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O transporte aéreo de carga e a decisão de repercussão geral do STF

Agenda 10/06/2017 às 15:00

O STF, em decisão de repercussão geral, decidiu que, nos casos de extravio de bagagens em transportes aéreos, prevalecerá a aplicação da Convenção de Montreal sobre o CDC. E quanto ao extravio ou avaria de cargas?

No dia 25 de maio de 2017, o Supremo Tribunal Federal decidiu, nos autos do Processo do Recurso Extraordinário no 636331-RJ, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, que aos casos de extravios de bagagens em transportes aéreos de passageiros, aplica-se a Convenção de Montreal, ao invés do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. 

A decisão se deu em um caso chancelado como de “repercussão geral”, razão pela qual seu conteúdo tem sido alvo de justificável preocupação por parte do mercado segurador brasileiro. 

No dia seguinte à decisão, fizemos correr pelos maios diversos meios a seguinte mensagem, na forma de carta aberta, aos executivos e advogados das principais seguradoras brasileiras ou transnacionais com atuação no país: 

Caros amigos do MERCADO SEGURADOR 

Ontem, o Supremo Tribunal Federal, em um litígio cunhado como de “repercussão geral” decidiu que a Convenção de Montreal se sobrepõe ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor em casos de extravio de bagagens nos transportes aéreos de passageiros. 

Referida decisão não afetará os casos de transportes aéreos de cargas. 

Claro, será um argumento a mais aos advogados dos transportadores aéreos nos litígios com vistas à defesa da limitação de responsabilidade. Mas, não temos motivos para temer mudança de posição do Superior Tribunal de Justiça, a quem compete a palavra final nos casos de nosso imediato interesse. 

Justificamos: faz tempo que não invocamos mais, como advogados, a legislação consumerista para combater a limitação de responsabilidade. Nós temos usado, com sucesso, a própria Convenção de Montreal, explicando que ela mesma contém normas de calibragem que dizem que a limitação prevista em seu conteúdo não se aplica em casos marcados pela culpa grave do transportador e/ou de meros inadimplementos contratuais. 

A limitação de responsabilidade só tem cabimento nos casos de acidentes de navegação aérea sem a presença da culpa grave do próprio acidentado, o transportador. 

Claro que haverá alguma confusão inicial e não negamos risco de eventuais derrotas em primeiro e segundo graus de jurisdição; todavia, confiamos e muito na palavra final do Superior Tribunal de Justiça que já sinalizou que manterá sua orientação contra a indenização tarifada, até por conta de recente e paradigmática decisão do Ministro Bellizze que ponderou que a limitação não tem mais sentido nos dias de hoje, devido ao alto desenvolvimento da indústria aeronáutica. 

Prepararemos, em breve, CARTA ABERTA AO MERCADO SEGURADOR, com detalhes a respeito. 

Por enquanto, apenas tranquilizamos os amigos e enfatizamos que a referida decisão diz respeito aos extravios de bagagens, não aos danos, faltas e avarias, em cargas. 

Obrigado. Com os cumprimentos, 

Nosso objetivo foi o de alertar sobre possível erro de interpretação da verdadeira extensão do “decisum” em destaque. Isso porque temos medo que mais um lugar-comum reine no mundo prático do Direito, causando grandes prejuízos. 

Ora, não nos parece que a decisão alcance os casos envolvendo os faltas e avarias em transportes aéreos de cargas. 

Importante atentar que a decisão foi proferida em um litígio envolvendo extravio de bagagem, não inadimplemento de obrigação contratual de transporte de carga. Duas situações absolutamente distintas e que, portanto, reclamam soluções jurídicas igualmente distintas. 

No caso do extravio de bagagem quase nunca se consegue demonstrar, com segurança, o que de fato havia na peça extraviada e o verdadeiro montante do prejuízo suportado pelo usuário do serviço, ao passo que no transporte de carga tem-se plena ciência do valor exato do bem extraviado ou avariado, uma vez que demonstrado e comprovado por meio de muitos documentos e instrumentos. 

Logo, a tarifação, que tem alguma razão de ser em um caso, mostra-se completamente inócua noutro. Não há espaço para dúvida ou eventual má-fé no transporte de bem, mercadoria, porque documentalmente provado seu valor exato. 

Outra coisa que não pode ser de modo algum desconsiderado pelo intérprete e aplicado do Direito é que, no transporte de carga, a aplicação ou não do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, nunca foi a questão prioritária dos litígios judiciais. Com efeito, a legislação consumerista era a fonte legal invocada pelos consumidores, quase que exclusivamente, nos extravios de bagagens por se tratar de transportes de pessoas. 

Não é nosso propósito criticar a decisão em si, mas tratar do seu alcance, mas convém dizer que não andou bem o Supremo Tribunal Federal ao se basear apenas no Direito das Gentes para impor a Convenção de Montreal em detrimento da legislação consumerista, desconsiderando quase duas décadas de robusta jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal da cidadania e o que normalmente trata de casos de transportes aéreos de pessoas e coisas. 

De todo modo, o que acontecia normalmente no transporte de pessoas, não se repetia no de cargas, pois a legislação consumerista raramente era invocada e, mesmo assim, em caráter subsidiário, segundo a dinâmica do diálogo entre as fontes legais. 

Nos casos de transporte de coisas, cargas, era e é invocado o Código Brasileiro do Ar, o Código Civil, regras especiais e extravagantes, e, de vez em quando, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Por isso que a decisão pouco ou nenhum impacto gerará, entendemos, nos casos de nosso imediato interesse, relativos aos transportes de cargas. 

Até porque a Convenção de Montreal nunca foi negada, mas apenas reclamada sua justa interpretação e, mais ainda, correta incidência. 

Isso porque a própria Convenção de Montreal dispõe de norma que determina que a limitação tarifada somente terá cabimento quando o sinistro não for marcado com o signo da culpa grave do transportador ou quando decorrer de fato da navegação aérea, sem a presença da mesma culpa grave. 

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Assim, é certo dizer que a Convenção de Montreal possui mecanismo de calibragem ao benefício que concede ao transportador, reduzindo o campo de abrangência e não desconsiderando o percalço da culpa grave. 

Sucessivos erros de interpretação e de aplicação da própria Convenção fizeram com que parte da comunidade jurídica acreditasse que a limitação tarifada se aplicava aos casos todos, incluindo os inadimplementos contratuais imotivados ou gravemente culposos e, não, apenas aos derivados de acidentes de navegação. 

E, por conta disso, tudo que estamos muito seguros que os órgãos monocráticos e colegiados do Poder Judiciário não aplicarão a limitação tarifada da Convenção de Montreal em casos outros que não sejam, apenas, os relativos aos extravios de bagagens. 

Nesse sentido, preparamos um tópico especial nas petições iniciais de ações regressivas de ressarcimento movidas por seguradoras legalmente sub-rogadas nas pretensões dos embarcadores ou consignatários de cargas contra os transportadores aéreos. 

A saber: 

DA DECISÃO DO STF E DO SEU ALCANCE 

A recente decisão do STF com o selo de repercussão geral não se aplica ao caso concreto

Com efeito, uma coisa é o extravio de bagagem, outra, bem diferente, é o inadimplemento contratual por faltas ou avarias em transportes de cargas. 

A incidência ou não do CDC, em verdade, era e é pouco relevante, pois abundam regras no sistema legal brasileiro dispondo sobre a responsabilidade civil objetiva do transportador aéreo de carga. 

Logo, a primazia da Convenção de Montreal em nada afetará uma disputa judicial fundada na inexecução imotivada da obrigação de transporte aéreo de carga. 

Talvez, a questão polêmica resida apenas na aplicação ou não da limitação de responsabilidade do transportador aéreo, também conhecida como limitação tarifada, expressamente prevista na Convenção de Montreal. 

Ora, muito aproveita dizer que existe um lugar-comum sobre o assunto e que não pode ser deixado de lado, sob pena de grave injustiça e, mesmo, erros de interpretação e de aplicação da própria Convenção de Montreal. 

Referida Convenção dispõe que a limitação de responsabilidade em favor do transportador aéreo tem cabimento em sinistro de navegação e/ou quando o caso concreto não apontar culpa grave. 

Ora, um acidente de navegação pode ser traduzido como algo grave, especialmente danoso, como a queda de uma aeronave, não como o descumprimento de obrigação contratual de resultado por conta de falha operacional. 

Em outras palavras: se o ato-fato jurídico de um determinado sinistro não se enquadrar no conceito de acidente de navegação, impossível a aplicação da limitação de responsabilidade. 

E, igualmente, diante da culpa grave, quase sempre presente em casos envolvendo incúria administrativa e desídia operacional, também não haverá que se falar em responsabilidade tarifada. 

Tais argumentos não são frutos de uma tese ou abordagem dialética do Direito, mas da própria norma convencional que o STF decidiu ser superior ao CDC no conflito aparente de normas. 

Muito aproveita dizer que já há algum tempo os interessados na matéria não fundamentam suas pretensões contra transportadores aéreos no CDC, mas, sim, no sistema legal brasileiro como um todo, incluindo a própria Convenção de Montreal, desde que corretamente interpretada. 

Muito aproveita dizer que a Constituição Federal dispõe como garantia fundamental a reparação civil ampla e integral, donde se infere que a limitação de responsabilidade em caso de falta ou avaria de carga em transporte aéreo é algo inconstitucional. 

Vale ainda invocar a teoria tridimensional do Direito para lembrar que, à época em que a Convenção de Varsóvia foi elaborada (e esta Convenção foi literalmente bisada pela de Montreal), a “indústria” da navegação aérea estava em fase embrionária, reclamando especial proteção normativa, até por conta dos seus elevados riscos. 

Hoje, é um segmento poderoso da economia mundial, amparada por elevadíssima tecnologia e por eficientes sistemas de segurança, sendo as aeronaves construída sob o manto do “risco zero”, circunstâncias relevantes e que fazem da limitação tarifada algo desnecessário e até mesmo injusto, anacrônico. 

A eventual aplicação da limitação de responsabilidade implicará enormes prejuízos aos importadores, exportadores, produtores, seguradores de cargas brasileiros e aumentará os lucros dos transportadores aéreos, que não são exatamente exemplos de boas práticas comerciais e de respeito aos usuários dos seus serviços. 

Talvez seja compreensível a adoção de algum mecanismo de proteção em relação aos extravios de bagagens, pois nem sempre os usuários conseguem comprovar o que efetivamente continham suas bagagens e, infelizmente, ecoando os serviços ruins dos transportadores, também não se comportavam com máxima retidão nos pleitos de reembolso, sem falar nos exagerados e fantasiosos pedidos de danos morais. 

Mas, em casos de transportes de cargas, com valores certos, documentados e conhecidos, a eventual aplicação, contra o espírito normativo da própria Convenção de Montreal, somente gerará ônus aos proprietários de bens e incentivará, ainda que às avessas, o não constante aperfeiçoamento dos serviços, quando não a falta de zelo e de comprometimento por parte dos transportadores. 

Por isso e considerando que a decisão com o signo de repercussão geral do STF foi direcionada aos casos de extravios de bagagens e não de problemas com cargas confiadas para transportes e, ainda, considerando que a própria Convenção de Montreal dispõe que a limitação não cabe diante da falta grave ou de sinistros que não sejam próprios de acidentes de navegação, não há que se falar em repercussão geral da decisão do STF em relação ao caso concreto. 

A Convenção de Montreal há de ser aplicada em harmonia com o sistema legal brasileiro e, em especial, com a garantia constitucional da reparação civil ampla e integral relativamente aos transportes de cargas inadimplidos. Sobre o tema limitação de responsabilidade, a ora Autora ainda fará alguns comentários a mais na parte desta petição inicial que trata exatamente da fundamentação jurídica da pretensão de ressarcimento em regresso. 

O tópico acima destacado é um argumento preventivo e elaborado por excesso de zelo no exercício da advocacia, pois não há dúvida que o entendimento jurisprudencial será no mesmo sentido, independentemente de qualquer esforço da nossa parte ou dos advogados em geral. 

A verdade se impõe e, portanto, não há como duvidar que ela vingará. 

Não escondemos algum receio com eventuais decisões, monocráticas ou colegiadas, aplicando inadvertidamente a decisão com selo de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal em qualquer caso que tenha como uma das partes, transportador aéreo. 

Reconhecemos como concreto esse risco e estamos preparados para enfrentá- lo. 

Mas, estamos seguros que aos poucos o assunto se assentará e as coisas ficarão nos seus devidos lugares, sobretudo quando os casos chegarem ao Superior Tribunal de Justiça. 

E nem será o caso de desrespeito à decisão da Corte Suprema, mas de sua aplicação apenas nos casos efetivamente cabíveis, os de extravios de bagagens. 

Nos casos de faltas e avarias de cargas a resposta será a de sempre do Superior Tribunal de Justiça, ou seja, a de dever de reparação integral pelos danos e prejuízos causados pelos transportadores aéreos, seja pelo Código Civil, seja pela própria Convenção de Montreal, aplicada em sua exata medida. 

Importante ainda esclarecer que a limitação de responsabilidade, contratual, legal ou convencional, pouco importa, é algo que ofende a garantia constitucional da reparação civil ampla e integral, de tal modo que o Superior Tribunal de Justiça continuará a se pautar pelo entendimento tradicional de obrigar o causador do dano a reparar integralmente o prejuízo respectivo. 

E como a questão em pauta não constituirá ofensa direta, mas indireta à Constituição Federal, seu tratamento será dado, em termos finais, pelo Superior Tribunal de Justiça, não pelo Supremo Tribunal Federal, o que só faz aumentar nossa convicção quanto à não incidência da limitação tarifada nos casos de faltas e avarias. 

O Superior Tribunal de Justiça, pensamos, não mudará sua posição consolidada há anos e que não se fundamenta exclusivamente na aplicação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, mas na correta inteligência do sistema legal brasileiro como um todo. 

Mudança haverá, sim, nos casos envolvendo extravios de bagagens, mas não nos de transportes de cargas. 

Outro aspecto relevante é que normalmente as ações contra transportadores aéreos por contratados de transportes de cargas descumpridos são ajuizadas por seguradoras legalmente sub-rogadas nas pretensões dos embarcadores ou consignatários de cargas, segurados. 

Em sendo assim, nem mesmo a Convenção de Montreal poderá, na sua aplicação incorreta, esvaziar a amplitude do direito de regresso da Seguradora. 

Logo, não há que se falar, a qualquer título, de limitação tarifada em favor do transportador e em desfavor do segurador, sob pena de se desrespeitar a lei, o conceito de sub-rogado e o próprio enunciado de Súmula no 188 do Supremo Tribunal Federal. 

A reparação civil, ampla e integral, é garantia fundamental constitucional, inatingível, ao passo que o ressarcimento em regresso, ainda mais, é o direito por excelência do segurador, o meio pelo qual o princípio do mutualismo, informador do contrato de seguro, é melhor observado e, na sua esteira, o bem social garantido. 

Quando uma seguradora sub-rogada litiga em busca do ressarcimento há um deslocando obrigatório do foco da ação, fazendo com que o Direito dos Transportes ceda espaço ao Direito do Seguro e, com isso, novas figuras jurídicas assumam maior dimensão na solução do caso concreto em disputa. 

Assim, a limitação tarifada não pode ser aplicada contra o segurador legalmente sub-rogado, pois o interesse público se faz presente na esfera do Direito Privado e a garantia plena da sub-rogação efetivamente respeitada. 

Não obstante, tal colocação é feita mais por amor ao Direito como um todo, pois – insistimos nisso – a decisão do Supremo Tribunal Federal não tem aplicação nos casos de transportes de cargas, ao passo que a Convenção de Montreal há de ser corretamente aplicada no que tange à limitação tarifada para somente projetar efeitos jurídicos em casos de extravios de bagagens e, nunca, de faltas ou avarias de cargas, sobretudo quando não decorrentes de acidentes de navegação ou marcado com o selo da culpa grave. 

Por isso, nos sentimos confortáveis em repetir partes de um recente estudo de nossa modesta autoria, elaborado antes mesmo da aludida decisão e que apresenta com maiores detalhes muito do que aqui se defende com convicção e energia.        

Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique. O transporte aéreo de carga e a decisão de repercussão geral do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5092, 10 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58332. Acesso em: 22 dez. 2024.

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