Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Os efeitos da fertilização in vitro em caso de divórcio

Exibindo página 1 de 2
Agenda 27/03/2017 às 15:40

Uma pessoa poderia ser forçada a aceitar a maternidade/paternidade? Ou ainda, poderia ser forçada a privar-se de seu direito a maternidade/paternidade? A quem caberá resolver essas questões: o pacta sunt servanda ou a bioética?

A reprodução humana sempre foi uma questão emblemática na história da humanidade, sendo prevista até mesmo em documentos legislativos, tais como o Código de Hamurabi, 2000 a.C., e o Código de Manu, 1200 a.C.

Na Antiguidade, de acordo com o livro A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, o pater família contava com os banquetes fúnebres ofertados pelos seus descendentes para garantir sua felicidade, pois se acreditava que, se cessassem, ele poderia se tornar um ser infeliz e até mesmo um demônio.

Por conta dessa preocupação, criou-se o entendimento de que toda família deveria se perpetuar para sempre. Logo, a existência de um varão se tornou necessária para garantir as ofertas ao túmulo e a felicidade do pater.

Tem-se como exemplo os relatos hindus: “A extinção de uma família causa a ruína da religião da mesma; os antepassados, privados das ofertas, precipitam-se na morada dos infelizes[1]”

Desta forma, o casamento era obrigatório, e tinha por finalidade unir duas pessoas do mesmo culto doméstico para que delas nascesse um filho apto a perpetuar a religião.

O problema se dava em casos de infertilidade, tema que sempre foi abordado como dano, isolamento, perda, medo, e até mesmo violência doméstica.

Ao longo dos séculos, buscou-se solucionar inúmeras patologias causadoras da infertilidade, desenvolvendo-se diversas técnicas de reprodução artificial assistida.

Nos dizeres de Renata da Rocha:

A reprodução assistida, além de poder ser utilizada como terapia para superar a incapacidade d, ou mesmo dificuldade física de ordem natural do ser humano, também pode ser utilizada para fins espúrios. Isso porque, por meio da reprodução humana assistida, é permitido ao médico identificar o conteúdo genético das células germinativas e dos embriões, sendo possível intervir geneticamente para evitar o desenvolvimento de um feto portador de determinada doença genética, bem como garantir a presença de certos fenótipos.[2]

Dentre um vasto conjunto de técnicas de reprodução assistida se encontra a fertilização in vitro, ou seja, a fecundação que se dá fora do útero.

A técnica de fertilização in vitro é capaz de produzir um grande número de embriões a partir da doação de óvulos e espermatozoides, sendo que apenas alguns são implantados, e os demais são colocados em câmaras de criopreservação.

De acordo com a resolução 1957/2010 do Conselho Federal de Medicina, o casal, no momento da contratação do serviço da fertilização in vitro, deve convencionar o destino dos embriões em caso de morte de um ou de ambos os cônjuges; doença grave ou em caso de divórcio, podendo o consentimento ser revogado até o momento da implantação do embrião.

Entretanto, o impasse jurídico a ser estudado neste artigo ocorre nos casos em que há divergências no destino dado aos embriões quando há divórcio do casal. O que se indaga é se uma pessoa poderia ser forçada a aceitar a maternidade/paternidade. Ou ainda, se seria uma pessoa privada de seu direito a maternidade/paternidade.

A resposta não é pacífica devido à alta complexidade da questão. O objetivo deste artigo é investigar como a legislação brasileira e a alienígena lidam com a questão da fertilização in vitro e o divórcio.


BIODIREITO, BIOÉTICA E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA:

Conceito e Princípios jurídicos:

Entende-se por Bioética a busca de humanização do progresso científico e de seus resultados, que se deram através de uma conscientização científica.

Nas palavras de Maria Helena Diniz[3], a bioética seria um conjunto de reflexões filosóficas e morais sobre a vida em geral e sobre as práticas médicas em particular.

Entre os anos setenta e oitenta, atribuiu-se à bioética princípios norteadores, os quais têm por finalidade proteger a pessoa humana. A saber são: a não maleficência, justiça, beneficência e autonomia.

No princípio da autonomia, o profissional da saúde deve respeitar a vontade de seu paciente, levando em conta seus valores morais e crenças religiosas. Assim, o paciente capaz civilmente pode fazer suas opções e ter autonomia sobre a sua própria vida sem qualquer influência, podendo negar receber um tratamento que fira seus princípios.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Por sua vez, o princípio da beneficência dispõe que é a obrigação do médico dar atendimento aos interesses dos pacientes, evitando qualquer possível dano e devendo empregar todos os meios possíveis. Esse princípio tem raiz na tradição de Hipócrates, que possuía o imperativo de que o tratamento deveria sempre ser utilizado para o bem-estar do paciente, nunca para prejudicá-lo.

Já o princípio da não maleficência, de acordo com Maria Helena Diniz, é: “um desdobramento do da beneficência, por conter a obrigação de não acarretar dano intencional e por derivar da máxima da ética médica: primum non nocere”. Ou seja, não fazer o mal, significando que o profissional não deve praticar atos que prejudiquem o paciente.

Por fim, o princípio da justiça é aquele que exige a imparcialidade na distribuição de riscos e benefícios no que tange à prática médica, pois, de acordo com o princípio da igualdade, os iguais deverão ser tratados igualmente.

Muito embora a Bioética tenha tentado assegurar valores morais e éticos, garantindo a humanização do processo, houve a necessidade da criação de outra ciência, o Biodireito, capaz de disciplinar tais avanços conforme o ordenamento jurídico.

Biodireito no Estado democrático de Direito:

É fato que as inovações médicas mexeram com as estruturas da sociedade, prologando e abreviando a vida humana, curando doenças até então incuráveis.

No campo da genética e da embriologia, tais inovações geraram diversos problemas éticos, morais, religiosos e jurídicos. Isso porque tais conhecimentos podem ser utilizados para beneficiar a humanidade, ou ainda para serem utilizados indevidamente, com riscos inimagináveis.

Dessa forma, a criação de instrumentos jurídicos que tutelassem adequadamente tais técnicas, a fim de evitar consequências indesejadas, era indiscutível.

De acordo com Zélia Maria Cardoso Montal:[4]

O direito não deve permanecer alheio às constantes e múltiplas transformações do mundo, que ocorrem na atualidade. A mantença de um pensamento retrógrado parece inadmissível, não sendo possível que as sociedades conservem os olhos fechados para os acontecimentos da realidade em que se inserem, sob pena de pagarem um preço muito alto por essa desídia, pela omissão ou pelo apego exagerado às tradições. (...)

Ainda nesse sentido, nas palavras de Miguel Carlos Mádero:

O Biodireito, portanto, tem por objeto regular e ordenar a atividade científica de acordo com a Constituição Federal, incumbindo-lhe criar instrumentos e indicar procedimentos apropriados para orientar condutas diante dos problemas suscitados pelas novas tecnologias, bem assim prever punições no caso de ocorrerem hipóteses de mau uso da liberdade de pesquisa científica e da qual resulte risco à integridade da pessoa humana, à sua liberdade, vida e dignidade.[5]

No Brasil, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso IX, tutelou a liberdade da atividade científica, devendo ter como paradigma o respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento norteador do Estado Democrático de Direito (presente no artigo 1º da Constituição Federal Brasileira), não aceitando qualquer técnica que reduza a pessoa humana à condição de coisa.

Assim sendo, o avanço científico não pode ser impedido, mas deve ser realizado sob a tutela do ordenamento jurídico, garantindo o Estado democrático de Direito.


DESENVOLVIMENTO DO INSTITUTO FAMÍLIA:

A família é o núcleo base da sociedade, formada por laços sanguíneos ou de afinidade, em que repousa toda a organização social, sendo que ela tem sofrido diversas reconfigurações ao longo dos anos.

Em um primeiro momento da história, na Antiguidade, a falta de afeto entre os membros familiares era evidente. A família tinha por finalidade a conservação do patrimônio e preservação dos cultos domésticos.

Fustel de Coulanges, em seu livro A cidade Antiga[6], relata a importância dos descendentes:

Vimos acima que o homem, depois da morte, era considerado pessoa feliz e divina, com a condição, porém, de que os vivos lhe oferecessem continuamente banquetes públicos. Se essas ofertas cessassem, o morto decairia para uma esfera inferior, tornando-se demônio desgraçado e malfazejo. Porque, quando as antigas gerações começaram a imaginar a vida futura, não pensaram em recompensas e castigos; acreditaram que a felicidade do morto não dependia da conduta que havia tido em vida, mas da que seus descendentes tinham a seu respeito. Por isso cada pai esperava da sua posteridade a série de banquetes fúnebres que devia assegurar a seus manes repouso e felicidade.

Tal estrutura foi abalada com a chegada do Cristianismo. Através de cerimônias religiosas, homem e mulher se tornariam um só, sendo inseparáveis.

Diante de tal fato, um dos deveres do casal era gerar descendentes, podendo se encontrar relatos em diversas passagens bíblicas, como em Gênesis, capítulo 9, versículo 1: “Deus abençoou Noé e seus filhos: "Sede fecundos, disse-lhes Ele, multiplicai-vos e enchei a terra”.

Com o passar dos séculos, a família passou por diversas modificações, sendo que, atualmente, o seu conceito foi flexibilizado, passando a ser considerado como família moderna.

A Constituição Federal Brasileira de 1988 garante, em seus artigos 226, §7º, e 27, §1º, inciso I, o direito de constituir, planejar uma família, bem como sua proteção.

A família moderna se caracteriza pela diversidade, pela busca de afeto e felicidade. Com o auxílio das técnicas de Reprodução Assistida, permitiu-se aos casais inférteis a chance de construir uma família, bem como a possibilidade de existência de outros tipos familiares, diversos da família tradicional cristã, ideia que até então era inconcebível.


TIPOS DE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA:

De acordo com as estatísticas da Organização Mundial da Saúde, pelo menos 15% dos casais atualmente apresentam algum problema de fertilidade. É possível que em algum momento de suas vidas esses casais se valerão das técnicas de reprodução assistida para sanar tal problema.

Esses recursos são utilizados para facilitar a reprodução humana, possibilitando que casais que possuem algum tipo de obstáculo, sejam capazes de sanar esse obstáculo.

Dessa forma, de acordo com Renata Rocha, define-se a reprodução assistida como:

A reprodução humana medicamente assistida é a prática terapêutica que tem por fim promover a realização de um projeto parental e se verifica por meio da união artificial dos gametas feminino e masculino, que são as células germinativas, dando origem, assim, a um novo ser.[7]

Na legislação vigente não há qualquer lei específica que regulamente tais técnicas. Atualmente, a Resolução 1957/2010 do Conselho Federal de Medicina normatiza, dentre vários outros pontos, a utilização de reprodução assistida.

Dessa forma, a reprodução assistida se divide:

Inseminação Artificial:

A Inseminação Artificial consiste em injetar, diretamente ao colo do útero ou na vagina da mulher, o espermatozoide colhido. Isto é, diminui o percurso feito pelo espermatozoide, já que os anticorpos do colo de útero feminino podem matá-los; ou ainda, quando nos casos em que o parceiro não produz espermatozoides suficientes, sendo eles coletados e tratados para aumentar a possibilidade.

Fertilização in vitro:

Esse método é popularmente conhecido como “Bebê de Proveta”, um avanço histórico ocorrido em 1978, com o nascimento de Louise Brown, na Inglaterra.

Nessa técnica há a manipulação extracorpórea dos gametas femininos e masculinos. Ou seja, em um tubo de ensaio, fecunda-se o óvulo e o espermatozoide formando o zigoto fora do corpo feminino.

Em um primeiro momento, através de drogas, estimula-se a produção de mais óvulos femininos. Eles são retirados e colocados em recipientes com espermatozoides para que haja a fecundação.

Após isso, tais ovos são colocados em estufas para que se tenha a divisão celular, para que futuramente sejam inseridos no útero feminino.

Ainda há que se falar em uma outra modalidade de fertilização in vitro: a injeção intracitoplasmática de espermatozoide, sendo que cada espermatozoide é injetado dentro de cada óvulo. Tal método é utilizado quando a infertilidade é masculina.


CONSENTIMENTO INFORMADO AOS OLHOS DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.

De acordo com a resolução nº 1.957/2010, do Conselho Federal de Medicina, em seu quinto inciso, item 3, no momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem, por escrito, expressar o destino dos embriões em caso de divórcio, morte ou doença grave ou quando desejarem doá-los.

Tal consentimento visa exercer a autonomia do casal, por isso é indispensável que sejam cumpridas as condições essenciais para a validade do ato: intenção, compreensão e ausência de influências controladoras.

De uma forma mais simplificada, além do desejo do casal em ter os embriões fecundados, o consentimento e o procedimento devem ter sido compreendido claramente, principalmente no que tange ao destino do excedente, evitando qualquer discussão futura.

Além da intenção e compreensão, o casal deve estar livre de influências controladoras, tal como a coação, violência física ou psíquica empregada para que alguém seja forçado a manifestar uma vontade diversa do que gostaria. Assim, havendo a presença de tal influência inibidora da autonomia, o negócio jurídico é considerado nulo.

 Natureza Jurídica do Consentimento:

Resta saber a natureza jurídica deste consentimento.

O consentimento informado é um instrumento jurídico estipulado pelas partes, isto é, o casal contratante e a clínica de fertilização, que deverá obedecer às regras não apenas do Conselho Federal de Medicina, mas também da Constituição Federal, do ordenamento jurídico e das fontes do direito.

O conceito de contrato, nas palavras de Maria Helena Diniz, é:

Contrato é o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial.[8]

Ora, é possível concluir que o destino dado aos embriões pode ser considerado um contrato firmado entre os cônjuges ou companheiros e a clínica, mesmo que não tenha sido registrado em cartório, uma vez que foi a manifestação da autonomia da vontade das partes.

Como todo negócio jurídico, o consentimento necessita para sua validade os requisitos do art. 104 do Código Civil, a saber: capacidade, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não em lei.

De acordo com a doutrina majoritária, os requisitos subjetivos são: existência de duas ou mais pessoas, capacidade, aptidão especifica para contratar e o consentimento das partes.

É certo que, como todo negócio jurídico é bilateral ou plurilateral, há a necessidade da existência de mais de uma pessoa. Assim, o casal deve estar presente no ato de consentir o destino dos embriões, a decisão não pode ser tomada só por um dos cônjuges.

Um segundo ponto dos requisitos subjetivos é a capacidade. Por exclusão, são capazes aqueles que não se encontram nos artigos 3º e 4º do Código Civil, sob pena de o contrato ser nulo ou anulável.

Por sua vez, a aptidão específica, que é a limitação à liberdade de celebrar determinados contratos, como por exemplo contratar o serviço de fertilização in vitro sem o consentimento do cônjuge.

No que tange ao consentimento das partes contratantes, o contrato surge do acordo de duas ou mais vontades, livres de vícios (erro, dolo, coação, lesão, entre outros), que assegurarão a validade do negócio jurídico.

De outro lado, os requisitos objetivos são aqueles referentes ao objeto do contrato, ou seja, à obrigação constituída.

Nas palavras de Maria Helena Diniz, a licitude de seu objeto:

Que não pode ser contrário à lei, à moral, aos princípios da ordem pública e aos bons costumes. Assim ilícitos e inválidos serão os negócios que ajustem pagamento pelo assassinato de alguém, que favoreçam a exploração do lenocínio, a usura, o concubinato, os jogos de azar, o exercício ilegal de uma profissão, que excluam os direitos de família (...).[9]

A possibilidade jurídica do objeto discorre sobre a possibilidade de se vencer o obstáculo de sua realização, evitando contrariar as leis físico-naturais, forças humanas ou sua inexistência.

Por fim, a determinação de seu objeto, uma vez que este deve ser certo ou determinável, isto posto que os embriões têm tais características.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VELOSO, Jéssica. Os efeitos da fertilização in vitro em caso de divórcio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5017, 27 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55792. Acesso em: 22 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!