INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo verificar a situação dos juízos proferidos hodiernamente acerca do crime de homicídio quando perpetrado no trânsito e por condutor em estado de ebriedade.
Para tanto, busca-se, no primeiro momento, demonstrar, por meio de pesquisa bibliográfica, todo o esforço doutrinário (de anos) no sentido de distinguir os institutos penais do dolo eventual e da culpa consciente, que há muito têm causado polêmica e decisões desiguais em casos semelhantes.
Versaremos sobre a embriaguez ao volante, não como crime autônomo, mas como meio de aferição que tem sido para a constatação do dolo eventual, mormente no delito em testilha. O objetivo central é demonstrar que tal postura não condiz com os pilares da doutrina geral do crime, nem com o sistema penal vigente, que tem a responsabilidade penal como subjetiva (devendo dolo ou culpa serem demonstrados no curso de um processo penal, jamais presumidos).
Ato contínuo, trataremos acerca da dogmática jurídico-penal, seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro, e sua importância enquanto Ciência do Direito Penal, razão pela qual não deve ser desprezada pelos operadores do Direito.
Cônscios de que toda distorção operada nesses institutos em apreço (dolo e culpa) tem uma ou mais causas, abordaremos sobre elas, bem como os efeitos que produzem no cenário jurídico-penal hodierno. A difusão [midiática] do medo, a criação de uma sociedade de riscos, do ambiente de insegurança que gera o clamor social como grande fomentador do expansionismo penal, da ideia de que “quanto mais leis, maior eficácia”, e do punitivismo vingativo desinente dos ideais de aplicação máxima do Direito Penal ou movimento Law and Order. [1]
Ressaltaremos os efeitos penais da aplicação do dolo eventual ao crime de homicídio praticado no trânsito.
Adiante, examinaremos as medidas legislativas que vêm sendo adotadas no sentido de minimizar a polêmica e abrir caminho para uma futura solução para o impasse, haja vista que o homicídio culposo prevê uma pena hoje considerada branda, enquanto que, ao contrário, o homicídio doloso possui pena muito rigorosa para tais casos, sendo ambas as previsões desproporcionais do ponto de vista doutrinário.
Por fim, não menos relevante, apresentaremos, a título exemplificativo, alguns julgados recentes sobre os casos em epígrafe, buscando discorrer sobre as decisões dos magistrados e ministros de forma crítica e construtiva, sempre tendo como esteio a doutrina penal e a busca pela segurança jurídica nas decisões. Não olvidemos o postulado de que “[…] os cidadãos devem saber o que precisam fazer para serem culpados, e o que precisam evitar para serem inocentes” (BECCARIA, 1764, p. 158).
1 DISTINÇÃO TEÓRICA ENTRE DOLO E CULPA
Via de regra, o homicídio causado por condutor de veículo se dá na forma culposa, tendo como tipificação o artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei Nº 9.507/95), com pena de detenção de dois a quatro anos, mais a sanção administrativa.
Em breve definição, Damásio E. de Jesus (2008, p. 73) afirma que o homicídio culposo de trânsito “é a morte de um homem provocada culposamente por outro na direção de veículo automotor.”
Contudo, há casos em que o homicídio de trânsito poderá ser entendido como doloso (art. 121, caput, do CP), por meio do chamado dolo eventual, instituto criado pela reforma penal de 1984 (Lei Nº 7.209/84) e inserido no artigo 18, inciso I, do Código Penal, mais precisamente, com a expressão “[…] ou assumiu o risco de produzi-lo”, consoante veremos. Em tais casos, a conduta será punível com pena de reclusão de seis a vinte anos, ou seja, nos moldes do homicídio executado com dolo direto.
Desse modo, temos como exceção à regra antes mencionada o homicídio de trânsito na forma dolosa. Eis, portanto, a questão: Como distinguir tais modalidades no crime em comento? A resposta não é simples, e é praticamente na tentativa de buscá-la que reside toda a polêmica envolvendo o assunto, conforme abordaremos alhures.
Importante destacar que, como neste artigo nos restringimos à análise do delito de homicídio perpetrado no trânsito por motorista embriagado, a modalidade de culpa que se manifesta em tais casos é a consciente, na qual o agente, ao ingerir bebida alcoólica, é capaz de prever o resultado lesivo, mas não o aceita, pois acredita honestamente que com suas habilidades conseguirá evitá-lo (CAPEZ, 2010, p. 234).
No cotejo entre os dois institutos (dolo eventual x culpa consciente), percebe-se que a distinção é de difícil análise, e, portanto, geradora de polêmica, incertezas jurídicas e, mormente, insegurança. Sobre tal dificuldade, temos o magistério de Welzel (1976, p. 100):
Delimitar el dolo eventual de la culpa consciente es uno de los problemas más dificiles y discutidos del Derecho Penal. La razón de esta dificuldad esta em que el querer es fenómeno anímico originário-último, que no puede ser reducido a otros processos anímicos – ni emocionales, ni intelectuales – y que por elle solo puede ser circunscrito pero no propriamente definido.
Para a doutrina majoritária, o Brasil adotou como critério de aferição do dolo eventual a denominada teoria do consentimento ou da assunção, o que significa, em linhas gerais, que além do conhecimento ou previsão de que o resultado possa ocorrer (elemento cognitivo), o agente deve, também, aprovar a conduta, em seu interior, isto é, no sentido de aceitar, conformar-se ou assumir o risco da produção desse resultado (elemento volitivo) (TAVARES, 2002, p. 339-341).
Nesta concepção teórica, Hans-Heinrich Jescheck (1981, p. 324) assevera que a configuração do dolo eventual “[...] exige que el autor debe haber 'aprobado' el resultado, que 'lo haya aceptado con sua aprobación' o que, finalmente, también hubiera actuado en caso de 'conocimiento seguro de el mismo”.
Da própria leitura do referido artigo 18, inciso I, do Código Penal, se infere a adoção da sobredita teoria.
No entanto, a jurisprudência brasileira é vacilante no que tange à distinção do dolo eventual da culpa consciente nos crimes de trânsito, sendo que, por vezes se adota a teoria do consentimento (posição majoritária), noutras a teoria da indiferença, e ainda, uma terceira corrente que adota a teoria da probabilidade (TAVARES, op.cit., p. 344-345), o que gera incertezas quanto à aplicação dos institutos penais e, por conseguinte, insegurança jurídica.
Obviamente, os defensores do reconhecimento do dolo eventual aplicam a estes casos a teoria da probabilidade, na qual basta que o agente tenha como provável a produção do resultado lesivo e, mesmo assim, continue agindo (TAVARES, op. cit., p. 336). A crítica doutrinária, neste ponto, opera no sentido de que “o conhecimento do perigo qualificado constitui somente indício de que o agente tenha assumido o risco da produção do resultado e não propriamente um critério identificador do dolo” (ibid.). No mais, ao que parece, reconhecer o dolo eventual com supedâneo na mera probabilidade, beira à responsabilidade penal objetiva, que deve ser evitada no ordenamento pátrio, face ao princípio da responsabilidade penal subjetiva, inclusive adotado pelo Código Penal em seu artigo 18 (GOMES, 2009, p. 35).
Retomando a distinção, podemos dizer que no dolo eventual há certa tolerância do agente em relação à produção do resultado, sendo ele indiferente quanto a tal consequência. Por outro lado, na culpa consciente, “[...] o agente não tolera o resultado, não o quer, não assume o risco nem é indiferente quanto à ocorrência do fato danoso” (CALLEGARI, 2009, p. 109). Nesses casos, por mais que o agente consiga prever a lesão ao bem jurídico, confia sinceramente na evitabilidade do resultado (JESUS, 2012, p. 343).
Um clássico exemplo que diferencia bem os institutos aqui versados é introduzido na doutrina por Claus Roxin (1997, p. 423-424), in verbis:
K y J querían robar a M. decidieron estrangularlo con una correa de cuero hasta que perdiera el conocimiento y sustraerle entonces sus pertenencias. Como se percataron de que el estrangulamiento podría conducir en determinadas circunstancias a la muerte de M, que preferían evitar, resolvieron golpearle con un saco de arena en la cabeza y hacerle perder la conciencia de ese modo. Durante la ejecución del hecho reventó el saco de arena y se produjo una pelea con M. Entonces K y J recurrieron a la correa de cuero que habían llevado por si acaso. Hicieron un lazo en torno al cuello de M y tiraron de ambos extremos hasta que aquél dejó de moverse. Acto seguido se apoderaron de las pertenencias de M. A continuación les sugirieron dudas sobre si M estaría aun vivo y realizaron intentos de reanimación, que resultaron inútiles. ¿Existe aquí una muerte doloso - eventual y por tanto un asesinato o sólo un homicidio imprudente?
No exemplo supra, em primeiro momento, os agentes confiam na evitação do resultado representado como possível, o que afasta a característica da conformação/aceitação. Já no segundo momento, com a retomada do plano original (estrangular a vítima com o cinto de couro para deixa-la inconsciente e subtrair seus pertences), fica demonstrada a alteração emocional, passando os agentes a “aceitarem” o risco de produzir o resultado lesivo (SANTOS, 2000, p. 72).
Na lição de Jescheck (1981, p. 269), “[...] dolo eventual significa que el autor considera seriamente como posible la realización del tipo legal y si conforma con ella.”
O que não se pode admitir é que o dolo eventual figure como estágio avançado da culpa, por ausência de uma pena mais elevada prevista em lei para tais casos. Em outras palavras, dolo e culpa são institutos distintos que em momento algum se fundem. Afinal, o dolo eventual tem efeito equiparado ao dolo direto, razão pela qual, “[…] no dolo eventual deve haver um grau de intensidade no tocante ao processo de produção do resultado que tenha carga equivalente àquela que se desenvolve com o dolo direto.” (TAVARES, op. cit., p. 347). Como leciona Fernando Diáz Palos, não se pode olvidar que dolo eventual “es dolo antes que eventual” (1953, p. 97).
2 A EMBRIAGUEZ AO VOLANTE E A APLICAÇÃO DO DOLO EVENTUAL
Curial tecermos alguns comentários sobre a embriaguez ao volante, uma vez que a proposta neste artigo é a análise do dolo eventual aplicado ao delito de homicídio de trânsito justamente por conta da ebriedade do agente delitivo.
Sabemos que, além da embriaguez, há outros aspectos que costumam servir de motivação para a aplicação do dolo eventual pelos julgadores, como por exemplo: uso de celular ao volante, participação em “racha”, excesso de velocidade, entre outros. Não obstante, repita-se, trataremos tão somente da embriaguez como causa ensejadora do dolo eventual no homicídio de trânsito, sob pena de demasiada extensão do presente artigo. Dada a justificativa, seguimos com a exposição.
A embriaguez ao volante encontra previsão legal no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro – Lei 9.503/97. Tal legislação impôs um marco limitador entre a embriaguez resultante em punição administrativa (multa) e àquela que culminará em sanção penal. Nesse âmbito, Luiz Flávio Gomes (2010, p. 1.101) explica que “[...] embriagado é o motorista que, na condução de veículo automotor, estiver com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, na exata dicção da atual redação do artigo 306 do CTB.”
Concernente à questão probatória, desde 2012 são admitidos como meios de prova, além dos exames de alcoolemia e clínico, vídeos, perícias, testemunhas, e outros meios probatórios permitidos em direito, exegese do §2° do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro.
Em relação ao concurso da embriaguez com o homicídio, tem sido mais frequente nos tribunais brasileiros a aplicação do princípio da consunção, respondendo o condutor embriagado tão somente pelo delito de homicídio culposo perpetrado no trânsito (art. 302 do CTB), face à absorção do crime de perigo (embriaguez ao volante) pelo crime de dano (homicídio de trânsito) (CALLEGARI, 2009b, p. 53-54).
Relevante frisar, também, que com o advento da Lei 11.705/98 (ao trazer nova regulamentação aos dispositivos do CTB) o injusto em questão deixou de ser causa majorante do crime de homicídio culposo de trânsito, tendo em vista a revogação do inciso V do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro. Com isto, a aludida conduta ficou com pena mais branda, situação que deveras incomoda ainda mais a sociedade, conforme veremos adiante.
No tocante às teorias do dolo eventual, repise-se, a jurisprudência pátria tem adotado a do consentimento ou assunção do risco, não bastando, assim, que o agente conheça (preveja) o risco de dirigir embriagado, mas também, se fazendo necessário que aceite, conforme-se, ou assuma o risco do resultado, elementos subjetivos que devem de alguma forma ser demonstrados (TAVARES, op. cit., p. 339).
Em suma, a embriaguez ao volante (resultante em homicídio no trânsito), de per si, não tem o condão de ensejar o dolo eventual, visto que, nesses casos, o agente não se embriaga com a finalidade de delinquir, ou seja, não se trata de uma embriaguez preordenada (CAPEZ, 2010, p. 338-342).
3 A IMPOSSIBILIDADE DE FLEXIBILIZAÇÃO DAS CATEGORIAS DA DOUTRINA GERAL DO CRIME
3.1 O DESPREZO PELA DOGMÁTICA PENAL
De início, importante desfazer a confusão que geralmente paira sobre este assunto, visto que muitos criticam a dogmática jurídica como se fosse sinônimo de “dogma”, de aceitação das regras sem discussão, como se fossem regras absolutas, imutáveis. Para tanto, citamos a lição de Miguel Reale (2001, p. 305):
O emprego do termo "Dogmático Jurídica" tem a sua explicação no seguinte fato: para nós, juristas, o Código Civil ou o Código Penal são posições normativas das quais temos de partir para nossa atividade prática. O civilista não pode ignorar, por exemplo, o art. 1.216 do Código Civil, mas deve tomar essa e outras normas como asserções, a partir das quais seu trabalho se processa [...]”
Em outros termos, não se está a defender uma ciência penal estática, mas sim a observação aos conceitos solidificados que alicerçam o Direito Penal vigente e limitam a técnica da hermenêutica jurídica e o arbítrio dos julgadores. Deve haver parâmetros bem delineados, para não nos perdermos em subjetivismos e para que a dogmática cumpra sua função de oferecer a aplicação de um direito previsível e seguro (MAGARIÑOS, 2000, p. 80).
Quanto à função, deve existir intrínseca relação entre a elaboração legislativa e o pensamento dogmático, para que haja maior segurança jurídica na criação das leis, pois estas últimas são previamente justificadas no âmbito dogmático-penal (MAGARIÑOS, op. cit., p. 81).
A dogmática jurídico-penal ganha maior relevo quando nos deparamos com a aplicação de um “Direito Penal Emergencial”, mais voltado à defesa do sistema econômico do que ao combate dos problemas sociais gerados, em parte, por este mesmo sistema (MAGARIÑOS, ibid.).
A finalidade essencial da dogmática penal é tornar o direito penal eficiente no sentido de assegurar a paz social, com a proteção de bens jurídicos relevantes, bem como, dar aos agentes delitivos uma resposta penal pautada em critérios de justiça, evitando-se, com isto, qualquer arbitrariedade (YACOBUCCI, 2000, p. 104-105).
Para Jescheck (1981, p. 58), “a dogmática penal, como ponte entre a lei e a prática, serve a uma aplicação do Direito Penal igualitária e em constante renovação, contribuindo assim para um alto grau de justiça.”
No entanto, cuidado! O termo “constante renovação”, utilizado pelo autor ora referido, não pode ser confundido com subjetividade, com a construção de um sistema aberto às arbitrariedades, às distorções do pensamento dogmático-penal. Nessa senda, Hegel (1990, p. 9) nos alerta sobre o perigo da subjetividade. Para ele, o direito e a realidade jurídica decorrem do pensamento, de forma racional e determinada. Já no sentimento é onde se esconde a subjetividade e o caminho para o arbítrio. Na mesma obra, Hegel assevera que o direito é a razão em cada coisa, não permitindo a degeneração do subjetivo em particularismos.
Os limites semânticos da dogmática não podem dar azo ao arbítrio do intérprete, ou seja, permitir que este reformule e flexibilize, a seu bel prazer ou mesmo atendendo a clamores, as categorias da teoria geral do delito (STRECK, 2014).
Vimos, anteriormente, que dolo e culpa não se confundem, não podendo aquele ser o ápice desta, isto é, pretendendo-se punir com maior rigor determinados crimes, deve o legislador prever isto, e não o julgador o fazer por meio de distorções teóricas.
Não é o caso de defender a conduta do agente que dirige embriagado e causa morte no trânsito, mas sim, a aplicação adequada do direito, sem arbítrios, sem desigualdades. Sabemos, mais do que nunca, que, nesses casos, a população clama por uma maior repressão, por uma resposta mais efetiva e eficaz do aparato repressor estatal, sendo a punição a título de culpa considerada branda demais. Entretanto, não se pode dar margem ao expansionismo penal, aplicando o dolo onde existe culpa, por meio do famigerado dolo eventual.
Na prática, tem-se visto, cada vez mais, o emprego do discurso raso da assunção do risco, como forma de colocar o dolo eventual ao lado da culpa, e com total desprezo à dogmática penal sobre a qual tecemos comentários acima. Acerca da “assunção do risco”, discorrem Zaffaroni e Pierangelli (2013, p. 48) que “[…] não há uma aceitação do resultado como tal, e sim sua aceitação como possibilidade, como probabilidade” [...], o que, teoricamente, se amolda à culpa consciente. Em outros dizeres, o agente pode optar por uma conduta arriscada e com isto ser imprudente, o que representa uma das modalidades do crime culposo.
De acordo com Greco (2009, p. 210-213):
Imagine o exemplo daquele que, durante a comemoração de suas bodas de prata, bebe excessivamente e, com isso, se embriaga. Encerrada a festividade, o agente, juntamente com sua esposa e três filhos, resolve voltar rapidamente para a sua residência, pois que queria assistir a uma partida de futebol que seria transmitida pela televisão. Completamente embriagado, dirige em velocidade excessiva, a fim de chegar a tempo para assistir ao início do jogo. Em razão do seu estado de embriaguez, conjugado com a velocidade excessiva que imprimia a seu veículo, colide o seu automóvel com outro, causando a morte de toda a sua família. Pergunta-se: Será que o agente, embora dirigindo embriagado e em velocidade excessiva, não se importava com a ocorrência dos resultados? É claro que se importava”.
Importante, repise-se, tomarmos com clareza tais definições, uma vez que se expande no Brasil a aplicação distorcida do dolo eventual como panaceia, sobretudo naqueles casos em que a punição a título de culpa não se mostra satisfatória – é o caso do homicídio de trânsito sobre o qual versamos.
3.2 O CLAMOR SOCIAL E A TENDÊNCIA DE EXASPERAÇÃO DA RESPOSTA PENAL
Como já aludido, presenciamos uma forte tendência ao expansionismo penal, impulsionada por diversos fatores, dentre estes a complexidade da vida social e o surgimento de novos bens jurídicos a serem tutelados e, com isto, novos riscos. Neste contexto moderno, surge o que Bauman (2010, p. 74) denomina de “ambiente de insegurança”. Para ele (op. cit., p. 74-76), os receios são difundidos rapidamente no meio social, fortalecendo a ideia de sociedade de risco ou sociedade de insegurança, fazendo com que o medo “[…] seja explorado política e comercialmente […]” e, assim, “[…] os políticos e os vendedores de bens de consumo acabam transformando este aspecto em um mercado lucrativo.”
Para Navarro (2005, p. 4), a difusão do medo e da insegurança em relação aos delitos, pode ser descrito como:
Como la percepción que tiene cada ciudadano de sus próprias probabilidades de ser víctima de un delito, aunque también se puede entender como la simple aprensión de sufrir un delito, si atendemos tan solo al aspecto emocional y no a lo juicios racionales de esse ciudadano. De hecho, la carga emotiva suele permanecer, pués, segundo numerosos estúdios empíricos, el miedo al delito no se relaciona com las posibilidades reales de ser víctima, esto es, no responde a causas objetivas y externas.
Juntamente com essa sensação de demasiado receio, intensamente difundida pela mídia, surge na sociedade o que Luiz Flávio Gomes (2012) chama de “sentimento populista e vingativo”, que, segundo ele, “[…] toma conta tanto do mundo ocidental civilizado (países centrais) como dos países periféricos[...]”, e no qual “[…] a dor e o sofrimento daquele que deve (do criminoso devedor) serviria como equivalente ao desprazer causado pela promessa não cumprida (pela violação da norma).”
Não só o sentimento vingativo exsurge, mas também o clamor por medidas prementes, contemplando-se a denominada “cultura da emergência”, gerando a criação de legislações emergenciais e pouco criteriosas (CEPEDA, 2007, p. 31). A isto também se denomina “direito penal simbólico.” (SANTORO FILHO, 2002).
A ideologia da “defesa social” vem sendo amplamente aceita, e se manifesta em ações meramente paliativas por parte do Estado, como a criação de leis em demasia, sem rigor técnico, sem eficiência, mas com a missão de transmitirem uma falsa sensação de tranquilidade, de controle, quando na verdade o que ocorre é a omissão estatal na elaboração de políticas de prevenção ao crime (MENDOZA BUERGO, 2001, p. 32). É neste cenário, de tendência extremista, que, consoante magistério de Díez Ripollés (2007, p. 137), “[...] se considera razonable uma certa flexibilización de los requisitos de la causalidade o de la culpabilidade [...].”
Toda esta deturpação, representada pelo expansionismo penal, acaba por distorcer teorias consagradas pela dogmática penal. Exemplo disso é a “[…] construção do dolo sobre a base do simples conhecimento (teoria do conhecimento, a qual veremos alhures), que lhe permite abarcar campos antes considerados próprios da negligência.” (ZAFFARONI, 2011, p. 14). Tudo isto para dar uma resposta célere à população. Os efeitos disso abordaremos a seguir.
3.3 OS EFEITOS DO RECONHECIMENTO DO DOLO EVENTUAL NO HOMICÍDIO DE TRÂNSITO PERPETRADO POR MOTORISTA ALCOOLIZADO
O delito de homicídio de trânsito na modalidade culposa tem como sanção punitiva privativa de liberdade a detenção de dois a quatro anos, cumulada com a pena restritiva de direitos, qual seja, “a suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor” (art. 302, CTB) (NUCCI, 2008, p. 1.111).
Ocorre que, quando interpretado como injusto doloso, o crime de homicídio perpetrado no trânsito passa a encontrar adequação típica no artigo 121 do Código Penal, recebendo, portanto, o tratamento jurídico dispensado ao delito de homicídio simples doloso, com penas de seis a vinte anos de reclusão.
Neste novo contexto, dois efeitos passam a representar imenso prejuízo ao agente delitivo, quais sejam: a possibilidade de pronúncia ao Tribunal do Júri e de ergástulo preventivo, institutos respectivamente elencados no artigo 5º, XXXVIII, alínea d, da Constituição Federal, e artigo 313 do Código de Processo Penal (TASSE, 2008, p. 33).
No mais, é reconhecido por parte da jurisprudência que a aplicação do dolo eventual, salvo exceções, fere o princípio da especialidade, haja vista que a legislação de trânsito (especial) prevalece sobre o diploma penal (geral) (RSE 20070111242232-DF).
Dessa forma, outra consequência que se pode apontar é o desprezo a um princípio consagrado no Direito, que é o princípio da especialidade, pelo qual a norma especial deve prevalecer sobre a geral. Utilizando de analogia, Fernando Capez (op. cit., 2010) diferencia a norma especial da geral, afirmando que “[...] é como se tivéssemos duas caixas praticamente iguais, em que uma se diferenciasse da outra em razão de um laço, uma fita ou qualquer outro detalhe que a tornasse especial. Entre uma e outra, o fato se enquadra naquela que tem o algo a mais.”
Nota-se, portanto, que com o reconhecimento do dolo eventual nos homicídios de trânsito, passa-se a uma pena de dois a quatro anos de detenção a uma pena de reclusão de seis a vinte anos, equiparando-se o causador àquele que age com dolo direto, o que deveras, ao nosso sentir, soa desproporcional.