1 INTRÓITO
A Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015, inaugurou um novo marco no sistema processual civil brasileiro. De fato, o novo Código de Processo Civil tem por escopo disciplinar os atos processuais a serem praticados por todos aqueles envolvidos no processo judicial, buscando atender os interesses das mais diversas categorias envolvidas nesse mister, primando por valores como a segurança jurídica, efetividade e celeridade processuais.
A atividade executiva de acordo com a nova codificação pode ser desenvolvida em processo autônomo de execução, disciplinado no Livro II da Parte Especial (arts. 771-925), ou em módulo executivo do processo sincrético, tratado no Título II do Livro I da Parte Especial (arts. 513-538), quando então a execução não se afigura como um novo processo, mas, sim, como uma mera etapa do processo, cujo objetivo será a realização do direito do credor.
De grande relevo é a atividade executiva para satisfação de créditos pecuniários oriundos de obrigações de pagar quantia certa, as quais não foram cumpridas ex voluntate pelo devedor. No exercício dessa atividade, seja em processo autônomo ou em módulo executivo, haverá a possibilidade de penhora de valores em dinheiro do devedor, surgindo, nesse particular, problemáticas ao derredor da constrição de verbas salariais.
Pretende-se, neste ensejo, abordar, posto que de modo não exauriente, a penhora do salário, os principais precedentes do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria e o novo Código de Processo Civil.
2 DIREITO À SATISFAÇÃO DO CRÉDITO E LIMITES DA ATUAÇÃO JURISDICIONAL EXPROPRIATIVA
O credor tem direito fundamental à satisfação do seu crédito, valendo mencionar que o art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal prevê que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O Estado, de longa época, avocou para si o monopólio da atividade jurisdicional e, por tal motivo, não pode negar-se a prestar tal atividade ou mesmo prestá-la de modo defeituoso ou incompleto. O jurisdicionado tem direito à satisfação do seu crédito, devendo isso ser feito em tempo razoável.
Por sinal, o Código de Processo Civil prevê, no art. 4º, que “As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”, estabelecendo ainda no art. 824 que “A execução por quantia certa realiza-se pela expropriação de bens do executado, ressalvadas as execuções especiais”.
Há, contudo, limites ao exercício da atividade jurisdicional expropriativa. Se, por um lado, o credor tem direito à completa satisfação do seu crédito, de outro vértice, não se pode olvidar da dignidade da pessoa humana, devendo ser preservado o conteúdo do princípio que assegura o patrimônio mínimo do devedor. Com efeito, a expropriação de todos os bens do devedor conduziria o executado à situação de impossibilidade de manutenção da sua própria sobrevida.
Nessa linha de intelecção é que a Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990, e o Código de Processo Civil, nos artigos 833 e 834, estabelecem limites à penhora de bens do devedor, evitando, com isso, que a satisfação do crédito do exequente se sobreponha a qualquer outro valor, inclusive a dignidade da pessoa humana.
3 A IMPENHORABILIDADE DO SALÁRIO
O salário consiste na contraprestação devida pelo empregado em razão dos serviços prestados pelo empregado no desenvolvimento de um vínculo empregatício, oriundo de um contrato de trabalho. Trata-se de importante meio de sobrevivência para boa parte das pessoas, notadamente por configurar o único ou mesmo o principal meio de obtenção de renda.
O Código de Processo Civil no art. 833, inc. IV, estabelece que “são impenhoráveis os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal”.
Na própria legislação processual, contudo, há exceções à regra da impenhorabilidade salarial. Assim é que o §2º do citado preceptivo dispõe que a impenhorabilidade do salário “não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais”. Por outras palavras, o Código de Processo Civil admite expressamente a penhora do salário em duas situações: a) para pagamento de pensão alimentícia; e b) quando o salário do devedor exceder a 50 (cinquenta vezes) o valor do salário-mínimo.
4 PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SOBRE A IMPENHORABILIDE SALARIAL
Os precedentes do Superior Tribunal de Justiça são de suma relevância para a completude do ordenamento jurídico, aqui entendido como tal o conjunto de normas jurídicas e de precedentes vinculantes ou não (meramente persuasivos ou argumentativos), dada a riqueza de situações que a prática forense pode ensejar e que o Legislador não foi capaz de prever. Por sinal, essa relevância dos precedentes como diretriz de julgamento a ser utilizada pelos magistrados não passou despercebida pelo Legislador do novo Código de Processo Civil, que contemplou previsões bem específicas sobre a matéria nos arts. 926 e 927[1].
4.1 IMPENHORABILIDADE DO SALÁRIO E LIMITE DE VALOR
De acordo com o novo Código de Processo Civil é admitida a penhora do salário que exceder a 50 (cinquenta) vezes o valor do salário-mínimo (art. 833, §2º). A penhora não incidirá sobre o todo, mas apenas sobre o que exceder o valor mencionado pelo legislador.
Deve ser mencionado que o valor para admissão da penhora do salário é sobremaneira elevado, mas, como adverte a doutrina, “é inegável o avanço da norma legal, que incluiu o Brasil no rol dos países civilizados, tanto de tradição da civil law (por exemplo, Argentina, Uruguai, Chile, Portugal, Espanha, Alemanha e Itália) como da common law (por exemplo, Estados Unidos e Inglaterra). É um começo que com o passar do tempo poderá ser aperfeiçoado”[2]. De qualquer sorte, diante da nova previsão legal, “haverá um pequeno percentual da população brasileira que poderá ver apreendida uma parte de sua remuneração mensal (ou verba afim)”[3].
Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, contudo, formada sob a égide do CPC/1973, com alguma divergência, já havia precedentes que admitiam a relativização da impenhorabilidade do salário em situações excepcionais “a fim de alcançar parte da remuneração do devedor para a satisfação de crédito não alimentar, preservando-se o suficiente para garantir a sua subsistência digna e a de sua família” (REsp 1673067/DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12-09-2017, DJe 15-09-2017)[4].
Note-se a necessidade apontada de preservação do núcleo essencial do direito fundamental à dignidade do devedor, possibilitando-se a penhora do salário dele, sem evidentemente permitir-se com isso situação de penúria ou miséria ou mesmo de prejuízo da própria subsistência dele. Assim, no particular, deve o Julgador encontrar o ponto de equilíbrio entre o direito à satisfação do crédito exequendo e a dignidade do executado e da sua família.
A situação deverá ser tratada caso a caso, porque, conforme orientação do Superior Tribunal de Justiça, “a aplicação mitigada da impenhorabilidade salarial, está muito bem delimitada para situações excepcionais em que efetivamente resta preservada a dignidade do devedor, no seu núcleo essencial. Não se pode tornar em regra geral e abstrata um tratamento excepcional direcionado a circunstâncias individuais e concretas detectadas caso a caso” (REsp 1661990/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17-08-2017, DJe 22-08-2017).
Como ficará o limite de valor do salário para mitigação da regra da impenhorabilidade diante do novo CPC? No particular, duas orientações poderão ser adotadas. A primeira é a adoção de entendimento literal, possibilitando-se a penhora do salário apenas quando este ultrapassar 50 (cinquenta) vezes o salário-mínimo. A segunda tende a prestigiar a vedação do retrocesso jurisprudencial, devendo a mitigação ser analisada caso a caso, inclusive para admitir a penhora de salário inferior ao valor mencionado no art. 833, §2º, do CPC.
Entendo oportuno mencionar que há precedente do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a remuneração a que se refere o inciso IV, do art. 649, do CPC/1973 “é a última percebida, no limite do teto constitucional de remuneração (CF, art. 37, XI e XII)” (AgRg no AREsp 663.315/DF, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 23-06-2015, DJe 30-06-2015).
4.2 IMPENHORABILIDADE DO SALÁRIO E DÍVIDA DE ALIMENTOS
Admite-se a penhora do salário para pagamento de alimentos. E tal se dá porque a constrição da verba salarial encontra-se perfeitamente justificada diante da finalidade dos alimentos, os quais em última análise preservam a própria subsistência do alimentando, ou seja, do credor dos alimentos. Essa possibilidade de penhora é admitida pelo art. 833, §2º, do CPC.
Por sinal, antiga é a orientação do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que “a impenhorabilidade dos salários não se aplica às hipóteses em que o débito decorre de prestação alimentícia” (REsp 1087137/DF, Rel. Ministro Aldir Passarinho, Quarta Turma, julgado em 19-08-2010, DJe 10-09-2010).
Há uma peculiaridade a ser observada. É que o art. 833, §2º, do CPC, que autoriza a penhora do salário para pagamento de pensão alimentícia, faz expressa alusão ao disposto no art. 529, §3º, do mesmo Código. Este preceptivo, a seu turno, estabelece que o desconto dos alimentos vencidos e vincendos pode ser realizado contanto que não ultrapasse cinquenta por cento de ganhos líquidos do devedor. No meu modo de pensar, tal limitação do percentual do desconto a 50% (cinquenta por cento), não se afigura absoluta e deve ser analisada pelo Julgador caso a caso, notadamente levando em consideração o valor do salário do devedor. Não tenho dúvidas de que um salário em valor sobremaneira elevado comporta desconto para pagamento do crédito exequendo em maior percentual.
4.3 IMPENHORABILIDADE DO SALÁRIO E DÍVIDA DECORRENTE DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS
A súmula vinculante 47 prevê que “Os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar cuja satisfação ocorrerá com a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, observada ordem especial restrita aos créditos dessa natureza”. Do referido enunciado sumular é possível concluir pela natureza alimentar da verba honorária sucumbencial, devida aos advogados. Por sinal, o art. 84, §14, do CPC prevê que “Os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial”.
Diante de tal cenário, não se afigura possível sustentar a impenhorabilidade do salário do devedor diante de execução lastreada em verba relativa a honorários advocatícios. A propósito, o Superior Tribunal de Justiça já assentou que a Corte “reconhecendo que os honorários advocatícios, contratuais ou sucumbenciais, têm natureza alimentícia, admite a possibilidade de penhora de verbas remuneratórias para a satisfação do crédito correspondente” (REsp 1440495/DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 02-02-2017, DJe 06-02-2017).
4.4 IMPENHORABILIDADE DO SALÁRIO E DESCONTO POR CONSIGNAÇÃO
Nos contratos bancários, havendo pactuação expressa, admite-se o desconto por consignação. Tal previsão, contudo, não tem o condão de possibilitar por si só a penhora do salário do devedor porque desconto decorrente de consignação configura-se como medida extrajudicial que não pode ser confundida com a penhora de bens, que é efetivada na esfera judicial.
A propósito da matéria, o colendo Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “a jurisprudência da Casa tem entendido que, em contratos bancários, havendo pactuação expressa, é possível o desconto por consignação de até 30% das verbas salariais recebidas pelo contratante. Situação diversa é a penhora sobre proventos e salários do devedor, tendo em vista a absoluta impenhorabilidade... a qual, em princípio, só pode ceder vez para a satisfação de crédito alimentar” (EDcl no REsp 1284388/MT, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24-04-2014, DJe 30-04-2014).
A propósito, leciona Daniel Amorim Assumpção Neves que “poderia se alegar que, se uma instituição financeira pode se valer de parte do salário do devedor para satisfazer seu direito de crédito, com muito mais razão poderia o Estado-juiz determinar medida executiva no mesmo sentido”. Mas, como o próprio autor esclarece “a analogia é imperfeita, porque, na hipótese de crédito consignado o desconto decorre de um ato de vontade do devedor, que expressamente anui com tais descontos a contrariar o empréstimo”[5].
4.5 IMPENHORABILIDADE DO SALÁRIO E VALORES MANTIDOS EM CONTA-CORRENTE BANCÁRIA PELO DEVEDOR
Cumpre esclarecer que o salário só é impenhorável enquanto mantiver tal natureza jurídica. Assim, o salário que foi depositado em conta-corrente bancária e não foi utilizado pelo devedor, sendo nela mantido, deixa de ostentar aquela natureza, passando a ser ativo financeiro e, por tal motivo, perde a sua impenhorabilidade.
A manutenção do salário em conta-corrente por lapso superior a 30 (trinta) dias importa na admissibilidade da relativização da regra da impenhorabilidade. Sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça já assentou que a remuneração que se reveste da impenhorabilidade “é a última percebida, no limite do teto constitucional de remuneração (CF, art. 37, XI e XII), perdendo esta natureza a sobra respectiva, após o recebimento do salário ou vencimento seguinte” (AgInt no REsp 1502605/DF, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 23-05-2017, DJe 01-06-2017).
Insta frisar, contudo, que o valor limite de até 40 (quarenta) vezes o salário-mínimo transferido para aplicação financeira não afasta a impenhorabilidade, posto que configure investimento do devedor e fique depositado em conta-poupança por longo período. É que o art. 833, inc. X, do CPC, estabelece que é impenhorável “a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos”.
Sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “A quantia aplicada em caderneta de poupança, mesmo que decorrente de sobra dos vencimentos recebidos pelo recorrente, não constitui verba de natureza salarial, e, portanto, não está protegida pela regra do art. 649, IV, do CPC/73; todavia, sendo inferior ao limite de 40 (quarenta) salários mínimos, reveste-se de impenhorabilidade, nos termos do art. 649, X, do CPC/73 [art. 833, X, do CPC/2015]” (REsp 1452204/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 01-12-2016, DJe 13-12-2016).
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “a impenhorabilidade salarial não é absoluta, sendo que, existindo sobra salarial, esta poderá ser penhorada em razão da perda da natureza alimentar” (AgRg no REsp 1492174/PR, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 23-06-2016, DJe 02-08-2016).