decisões como esta nos tribunais do país, fazendo-se a presunção do dolo pelo fato do agente estar sob influência de álcool, como se essa embriaguez fosse preordenada. A injustiça, nesses casos, é flagrante, assim como a insegurança jurídica que é gerada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto, constatamos que a distinção entre dolo eventual e culpa consciente segue sendo uma tarefa que representa imensa dificuldade no cenário jurídico-penal, e que, no crime de homicídio na condução de veículo automotor tem reflexos gravosos, pois pode culminar no julgamento do agente pelo Tribunal do Júri, com possível condenação a título de homicídio doloso e, consequentemente, com sanções desproporcionais do ponto de vista dogmático-penal.
Vimos que o reconhecimento do dolo eventual, no mais das vezes, decorre de interpretações equivocadas, ora por desconhecimento técnico, ora por pressão social e tendência à expansão do Direito Penal, passando este a ser utilizado como instrumento de controle, e não mais como um conjunto de regras de limitação da atuação punitiva do Estado. E o pior é que este clamor público por segurança decorre da difusão exacerbada de notícias criminais, que se prestam a alimentar o mercado midiático às custas da sensação de medo gerada na população.
Dessa forma, garantias e regras consagradas pela dogmática penal passam a ser inobservadas, desrespeitadas, buscando-se formas mais severas de combate à criminalidade. Com isto, interpretações distorcidas, como presumir o dolo no homicídio de trânsito pelo fato do condutor estar embriagado ou pelo excesso de velocidade, têm se tornado situações comuns nos tribunais nacionais.
Como já exposto, a mídia, a difusão do sentimento de medo e o populismo vingativo, colaboram com esta tendência expansionista e contrária à essência do Direito Penal, pois acredita-se, popularmente, que somente com punições severas e aplicação do Direito Penal Máximo será possível inibir a criminalidade.
Foi possível constatar, também, que a Lei Nº 12.971/14, embora não tenha apresentado considerável inovação no sentido de agravar a pena, criou uma circunstância qualificadora para o delito de homicídio de trânsito quando perpetrado por condutor “sob influência de álcool ou outra substância psicoativa.” (art. 302, §2o, CTB) Desse modo, buscou-se reforçar a proteção ao conceito doutrinário de que os crimes de trânsito, em regra, são culposos, e a exceção (dolo eventual) deve ser objetivamente demonstrada.
Todavia, muito recentemente, o artigo 6o da Lei N°13.281/16 veio revogar o §2o suprarreferido, o que produzirá seus efeitos assim que terminado o período de vacância da novel legislação (publicada em 05/05/2016, com vacatio legis de 180 dias, conforme art. 7o, II).
Verificamos, além disso, que o anteprojeto do novo Código Penal traz a figura da culpa temerária ou gravíssima, que há muito vem sendo estudada pela doutrina penal estrangeira, inclusive inserida em legislações de alguns países, e que representa um meio termo entre a culpa e o dolo. Esta talvez seja a solução mais viável para que se agrave a sanção daquele que dirige embriagado e causa a morte de outrem, sem que se despreze as garantias penais e as próprias regras dogmáticas.
Concluímos, com efeito, que não devem ser desrespeitadas as regras básicas do ordenamento jurídico, sobretudo no que tange à imputação delitiva, impedindo com isto uma situação de insegurança jurídica no cenário do Direito Penal brasileiro, com algumas decisões injustas, e até mesmo teratológicas.