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A possibilidade da aplicação das escusas absolutórias aos casos de violência patrimonial previstos na Lei Maria da Penha

Agenda 20/11/2017 às 11:12

O Superior Tribunal de Justiça se mostrou favorável à aplicação das escusas absolutórias a casos de violência patrimonial contra a mulher nas quais se aplica a Lei Maria da Penha, mas o tema permanece controverso.

Introdução

O Estado brasileiro, impulsionado pela tendência internacional de qualificação da violência contra a mulher como agressão aos direitos humanos, passou a elaborar políticas para coibir a violência doméstica e familiar. Nesse contexto, foi editada a Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha. A norma estabelece a forma de atuação das autoridades diante dos casos de violência, passando por questões de direito processual penal e estabelecendo mecanismos de prevenção.

Considerando que o Código Penal estabelece hipótese de afastamento da punibilidade quando o crime contra o patrimônio, sob determinadas circunstâncias, ocorre em desfavor de cônjuge, de ascendente ou descendente, a vigência da Lei Maria da Penha impõe um questionamento: a norma afastou a aplicabilidade das escusas absolutórias no que se refere às hipóteses de violência patrimonial? Em outras palavras, teria o legislador revogado a disposição da lei penal, determinando a punibilidade do agressor quando o crime ocorresse no contexto da violência doméstica ou familiar?

Para responder a tal questionamento, utilizando pesquisa descritiva, predominantemente bibliográfica e jurisprudencial, inicia-se com a exposição de aspectos gerais acerca da Lei Maria da Penha e das escusas absolutórias previstas no Código Penal. Em seguida, será apresentada a divergência jurídica que se estabeleceu. Por fim, haverá a apresentação do posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça ao se manifestar sobre a matéria no caso concreto.

Aspectos gerais da Lei Maria da Penha e violência patrimonial

A Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, sendo doravante tratada por tal denominação, foi elaborada com o objetivo de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A norma está em sintonia com compromissos assumidos pela República Federativa do Brasil internacionalmente no que se refere à proteção aos direitos humanos, de forma que as citadas formas de violência são caracterizadas pelo texto como violações de tais direitos.

O nome através do qual a norma ficou conhecida faz referência à cearense Maria da Penha Maia Fernandes. Os diversos episódios de violência doméstica sofridos por ela foram levados ao conhecimento do Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, na qual se considerou que o governo brasileiro não fazia esforço suficiente para lidar com a questão da violência doméstica. Esse episódio impulsionou a elaboração de políticas de proteção à mulher, sobretudo da própria lei. Nas palavras de Lima (2015, p. 905):

Por conta da lentidão do processo, e por envolver grave violação aos direitos humanos, o caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que publicou o Relatório n° 54/2001, no sentido de que a ineficácia judicial, a impunidade e a impossibilidade de a vítima obter uma reparação mostra falta de cumprimento do compromisso assumido pelo Brasil de reagir adequadamente ante a violência doméstica. Cinco anos depois da publicação do referido relatório, com o objetivo de coibir e reprimir a violência doméstica e familiar contra a mulher e superar uma violência há muito arraigada na cultura machista do povo brasileiro, entrou em vigor a Lei n° 11.340/06, que ficou mais conhecida como Lei Maria da Penha.

A norma não trata diretamente de matéria de direito penal, uma vez que não cria tipos penais, ou seja, não insere a previsão de novas condutas delitivas no ordenamento jurídico. Assim sendo, as agressões físicas e outras formas de violência doméstica e familiar continuam tendo as sanções penais que teriam se acontecessem em qualquer outro contexto. O conteúdo é, em sua maior parte, matéria de direito processual penal e de direito civil.

A aprovação da Lei Maria da Penha, nas palavras de Pasinato (2010, p. 221),

representou um marco no extenso processo histórico de reconhecimento da violência contra as mulheres como um problema social no Brasil, resultado de um processo que ganhou força a partir dos anos 1970, com intensa participação dos movimentos de mulheres e feministas lutando pela conquista da cidadania para todos, mas com respeito pelas diferenças de gênero.

O texto legal em estudo organiza as medidas de proteção à mulher em três eixos (PASINATO, 2010). O primeiro deles trata das medidas criminais, determinando os procedimentos a serem adotados para a prisão do agressor, restringindo a possibilidade de renúncia à representação por parte da vítima e afastando a aplicação do rito sumaríssimo previsto na Lei n. 9.099 de 1995 quando se tratar de casos de violência doméstica ou familiar contra a mulher.

O segundo eixo no qual a Lei Maria da Penha se organiza se constitui pelas medidas que buscam proteger a mulher em caráter emergencial. Assim, a lei determina que, na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, deve a autoridade policial adotar uma das medidas protetivas de urgência, entre as quais se inclui, por exemplo, a garantia de proteção policial, com comunicação imediata ao Ministério Público e ao Poder Judiciário.

No mesmo contexto, existe a determinação de que, também em situações de urgência, a autoridade judiciária possa determinar a adoção de medidas que obrigam o agressor, de forma a diminuir as chances de que os prejuízos da violência se agravem enquanto uma possível ação judicial não chega ao fim.

Entre as citadas medidas que obrigam o agressor, sem incluem: suspensão da posse ou restrição do porte de armas; afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; proibição de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor e proibição de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação.

O terceiro e último eixo de organização da norma se constitui nas medidas de prevenção e educação. Assim, conforme o Art. 8º, a política pública de prevenção à violência doméstica e familiar contra a mulher será feita por meio de um conjunto articulado de ações dos entes federados e de ações não-governamentais. O texto faz referência, por exemplo, à realização de campanhas educativas, à implementação de atendimento policial especializado, sobretudo nas Delegacias de Atendimento à Mulher, e ao destaque nos currículos escolares para conteúdo relativos aos direitos humanos e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

O legislador conceituou a violência doméstica nos seguintes termos:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. (BRASIL, 2006).

Importante destacar que, conforme o parágrafo único do artigo, as referidas relações pessoais não dependem de orientação sexual para a sua configuração.

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Em seguida, a lei tratou das diferentes formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, quais sejam, física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. No que se refere especificamente à violência patrimonial, dispõe o Art. 7º da Lei Maria da Penha:

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: (...)

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; (BRASIL, 2006)

Não obstante o legislador tenha utilizado a expressão "violência", entende-se que para a configuração da violência patrimonial não é necessário que haja violência física de fato. Assim sendo, mesmo que o crime praticado contra o patrimônio da mulher seja realizado sem agressão direta ao seu corpo ou à sua moral, como o furto, o fato estará enquadrado no artigo supracitado (LIMA, 2015, p. 919).

A violência patrimonial pode se originar da estrutura patriarcal. Considera-se que em momento histórico recente, a mulher ainda tinha limitações legais para dispor livremente do seu patrimônio e praticar os atos da vida civil. Até da década de 1960, por exemplo, a mulher casada era considerada civilmente incapaz. Nesse sentido, conforme, Feix (2011, p. 208),

É preciso aqui destacar que o empoderamento econômico das mulheres é um fenômeno recente, e que a retirada dos obstáculos legais, burocráticos e culturais para a livre disposição de seus bens, inclusive rendimentos, ainda está sendo conquistada. Disso decorre que, em muitas situações, os homens permanecem na condição de chefia da família, administrando os bens e monopolizando o poder econômico da comunidade familiar, o que pode ser considerado moeda de troca ou vantagem na imposição de sua vontade e manutenção de relação desigual de poder.

Com objetivo de proteger o patrimônio da mulher vítima de violência, a Lei Maria da Penha determina a adoção de algumas medidas protetivas de urgência, nos seguintes termos:

Art. 24.  Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:

I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;

III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;

IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

Destaca-se que, como há regimes de bens no casamento nos quais existe a massa de bens pertences a cada um dos cônjuges, e a massa de bens pertencentes a ambos, tal qual ocorre também nas hipóteses de União Estável, a restituição à qual o inciso I se refere inclui, inclusive, os bens que compõem o acervo comum.

Dessa forma, o legislador demonstra que a intenção da norma é também coibir agressões ao patrimônio da mulher vítima de violência doméstica. A divergência que será demonstrada se baseia na noção da abrangência de tais proteções, de forma que se debate no âmbito do direito penal se a Lei Maria da Penha teria afastado, ainda que de maneira tácita, aplicação das escusas absolutórias, benefício que será conceituado a seguir.

Das escusas absolutórias previstas no Código Penal

As escusas absolutórias ou imunidades absolutas estão previstas no Art. 181 do Código Penal Brasileiro, enquanto as chamadas escusas relativas são tratadas no Art. 182:

Art. 181 - É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo:

I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;

II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.

Art. 182 - Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo:

I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado;

II - de irmão, legítimo ou ilegítimo;

III - de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita. (BRASIL, 1940)

O título ao qual o artigo se refere é o que trata dos crimes contra o patrimônio. Assim sendo, aquele que pratica crime contra o patrimônio contra uma das vítimas prevista no Art. 181, desde que não seja roubo, extorsão ou que não haja violência o grave ameaça contra pessoa, não será punível. Assim sendo, por exemplo, quando uma pessoa furta bem da própria esposa, não surge o direito de punir para o Estado, ficando o agente da conduta criminosa isento de qualquer punição no âmbito do direito penal.

A justificativa apresentada pela literatura jurídica para que o legislador tenha decidido afastar a aplicação da pena nesses casos está relacionada à razões de política criminal. Dessa forma, a lei privilegiaria a harmonia do ambiente familiar, priorizando o reconhecimento dos laços afetivos entre os sujeitos envolvidos, em detrimento da proteção ao bem jurídico em questão, qual seja, o patrimônio.

A origem da disposição legal estaria no direito romano, fundada no conceito de copropriedade familiar sendo, mais tarde, elaborados outros argumentos que a justificassem, conforme demonstra Nucci (2011, p. 794):

a) evitar a cizânia entre os membros da família; b) proteger a intimidade familiar; c) não dar cabo do prestígio auferido pela família. Um furto, por exemplo, ocorrido no seio familiar deve ser absorvido pelos próprios cônjuges ou parentes, afastando-se escândalos lesivos à sua honorabilidade.

Outro ponto importante sobre as imunidades é que só se aplicam aos crimes contra o patrimônio. Assim sendo, não isentam o agente criminoso da pena por delitos praticados no mesmo contexto, mas que atinjam bens jurídicos de outra natureza. Da mesma forma, se o agente vitimar uma das pessoas listadas no Art. 181 (cônjuge, ascendente ou descendente) e pessoa diversa através da mesma conduta, não ficará imune à pena em reação ao crime praticado contra esta.

O Código Penal também prevê escusas relativas, conforme o Art. 182, supracitado. Naquelas hipóteses, para que haja processo criminal que possa culminar na responsabilização do agente criminoso, a lei estabelece que é necessária a representação por parte da vítima. Em outras palavras, é preciso que a vítima se dirija ao juiz, ao órgão do Ministério Público ou à autoridade policial e manifeste de maneira inequívoca a vontade de que aquele que atentou contra seu patrimônio seja processado no âmbito penal.

Importante ressaltar que o Art. 183 do Código Penal, além de afastar a possibilidade de aplicação das escusas nos casos em que o crime seja de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa, também impede que seja beneficiado o terceiro que concorre para o delito e qualquer um que os pratique contra pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos. A citada disposição acerca da pessoa idosa foi adicionada pelo Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 2003).

Da aplicação das escusas absolutórias no contexto da violência doméstica

Com a vigência da Lei Maria da Penha, estabeleceu-se um aparente conflito de normas no que se refere às citadas escusas absolutórias previstas no Código Penal. Surgiu, então, uma divergência na ciência jurídica, que se delineou com a formação de duas principais correntes doutrinas, que buscam responder ao questionamento: a nova legislação acerca da proteção à mulher afastou a aplicabilidade das escusas absolutórias no que se refere às hipóteses de violência patrimonial?

A primeira corrente defende a sobreposição da proteção à mulher contra a violência doméstica sobre os interesses tutelados pelas escusas absolutórias. Assim sendo, o argumento de manutenção da paz e harmonia no âmbito familiar não justificaria o enfraquecimento da proteção contra a violência doméstica e familiar. A Lei Maria da Penha, ao definir a proteção para a vítima de violência patrimonial, estaria afastando a aplicação das escusas absolutórias naqueles casos.

Assim, nas palavras da professora Maria Berenice Dias (2008, p. 52):

A partir da nova definição de violência doméstica, assim reconhecida também a violência patrimonial, não se aplicam as imunidades absolutas e relativas dos arts. 181 e 182 do Código Penal quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar. Não há mais como admitir o injustificável afastamento da pena ao infrator que pratica um crime contra sua cônjuge ou companheira, ou, ainda, alguma parente do sexo feminino. Aliás, o Estatuto do Idoso, além de dispensar a representação, expressamente prevê a não aplicação desta excludente da criminalidade quando a vítima tiver mais de 60 anos.

Seguindo a mesma linha, Feix (2009, p. 209) acrescenta:

Utilizar argumentos de proteção à família como fundamento da política criminal em caso de violência patrimonial contra a mulher é desconhecer os fundamentos históricos, filosóficos e políticos que justificam e enquadram a Lei Maria da Penha como uma ação afirmativa do Estado brasileiro, que tem como objetivo promover a diminuição da estrutural desigualdade entre os gêneros, na família e no “sagrado” lar, que tem na violência poderoso instrumento de perpetração e reprodução.

Defendendo tal posicionamento, argumenta-se que a aplicação das imunidades previstas na lei penal faz desaparecer a força e o sentido da proteção estabelecida pela Lei Maria da Penha. A previsão de repressão à violência patrimonial ficaria, assim, inócua, visto que sua aplicabilidade estaria amplamente limitada. Em resumo, a intenção legislativa por coibir a violência doméstica e familiar mostrar-se-ia pouco útil, favorecendo no contexto do processo penal a pessoa do agressor ou da agressora.

Em sentido contrário, a segunda corrente defende que a Lei Maria da Penha não afasta a aplicação das escusas absolutórias. Assim sendo, não obstante a previsão da proteção à mulher que sofre violência patrimonial, o Estado não exercerá seu direito de punir contra aquele que pratica crime contra o patrimônio em desfavor de umas das pessoas listadas no Art. 181 do Código Penal, ainda que seja a vítima do gênero feminino.

Nesse sentido, Sanches (2015, p. 384) justifica seu posicionamento nos seguintes termos:

A uma, deve ser alertado que o Estatuto do Idoso, para impedir as escusas quando a vítima é pessoa idosa, foi expresso (diferente da Lei Maria da Penha, que nada dispôs nesse sentido, nem implicitamente); a duas, não permitir a imunidade para o marido que furta a mulher, mas permiti-la quando a mulher furta o marido, é ferir, de morte, o princípio constitucional da isonomia (aliás, a Lei 1 1 .340/2006 deve garantir à mulher vítima de violência doméstica e familiar especial proteção, e não simplesmente à mulher, mesmo quando autora!) .

Nesse mesmo posicionamento, conforme Lima (2015, p. 914),

diante do silêncio da Lei Maria da Penha, que não contêm qualquer dispositivo expresso vedando a aplicação dos arts. 181 e 182 do CP, o ideal é concluir que as imunidades absolutas e relativas continuam sendo aplicáveis às infrações penais praticadas no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher. Quando a lei quis afastar a possibilidade de aplicação de tais imunidades a determinada espécie de crime, o fez de maneira expressa, a exemplo do que se dá na hipótese de crime praticado contra o patrimônio de idoso.

Argumenta-se, nessa linha de pensamento, que a intenção legislativa de proteção à harmonia no âmbito familiar se impõe, visto que não existe previsão legal explícita em sentido contrário. Assim, quando foi intenção do legislador fazer exceções em relação à aplicação das imunidades, como no caso da pessoa idosa, o fez explicitamente. Ao deixar de afastar a punibilidade nos casos em estudo, o juiz estaria trazendo prejuízo ao réu com uma interpretação equivocada da norma.

O conflito permanece no âmbito jurídico sem ser, todavia, solucionado pelo legislador através de edição de norma explicita que esclareça a matéria. Nesse contexto, fica a cargo do Poder Judiciário, quando provocado, definir os parâmetros de aplicação da norma no caso concreto.

Do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça acerca da aplicação das escusas absolutórias no contexto da violência doméstica

O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o tema em estudo através de decisão da Quinta Turma, no Recurso em Habeas Corpus n. 42.918/RS, relatado pelo Ministro Jorge Mussi. Na ocasião se discutia o caso de um homem acusado de estelionato em desfavor da esposa, que pleiteava a aplicação da escusa absolutória do Art. 181, I, do Código Penal. Destaca-se que os cônjuges eram separados de fato, o que conforme a literatura jurídica, não afasta a aplicação do benefício, por falta de expressa previsão legal.

Segue ementa da decisão:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE ESTELIONATO (ARTIGO 171, COMBINADO COM O ARTIGO 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). CRIME PRATICADO POR UM DOS CÔNJUGES CONTRA O OUTRO. SEPARAÇÃO DE CORPOS. EXTINÇÃO DO VÍNCULO MATRIMONIAL. INOCORRÊNCIA. INCIDÊNCIA DA ESCUSA ABSOLUTÓRIA PREVISTA NO ARTIGO 181, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. IMUNIDADE NÃO REVOGADA PELA LEI MARIA DA PENHA. DERROGAÇÃO QUE IMPLICARIA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. PREVISÃO EXPRESSA DE MEDIDAS CAUTELARES PARA A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO DA MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. INVIABILIDADE DE SE ADOTAR ANALOGIA EM PREJUÍZO DO RÉU. PROVIMENTO DO RECLAMO.

1. O artigo 181, inciso I, do Código Penal estabelece imunidade penal absoluta ao cônjuge que pratica crime patrimonial na constância do casamento.

2. De acordo com o artigo 1.571 do Código Civil, a sociedade conjugal termina pela morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela separação judicial e pelo divórcio, motivo pelo qual a separação de corpos, assim como a separação de fato, que não têm condão de extinguir o vínculo matrimonial, não são capazes de afastar a imunidade prevista no inciso I do artigo 181 do Estatuto Repressivo.

3. O advento da Lei 11.340/2006 não é capaz de alterar tal entendimento, pois embora tenha previsto a violência patrimonial como uma das que pode ser cometida no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, não revogou quer expressa, quer tacitamente, o artigo 181 do Código Penal.

4. A se admitir que a Lei Maria da Penha derrogou a referida imunidade, se estaria diante de flagrante hipótese de violação ao princípio da isonomia, já que os crimes patrimoniais praticados pelo marido contra a mulher no âmbito doméstico e familiar poderiam ser processados e julgados, ao passo que a mulher que venha cometer o mesmo tipo de delito contra o marido estaria isenta de pena.

5. Não há falar em ineficácia ou inutilidade da Lei 11.340/2006 ante a persistência da imunidade prevista no artigo 181, inciso I, do Código Penal quando se tratar de violência praticada contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, uma vez que na própria legislação vigente existe a previsão de medidas cautelares específicas para a proteção do patrimônio da ofendida. (...)

7. Recurso provido para determinar o trancamento da ação penal apenas com relação ao recorrente.

(RHC 42.918/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 05/08/2014, DJe 14/08/2014. Grifos nossos.)

Nota-se que o ministro relator do processo defendeu o entendimento de que a Lei Maria da Penha não revogou, ainda que tacitamente, o Art. 181 do Código Penal. Para o magistrado, no que foi seguido pelos demais membro da turma, haveria desarrazoado desequilíbrio se se reconhecesse a inaplicabilidade da escusa absolutória no caso. Tal desequilíbrio consistiria na possibilidade de responsabilização de um homem que atentasse contra o patrimônio da esposa e no afastamento da punibilidade de uma mulher que praticasse crime contra o patrimônio do marido.

Os ministros do Tribunal ainda defendem que seu entendimento acerca da manutenção das escusas absolutórias no contexto da violência doméstica não tornaria inútil a Lei Maria da Penha no que se refere à proteção à mulher contra a violência patrimonial. Para os membros daquela corte, as previsões do Art. 24 da lei acerca das medidas cautelares a serem adotadas para a proteção do patrimônio da ofendida possibilitam a efetividade da norma.

Considerações Finais

Conforme foi demonstrado, a violência patrimonial consiste na agressão ao patrimônio da mulher, destruindo-o ou impedindo que esta exerça seus legítimos direitos sobre sua propriedade. Tal forma de violência pode ter como objetivo tirar da mulher a autonomia, de forma que se possa exercer sobre ela controle de maneira intensa, sem deixar-lhe meios de sair de tal situação.

 A Lei Maria da Penha estabeleceu mecanismos para coibir a citada forma de violência, determinando medidas urgentes para impedirem que o agressor provoque danos ao patrimônio da mulher e ao patrimônio comum. Resta, porém, o questionamento acerca da aplicação das escusas absolutórias do Código Penal aos crimes praticamos no contexto dos citados casos de violência.

No presente estudo, ficou demonstrado que no campo jurídico duas linhas de pensamento se estabeleceram. Para a primeira, o propósito da Lei Maria da Penha se mostra incompatível com a previsão de afastamento da punibilidade prevista na lei penal. Assim, as imunidades não se aplicam quando o crime ocorrer no contexto da violência doméstica e familiar. Para a segunda, a falta de previsão explícita na lei impõe a aplicação do benefício em favor do agressor.

Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça se mostrou favorável à aplicação das escusas absolutórias nos casos em estudo, apontando para uma adoção à segunda corrente. Argumenta a Corte que a própria lei estabelece mecanismos para minimizar os danos da violência patrimonial, de maneira que a efetividade da norma não fica prejudicada.

Por fim, cabe destacar que o tema ainda não é pacífico. Assim sendo, por mais que a decisão do Superior Tribunal de Justiça indique os rumos prováveis da jurisprudência nacional, é possível que se mude tal posicionamento, de forma que se considera tema divergente que ainda pode ser objeto de debate no âmbito judicial, enquanto o legislador não optar pela regulação definitiva da matéria.

Referências Bibliográficas

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BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em 14 ago. 2017.

FEIX, Virgínia. Das formas de violência contra a mulher – Artigo 7º. In: CAMPOS, Carmen Hein de (organizadora). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Yuris, p. 201-213, 2011.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 3. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2015.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral e parte especial. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

PASINATO, Wânia. Lei Maria da Penha. Novas abordagens sobre velhas propostas. Onde avançamos?. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v. 10, n. 2, 2010.

SANCHES, Rogério. Manual de Direito Penal: Parte Especial. 7. Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2015.

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Editora Revista dos Tribunais, 2008.

Sobre o autor
Alexander Luiz Durães

Possui graduação em Direito pelas Faculdades Santo Agostinho, atuando como advogado desde o ano de 2008. Possui duas pós-graduações, em "Análise da Criminalidade, Violência e Segurança Pública no Norte de Minas", pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e em "Ciências Criminais", pela Universidade Cândido Mendes. Atualmente cursa nova especialização, em "Didática e Metodologia do Ensino Superior", pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e exerce a advocacia, com ênfase em Direito Público. Já se dedicou a funções públicas junto ao Instituto Municipal de Previdência dos Servidores Públicos de Montes Claros (PREVMOC), no qual ocupou os cargos de Advogado, Procurador Jurídico Geral e Diretor-Presidente, entre os anos de 2013 e 2015. Cursou a disciplina Gênero e Subjetividade e cursa a disciplina Imaginário e Liturgias Políticas, ambas do Programa de Pós-Graduação em História da Unimontes. Em 2013 foi reconhecido como Personalidade do Ano na área da advocacia pela Gazeta Norte Mineira, Revista Tempo e TV Geraes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DURÃES, Alexander Luiz. A possibilidade da aplicação das escusas absolutórias aos casos de violência patrimonial previstos na Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5255, 20 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61326. Acesso em: 22 nov. 2024.

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