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A segurança pública a partir do sistema prisional no Brasil

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Agenda 11/03/2018 às 23:30

A melhoria da segurança pública brasileira passa pelo aprimoramento do sistema carcerário, que enfrenta quatro desafios: superpopulação; retomada do controle dos presídios, que hoje é das facções; controle do crime que parte dos presídios; ressocialização do preso.

Muito se debate e escreve sobre a problemática da segurança pública e o sistema prisional brasileiros, mas, em regra, isoladamente, razão pela qual este artigo se propõe a analisá-las conjuntamente, por acreditar-se que estão intimamente ligadas. A situação carcerária é uma das questões mais complexas da realidade social brasileira e os primeiros dias de 2017 foram incisivos ao demonstrarem o caos instalado e o descontrole do Estado  sobre sua carceragem.

Já no primeiro dia do ano essa dura realidade mostrou a cara: enquanto alguns brasileiros se restabeleciam da festa da virada e outros estendiam as comemorações de boas vindas ao ano que chegava, ocorria o segundo maior massacre de presos da história do país, com 56 assassinados, cerca de 30 decapitados, em rebelião no complexo penitenciário Anísio Jobim, em Manaus/AM [1]. 

Cinco dias depois, a capital do estado vizinho, Boa Vista/RR, presenciou levante similar com saldo de 31 mortos na penitenciária agrícola de Monte Cristo, a maior de Roraima [2]. Foi nesse cenário que o país despertou das festividades de passagem de ano para enfrentar o fato de que a carceragem brasileira sucumbiu, e pelo que aconteceu em Manaus e Boa Vista nenhum brasileiro precisa ir até a Síria para se espantar com as atrocidades do Estado Islâmico, porque temos nossos próprios monstros de fabricação caseira.

Ao tratar do encarceramento, Cezar Roberto Bittencourt (2012, p. 226) argumenta que os motins carcerários são os fatos que mais dramaticamente evidenciam as deficiências da pena privativa de liberdade. Para o professor, é o acontecimento que causa maior impacto e o que permite à sociedade tomar consciência, infelizmente, por pouco tempo, das condições desumanas em que a vida carcerária se desenvolve.

Quem entende que os decapitados e assassinados já vão tarde, porque também eram criminosos, homicidas e estupradores, precisa lembrar que seus assassinos não ficarão presos para sempre e que a escola de criminalidade em que estudaram continua ensinando outros iguais a eles: homens selvagens e maus, que não respeitam nada nem ninguém.

Bom lembrar, também, que, mesmo antes de concluírem e saírem da "pós-graduação em marginalidade", dão ordens aos companheiros que já se formaram e saíram, ou ainda não foram capturados para se "pós-graduarem", e esses se encarregam de espalhar o crime e a insegurança no seio da sociedade assustada e impotente.

Pretende-se, neste artigo, demonstrar que a melhoria da segurança pública está umbilicalmente ligada à recuperação do sistema carcerário nacional, de forma que aquela não logrará grandes avanços enquanto este continuar menosprezado pelo Estado, conforme defendido, também, por Anabela Miranda Rodrigues [3] (2013, p. 14): "O coração de uma correta política criminal se encontra, em grande medida, na questão penitenciária".

Ao lecionar sobre o sistema penitenciário, Guilherme Nucci (2012, p. 43/48) recorda que ele foi criado como alternativa mais humana aos castigos corporais e à pena de morte, quando deixaram de ser aceitas, passando-se à procura de solução para as punições dos criminosos e proteção para a sociedade.

Tratando do tema, o Departamento Penitenciário Nacional - Depen, órgão do Ministério da Justiça, apresentou, em 2016, um diagnóstico sobre o sistema prisional brasileiro, talhado no "Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen" [4].

De acordo com esse levantamento, a população penitenciária brasileira chegou a 622.202 pessoas em dezembro de 2014, o que alçou o Brasil à quarta maior população carcerária do mundo, em números absolutos, atrás apenas de Estados Unidos, com 2.217.000; China, com 1.657.812 e Rússia, com 644.237.

Segundo esse estudo, o perfil socioeconômico dos detentos mostra que 55% têm entre 18 e 29 anos, 61,6% são negros e 75,08% têm até o ensino fundamental completo.  Além disso, a pesquisa constatou que, entre os detentos brasileiros, 40% são provisórios, ou seja, não tiveram condenação em primeira instância, e, por fim, no tocante à natureza dos crimes que motivaram a prisão, 28% referem-se a tráfico de drogas, 25% a roubo, 13% a furto e 10% a homicídio.

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Nesse cenário, uma das questões mais tormentosas refere-se à superpopulação dos presídios, e enquanto o art. 88 da Lei de Execuções Penais - LEP [5] prevê que o "condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório", na realidade o que existe é um amontoado de homens como animais, cujo conhecimento público e notório dispensa citações de escoliastas ou transcrições pretorianas.

 Sobre essa situação, Henrique Kloch (2008, p. 90) compreende que a legislação prevê o respeito aos direitos básicos dos reclusos, em especial os da personalidade, mas “na maioria das vezes os direitos do preso são violados nas unidades do sistema prisional brasileiro, resultando em rebeliões, pois seres humanos desejam ser tratados como tal”.

Não foi por outra razão que José Eduardo Cardoso disse, em palestra a empresários em 2012, quando era ministro da Justiça, cargo que ocupou de 2011 a 2016, que "entre passar anos num presídio brasileiro e perder a vida, eu talvez preferisse perder a vida [6]".

A precariedade dos presídios brasileiros, lamentada pelo então ministro, também foi recentemente reconhecida pelo STF, quando julgou, em fevereiro de 2017, o Recurso Extraordinário - RE nº 580.252/MS [7], no qual o Pleno da Corte discutiu a existência de responsabilidade civil do Estado pelos danos morais causados aos presos em decorrência da superlotação e do encarceramento em condições desumanas e degradantes.

Deu-se ao julgamento repercussão geral e decidiu-se, por unanimidade, que tais situações geram a responsabilidade do Estado indenizar o preso, uma vez que descumpriu o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

No seu voto, o ministro Luiz Fux afirmou que a situação dos presídios contraria a Constituição e torna as condenações penas cruéis: "... da forma como os presos são tratados, as condições das prisões brasileiras implicam numa visão inequívoca que as penas impostas no Brasil são cruéis.

O ministro Marco Aurélio, por sua vez, alegou que o Estado deve cuidar da dignidade do preso e de sua integridade física: "... é hora de o Estado acordar para essa situação e perceber que a Constituição Federal precisa ser observada tal como se contém".

 Em arremate, a presidente Carmem Lúcia ponderou que tem visitado presídios do país como presidente do Conselho Nacional de Justiça - CNJ e numa dessas visitas encontrou presas grávidas que foram algemadas na hora do parto.

A presidente acrescentou que o descumprimento da lei em relação aos direitos dos detentos também gera casos de corrupção no sistema prisional: “... o que se tem no Brasil decorre de outro fator, que ... é da corrupção que há nestes lugares ... a situação é bem mais grave do que possa parecer, de não cumprimento da Lei de Execução Penal”.

Além desse RE nº 580.252/MS, já julgado, e com repercussão geral, tramitam na Corte, versando sobre o mesmo tema, o RE nº 641.320, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, e o RE nº 592.581, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, ambos com repercussão geral já reconhecida, e também a ADI nº 5.170, de relatoria da ministra Rosa Weber.

Sobre essa situação melancólica da carceragem brasileira,  Cézar Bittencourt (2012, p. 162), ao ensinar sobre a evolução do sistema prisional pátrio, aponta que, quando em meados do século XIX a pena de prisão passou a ser difundida como pena de fato, seu objetivo era a reforma do transgressor, tendo como cenário um ambiente otimista e a convicção de que o cárcere resultaria em uma reflexão dos atos cometidos, gerando o arrependimento do criminoso, que se reabilitaria à sociedade, não tornando a delinquir.

 Hoje, para o professor, com um cenário de crise, não é possível enxergar a possibilidade de recuperação do apenado, pois não há nos estabelecimentos prisionais formas eficazes para ressocialização.

Essa impossibilidade de reabilitação do preso acaba por desaguar na violência presente nas ruas durante e após o cumprimento da sua pena, em prejuízo da sociedade, sendo um dos motivos para em 2016 o Brasil ter 19 cidades entre as 50 mais violentas do mundo, segundo relatório publicado pelo "Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública y la Justicia Penal", organização da sociedade civil mexicana [8]:

De las 50 ciudades del ranking 19 se ubican en Brasil, 8 en México, 7 en Venezuela, 4 en Estados Unidos, 4 también en Colombia, 3 en Sudáfrica, y 2 en Honduras. Hay una ciudad de El Salvador, Guatemala y Jamaica. La abrumadora mayoría de las 50 ciudades más violentas del mundo se ubican en América Latina. (grifou-se).

Ao comentar essa estatística da violência brasileira, Luiz Flávio Gomes [9] também a relaciona à superpopulação carcerária, mencionando que, se incluirmos os números das prisões domiciliares, somos o 3º país do mundo em encarceramentos, com mais de 700 mil reclusos.

De acordo com o professor, praticamos no Brasil a pior política criminal do planeta, pois gastamos muito com segurança pública, sem nenhuma eficácia preventiva; reprimimos pouco, pois é baixíssima a certeza do castigo, com apenas 8% dos homicídios esclarecidos; e não prevenimos nada.

Nesse panorama desértico, eventualmente surgem notícias que alimentam de esperança os que almejam um Brasil menos violento, como o programa implementado pela Secretaria de Justiça, Trabalho e Direitos Humanos do Paraná, que, em junho de 2014, lançou o "Portal da Transparência Carcerária"[10], atendendo aos princípios constitucionais que regem a administração pública e as diretrizes de transparência em gestão pública contempladas na Lei nº 12.527/2011 [11].

Tratou-se de um projeto pioneiro no Brasil que revelou o resultado exitoso de mais de 3 anos de trabalho voltado ao aprimoramento das informações do Estado acerca dos dados concernentes à população carcerária, que se tornaram públicas para toda a população.

A gestão do sistema carcerário naquele Estado revelou um desafio preocupante, pois a população carcerária paranaense era de 30.521 presos, e a superlotação atingia mais de 50%, com cerca de 16.205 detentos, classificando-o no 1º lugar no ranking dos Estados da Federação com maior número de presos em delegacias de polícia, não sendo um problema apenas do Paraná, porque campeia por todo o país.

Os dados do sistema carcerário paranaense revelaram que a construção de novas vagas não é a única resposta para melhorar a realidade prisional brasileira, sendo necessário assegurar mecanismos que gerenciem o necessário fluxo de entrada e saída dos estabelecimentos penais.

Nessa raia, constatou-se inexistir no Brasil um cadastro nacional de presos, para gerenciar informações em tempo hábil e os gestores possam rapidamente tomar decisões e articular políticas públicas relacionadas ao âmbito carcerário.

Para diminuir o problema existente no Paraná, contribuir com a agilidade nos processos, garantir o direito dos presos e desafogar o sistema carcerário em tempo hábil, o Estado criou uma ferramenta de tecnologia de informação que permitiu reduzir em 8% sua população carcerária. Isso porque, cruzando os dados colhidos em seus sistemas constatou-se que diversas penas já tinham prazo vencido, ou os presos tinham conquistado o direito de progressão de regime.

Conforme a proposta deste artigo, demonstrar a vinculação entre a segurança pública e o sistema carcerário, o projeto da terra das araucárias que permitiu redução da população carcerária impactou nos índices de segurança pública: a taxa de homicídios foi reduzida em 23,4% num período de três anos, uma vez que o número de homicídios dolosos, que foi de 2.490 em 2010, caiu para 1.907 em 2013.

Outra medida bem vinda foi implementada pelo Rio de Janeiro em 2012, por intermédio da Lei nº 6.346, de 23/11/2012 [12], que "dispõe sobre a reserva de vagas de empregos para os detentos e egressos do sistema penitenciário nas empresas prestadoras de serviços ao estado do Rio de Janeiro e dá outras providências.".

Conforme essa lei, "ficam reservadas 5%  das vagas de emprego dos prestadores de serviços ao Estado do Rio de Janeiro para detentos, egressos do sistema penitenciário e cumpridores de medidas alternativas.".

Outros Estados também adotam políticas de resgate da dignidade do preso, por intermédio do trabalho, caso de Santa Catarina que, segundo sua Secretaria de Justiça e Cidadania, em 2015, apresentava o respeitável percentual de 57% dos presos trabalhando [13]. Sobre essa medida exitosa, o secretário-adjunto de Justiça e Cidadania catarinense avaliou que:

A maioria das atividades profissionalizantes não são vinculadas a artesanato, são trabalhos voltados à economia de cada região para que ele possa deixar a unidade prisional e retornar à sociedade preparado para o mercado local. Temos experiências exitosas de muitas empresas contratando dezenas de presos que saem do sistema prisional. (grifou-se)

Medida igualmente revitalizante, que vem em resposta à reclamação das autoridades paranaenses, mencionada alhures, sobre a inexistência de um cadastro nacional de presos, ocorreu no dia 12/7/2017, quando a presidente do CNJ, ministra Carmem Lúcia, apresentou o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões - BNMP 2.0 a um grupo de juízes de todo o país que atuam na execução penal.

A nova tecnologia on-line vai incorporar em um único cadastro nacional do Poder Judiciário os dados pessoais, informações sobre a condenação e, principalmente, a situação de todos os presos perante a Justiça. Em poucos "cliques" as autoridades saberão instantaneamente se a pessoa é foragida ou não.

Esse sistema solucionará a crônica imprecisão das informações sobre a população carcerária, o déficit de vagas dos presídios e a quantidade de mandados de prisão não cumpridos no Brasil. Apesar da superlotação prisional, com pelo menos 600 mil pessoas sob custódia, ainda existiriam centenas de milhares de pessoas que deveriam estar presas, por ordem judicial, mas que não estão detidas porque a Polícia não cumpre todos os mandados de prisão expedidos pela Justiça. 

Nesse sentido, levantamento feito pela Corregedoria Nacional de Justiça em 2013 [14], a partir de informações contidas no Banco Nacional de Mandados de Prisão -BNMP, mostra que, de um total de 268.358 mandados de prisão, expedidos de junho de 2011 a 31 de janeiro de 2013, 192.611 ainda aguardavam cumprimento. Dúvida tormentosa é onde se prenderiam essas pessoas caso todos os mandados fossem cumpridos.  

Entre outras medidas que o Estado vem adotando na busca do melhoramento do sistema prisional, com reflexo na segurança pública, a última que se pretende abordar é a Associação de Proteção e Assistência ao Condenado - Apac, que é um estabelecimento de ressocialização de presos que cumprem pena, autorizados pelo juiz de execução penal da região.

Segundo o CNJ [15], na Apac, o condenado encontra uma rotina de trabalho e educação, diferente do ócio vivido atrás das grades dos presídios comuns; um quadro fixo de funcionários; e grupos de voluntários que asseguram atividades variadas visando a preparar o preso para voltar ao convívio social. Enquanto manter um preso no sistema comum custa ao Estado cerca de R$ 2,7 mil mensais, a Apac consome 1/3 desse valor, algo em torno de um salário mínimo.

Sendo assim, diante do quadro apresentado ao longo deste artigo, conclui-se que a melhoria da segurança pública brasileira passa pelo aprimoramento do sistema carcerário que enfrenta quatro desafios: superpopulação; retomada do controle dos presídios, que hoje é das facções; controle do crime que parte dos presídios; ressocialização do preso.

Um ambiente adequado, em condições de recuperar o detento, como ocorre na Apac, é essencial, porque, depois de ser tratado como animal nos presídios, o preso volta às ruas portando-se como tal e quem sofre com isso é a própria sociedade, de forma que esta se beneficia diretamente da recuperação do apenado.

Segundo Michel Foucault (1999, p. 134), "a prisão em seu todo é incompatível com toda essa técnica da pena-efeito, da pena-representação, da pena-função geral, da pena-sinal e discurso. Ela é a escuridão, a violência e a suspeita. É um lugar de trevas" (grifou-se). Nessa escuridão, passar hoje pelo sistema prisional brasileiro equivale a receber um atestado de óbito social.

Sobre o autor
Luciano Rosa Vicente

Professor de Direito na Faculdade Anhanguera de Brasília - FAB; mestrando em Direito; especialista em Direito Público, Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Disciplinar; bacharel em Direito; e bacharel em Ciências Contábeis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VICENTE, Luciano Rosa. A segurança pública a partir do sistema prisional no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5366, 11 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61449. Acesso em: 23 dez. 2024.

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