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A disposição cênica das salas de audiências e tribunais brasileiros.

A inconstitucionalidade da prerrogativa de assento do Ministério Público no processo penal.

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4.CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Diante do paradoxo que se extrai do processo penal atual, que está sempre dividido entre efetivar a justiça para garantir a paz social e ainda garantir os direitos individuais do acusado, o processo deve servir como instrumento social e democrático para a efetivação da tutela jurisdicional do Estado, em constante conformidade com as normas constitucionais.

Embora previsto em lei, tal privilégio do órgão acusador, quando contraposto com a nova concepção do processo penal pátrio, erguida sob a égide do contraditório e do devido processo, não merece permanecer resistindo.

Como sustenta Adriano Antunes Damasceno[4], “no Brasil há práticas e ritos do cenário jurídico que adquirem o manto de sagrado e seguem avessos a críticas ao longo do tempo”. E é isto que ocorre com o tratamento privilegiado dispensado ao MP mesmo quando não atua com a imparcialidade de um fiscal da lei: transformou-se em um mito, que sempre esteve presente no âmbito jurídico e, portanto, inquestionável para muitos.

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil -OAB- ingressou, em abril de 2012, com Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o STF em face da Câmara dos Deputados, Senado Federal e Presidente da República buscando a inconstitucionalidade dos mesmos dispositivos, que fora distribuída por prevenção à Ministra Carmen Lúcia e se encontra pendente de julgamento até o presente momento.

A OAB expõe a tradição jurídica penal autoritária reiterada pelo CPP a fim de enfatizar seus argumentos sobre a inconstitucionalidade requerida na ADI:

A questão, portanto, mais se relaciona com a tradição jurídica nacional, resultante de períodos de exceção em que a atuação do Ministério Público não se compadecia com o regime republicano e a necessidade de tratamento isonômico das partes na estrutura cênica judiciária.

Ou seja, a origem desse modelo de cátedra (...) funda-se na estrutura patriarcal e na ideologia de castas entranhadas na história brasileira, que durante muito tempo permitiu a manutenção de tratamentos privilegiados que não são, em grande parte dos casos, visualizados como tais. (ADI nº 4768. Rel. Min. Carmen Lúcia).

 

Nota-se que a sociedade brasileira ainda caminha a passos curtos em direção a um maior grau de civilidade, tendo em vista os inúmeros abusos e preconceitos que nos deparamos na prática da advocacia criminal e a prerrogativa de assento do MP está aí para que não nos esqueçamos disto, dentre outros exemplos.

Na lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:

Se a salvaguarda dos direitos e garantias individuais no processo penal é o melhor critério pelo qual se pode medir o grau de civilidade de um povo, mais cuidado se pede ao se reformar aquele que talvez seja, dentre todos os ramos do direito, o que maior impacto exerce sobre a vida humana e especialmente sobre aquela vitimada pela desigualdade no acesso às condições mínimas de vida. (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Um devido processo legal (constitucional) é incompatível com o Sistema do CPP, de todo inquisitorial. In: Processo Penal e Democracia, estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. PRADO, Geraldo; MALAN, Diodo (coords.). Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2009)

 

Percebe-se uma temerária tendência político-social de conferir novas e supostas interpretações da Constituição em prol da sociedade, substituindo os ideais liberais e individualistas dos direitos fundamentais pelos direitos sociais, na tentativa de minimizar ou até extinguir os direitos do acusado em prol dos interesses supostamente pacifistas de uma “sociedade de risco”, que busca quase sempre por uma condenação como forma de solucionar o problema.

Ressalta Geraldo Prado que “é preciso questionar, colocar sob dúvida o estado de normalidade que parece imperar, perquirir a razão de ser das coisas para, se necessário, transformá-las” (PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais, 2001, p. 23), principalmente diante do momento atual em que vivemos, cuja expansão do poder punitivo se estimula pelos clamores de segurança de grande parte da sociedade brasileira, que possui a errada visão de que a opção repressiva e o rigor do direito penal são a solução contra a elevação dos índices de criminalidade do país, uma falsa mas perene crença de que se melhora com mais pena, prisão e punição.

Em um Sistema Penal que historicamente tem sido “forte com os fracos e fraco com os fortes”, na qual a imposição de uma pena a um suposto autor do crime opera como uma espécie de absolvição aos demais autointitulados “cidadãos do bem”, nota-se a forte necessidade de uma reafirmação da efetividade de qualquer direito de defesa do réu- ainda que “irrelevante” para alguns- em busca do reequilíbrio entre as partes e, consequentemente, de um processo igualitário em que todos possuam as mesmas oportunidades e instrumentos na defesa de seus interesses.

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Atento aos problemas do processo penal em todo mundo, há muito tempo atrás já questionava Francesco Carnelutti que “considerar o homem como uma coisa: pode-se ter uma forma mais expressiva de incivilidade? Mas é aquilo que acontece, infelizmente, nove entre dez vezes no processo penal.” (FELDENS, Luciano. Ministério Público: entre Legitimidade Jurídica e Legitimidade Política. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (coords.). Processo penal e Democracia: Estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988, 2009).

Defender os direitos do acusado significa necessariamente defender os direitos de cada indivíduo da sociedade e o cumprimento da lei não se faz apenas através de acusações e a obtenção de condenações, mas também pela fiscalização e a garantia ao respeito dos direitos fundamentais garantidos expressamente na Constituição de 1988.

Logo, quando se reivindica a aplicação efetiva de todos direitos e garantias constitucionais do acusado e a observância do sistema acusatório em todo o processo penal, se pressupõe que este seja norteado pelas bases do contraditório e da mais ampla defesa, sempre privilegiando a liberdade individual em detrimento do encarceramento.

As balizas constitucionais que delimitam a atuação do poder estatal punitivo foram insistentemente traçadas a fim de que a partir delas se extraísse a função de eficiência e garantia do processo penal, sendo certo que qualquer óbice à defesa do acusado deve ser incansavelmente combatida.

Em razão disto, não mais se pode aceitar que o processo seja utilizado como uma “arma” contra as minorias marginalizadas que respondem a um procedimento criminal, já que se constatou que o direito a um processo justo e igualitário é pressuposto de um Estado de Democrático de Direito a qual pertencemos desde 1988 graças a um tortuoso, porém vitorioso clamor social.

Apesar de o layout dos espaços judiciais terem se originado no período de exceção do Estado brasileiro, no qual vigorava uma estrutura patriarcal que estabelecia, de forma autoritária e discriminatória, posição superior ao órgão acusador estatal, ficou claro que este modelo não mais se adéqua a atual conjuntura estatal, como já visto, havendo real necessidade de sua reestruturação, uma readequação à luz dos preceitos constitucionais.

Uma verdadeira redemocratização das salas de audiências e de sessões de julgamentos de todo o país é imprescindível para que passem a existir sob a égide do valor fundamental da república, a dignidade da pessoa humana, no qual a proteção dos direitos do imputado valha, tanto para o Estado quanto para a sociedade, mais do que uma condenação.

Certo é que tais avanços não serão obtidos apenas com a redefinição cênica das salas de audiências, haja vista que o processo penal brasileiro padece de inúmeros outros problemas crônicos e estruturais que colocam em maiores riscos a liberdade individual do imputado.

Entretanto, a guerra somente é vencida através da conquista de batalhas menores, uma por vez. E esta talvez seja uma batalha ínfima perto de toda a guerra que se tem pela frente, mas que nem por isso merece desconsideração, como já ficou bem comprovado em toda a exposição.

Logo, devem ser abolidas de uma vez por todas qualquer tratamento privilegiado de uma parte em detrimento da outra não só dentro do processo como também nos espaços judiciais, posto que a condição de parte é igual para todos e assim estão sob o mesmo degrau na escala hierárquica.

Qualquer tratamento privilegiado no processo penal somente deve ser admissível, de forma excepcional, nos casos em que seja para preponderar a tutela da liberdade individual do acusado e assim compensar o desequilíbrio real que existe entre o réu e o agigantado órgão estatal acusador.

A resistência do Ministério Público à necessária redefinição cênica, não abrindo mão de sua posição de superioridade, importa em descumprir os mandamentos constitucionais a ele conferidos, de defesa da ordem jurídica e social, já que o cumprimento de tais mandamentos exige uma defesa ativa da efetivação da cláusula do devido processo legal, o que é flagrantemente violado por sua prerrogativa de assento.

Ficou demonstrado que as formas, signos e símbolos estão sempre atrelados a significados concretos e a consequências reais dentro do processo penal, por isso necessitam serem repensados sob a ótica do modelo acusatório adotado na Lei Maior, de forma que tais símbolos judiciais existam para proteger o imputado da violação de seus princípios constitucionais e jamais para reforçar tais violações.

Apesar de ainda serem poucos os pronunciamentos judiciais e da aparente falta de interesse dos Tribunais Superiores em se debruçarem sobre o tema, existem algumas decisões que corroboram a tese aqui sustentada, que foram alvo de muita repercussão no meio jurídico.

O magistrado carioca André Luiz Nicolitt, nos autos do processo n. 2003.005.000056-7 negou validade aos dispositivos que preveem a prerrogativa de assento do MP quando este atuar em processo criminal, com o fundamento na paridade de armas, isonomia e também na teoria do agir comunicativo de Habermas.

Existe ainda Reclamação perante o STF, ajuizada pelo juiz federal Ali Mazloum da 7ª Vara Criminal Federal do Estado de São Paulo, que alterou a disposição de sua sala a pedido da Defensoria Pública da União, o que foi alvo de Mandado de Segurança impetrado pelos Procuradores da República locais, no qual foi concedida liminar suspendendo os efeitos da decisão.

Nesta Reclamação, que também fora distribuída por prevenção à Ministra Carmem Lúcia e ainda pendente de julgamento, o magistrado requer que o Supremo acolha as mudanças realizadas em sua sala de audiência bem como que seja adotado tal modelo de cátedra para todo o país, “com vistas a assegurar a paridade de tratamento entre acusação e defesa durante as audiências criminais” (Reclamação n. 12.011. Rel. Ministra Carmen Lúcia).

Não é possível abordar tal tema sem prestigiar o conhecido e festejado parecer (PELLEGRINI, Ada. O processo em evolução, p. 317) da ilustre processualista paulista Ada Pellegrini -cujo alguns trechos já foram aqui citados-, elaborado em resposta à consulta de alguns juízes-auditores da Justiça Militar Federal sobre a questão, no qual a doutrinadora condena categoricamente a postura coorporativa do MP, que utiliza fracos argumentos na defesa de sua prerrogativa em detrimento da própria Constituição, classificando como “lamentável, até ridículo” tal posicionamento.

O STF também já teve a oportunidade de decidir sobre o tema em um recurso julgado em 1994, o qual teve como relatoria do Ministro Marco Aurélio, que proferiu voto contrário à prerrogativa, com o seguinte teor:

MANDADO DE SEGURANÇA - OBJETO - DIREITO SUBJETIVO - PRERROGATIVA DA MAGISTRATURA. Tem-no os integrantes da magistratura frente a ato que, em última analise, implique o afastamento de aspecto revelador da equidistancia, consideradas as partes do processo, como e o caso da cisão da bancada de julgamento, para dar lugar aquele que atue em nome do Estado-acusador. DEVIDO PROCESSO LEGAL - PARTES - MINISTÉRIO PÚBLICO E DEFESA - PARIDADE DE ARMAS. Acusação e defesa devem estar em igualdade de condições, não sendo agasalhavel, constitucionalmente, interpretação de normas reveladoras da ordem jurídica que desague em tratamento preferencial. A "par condicio" e inerente ao devido processo legal (ADA PELLEGRINI GRINOVER). JUSTIÇA MILITAR - CONSELHO DE JUSTIÇA - BANCADA - COMPOSIÇÃO - CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR - ESTATUTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. A Lei Complementar n. 75/93, reveladora do Estatuto do Ministério Público, não derrogou os artigos 400 e 401 do Código de Processo Penal Militar no que dispõem sobre a unicidade, nos Conselhos de Justiça, da bancada julgadora e reserva de lugares próprios e equivalentes a acusação e a defesa. Abandono da interpretação gramatical e linear da alínea "a" do inciso I do artigo 18 da Lei Complementar n. 75/93, quanto a prerrogativa do membro Ministério Público da União de sentar-se no mesmo plano e imediatamente a direita dos juízes singulares ou presidentes de órgãos judiciários. Empréstimo de sentido compatível com os contornos do devido processo legal.

(RMS 21884, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 17/05/1994, DJ 25-11-1994 PP-32302 EMENT VOL-01768-01 PP-00099).

(Grifos nossos)

 

Apesar de esparsas, estas decisões judiciais reiteram o mesmo entendimento, ressaltando que os dispositivos legais que concedem prerrogativa de assento ao órgão ministerial dentro do processo penal não merecem prosperar, padecendo de uma explícita inconstitucionalidade.

Tais decisões também serviram de base para a fundamentação da ADI ajuizada perante o STF pela OAB, a qual se espera que o pronunciamento final da Corte seja no sentido de declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos e, assim, por fim há pelo menos uma, dentre inúmeras disposições contrárias ao réu dentro do processo penal brasileiro.

A compreensão cênica das salas de audiências não pode ser visualizada sob a ótica carreirista, de maneira que o imputado seja a figura de menor importância dentro da sala. O processo penal e todos os direitos e garantias que o acompanham possuem sua existência atreladas à proteção do acusado e esta jamais deve ser olvidada.

Como bem salientado pelo maestral penalista Juarez Cirino em recente palestra[5] em homenagem aos mestres Nilo Batista e Vera Malaguti, “o sistema penal brasileiro não passa de uma máquina de moer gente” e, sendo assim, este trabalho passa a ser uma singela contribuição na tentativa de abrandar a moedura.

 

 

Sobre as autoras
Karine Azevedo Egypto Rosa

Graduada em Direito, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, pós-graduada pela Universidade Candido Mendes em Direito Penal e Processual Penal e aprovada nos concursos para defensor público na Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso e Defensoria Pública do Estado da Bahia.

Renata Moura Tupinambá

Graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Candido Mendes e aprovada nos concursos para os cargos de analista do Ministério Público do Rio de Janeiro e defensor público substituto do estado da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Karine Azevedo Egypto; TUPINAMBÁ, Renata Moura. A disposição cênica das salas de audiências e tribunais brasileiros.: A inconstitucionalidade da prerrogativa de assento do Ministério Público no processo penal.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5123, 11 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59053. Acesso em: 22 dez. 2024.

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