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Aplicação da "lei Maria da Penha" para pessoas “trans” em delegacias

Agenda 26/12/2017 às 15:49

O texto tem por finalidade oferecer aos operadores do direito alguns argumentos para aplicação da lei Maria da Penha para pessoas "trans", que se reconhecem com identidade de gênero feminino.

A aplicação dos procedimentos e interpretação dada à violência doméstica e familiar previstos na Lei 11.340/2006, conhecida popularmente como "lei Maria da Penha", quando o assunto envolve o grupo “trans”, aparentar ser para alguns um fato tormentoso e temerário; desta forma, no intuito de lançar uma pequena centelha argumentativa e ajudar a esclarecer o tema, passo a expor o que abaixo se segue.

Os diplomas normativos de âmbito nacional e internacional de proteção as mulheres, tem por base, além de outras frentes, o combate a histórica situação de desigualdade, violência, preconceito, dominação e imposição, explícita ou implicitamente existente no seio social, cujo odioso estigma assenta-se no gênero feminino e não apenas no sexo biológico feminino.

Os defensores da identidade de gênero, argumentam que:  "Gênero" vai além do sexo, onde a definição de ser homem ou mulher, não se pauta em uma relação cromossômica ou de conformação genital, mas na auto percepção e a forma como a pessoa se expressa socialmente". (Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos. Jaqueline Gomes de Jesus. Brasília. 2012).

Nesse diapasão: “A identidade de gênero se refere à experiência de uma pessoa com o seu próprio gênero. Pessoas transgênero possuem uma identidade de gênero que é diferente do sexo que lhes foi designado no momento de seu nascimento. Uma pessoa transgênero ou trans pode identificar-se como homem, mulher, trans-homem, trans-mulher, como pessoa não-binária ou com outros termos, tais como hijra, terceiro gênero, dois-espíritos, travesti, fa’afafine, gênero queer, transpinoy, muxe, waria e meti. Identidade de gênero é diferente de orientação sexual. Pessoas trans podem ter qualquer orientação sexual, incluindo heterossexual, homossexual, bissexual e assexual.” (Nota Informativa das Nações Unidas. Disponível em https://unfe.org/system/unfe91-Portugese_TransFact_FINAL.pdf?platform=hootsuite).

No que se refere a fundamentação legal para aplicação de "lei Maria da Penha" para pessoas "Trans" em delgacias, segue abaixo os seguintes dispositivos: 

No plano internacional o artigo 1º da Declaração de Eliminação da Violência contra a mulher da ONU dispõe que para os fins da presente Declaração, a expressão “violência contra as mulheres” significa qualquer ato de violência baseado no gênero do qual resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada. (Resolução 48/104, de 20 de Dezembro de 1993).

Não se podendo ainda esquecer, que no texto integral da Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher de 1995, realizado em Pequim, em seu item 113 consta que: A expressão “violência contra a mulher” se refere a quaisquer atos de violência, inclusive ameaças, coerção ou outra privação arbitrária de liberdade, que tenham por base o gênero e que resultem ou possam resultar em dano ou sofrimento de natureza física, sexual ou psicológica, e que se produzam na vida pública ou privada.

 No sistema pátrio, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994 e aprovada pela Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996, define em seu artigo 1º violência contra mulher, como sendo qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.

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Por todo exposto, concluímos que o artigo 5º da lei 11.340/2006, onde dispõe que: “(...) configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, abrange, em sua interpretação mais efetiva, não só a mulher em sua definição biológica, mas também a pessoa em sua auto-afirmação de gênero mulher, independente do sexo biológico; portanto, em sede inquérito policial é perfeitamente viável a aplicação dos procedimentos da lei “Maria da Penha” a pessoas “trans”; devendo-se observar no bojo da análise o critério de auto-afirmação por parte da vítima, muitas vezes consubstanciados nos trajes sociais, trejeitos e forma de comportamento - critério objetivo.

Nosso ponto de vista tem por base que a correta aplicação da referida lei pauta-se não apenas no ser humano em seu aspecto biológico ou de orientação sexual, mas sim em sua identidade de gênero; dessa forma, havendo auto reconhecimento de “gênero feminino” e satisfeitos os demais requisitos legais, deve-se aplicar o referido diploma normativo.

Nesse diapasão o delegado de polícia, em sua esfera de aplicação do direito, deve observar o princípio “5 a) ” de Yogyakarta, tomando “todas as medidas policiais e outras medidas necessárias para prevenir e proteger as pessoas de todas as formas de violência e assédio relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero;” o que inclui a postulação por medidas protetivas e demais medidas previstas na lei 11.340/2006.

Por fim, o decreto estadual 65.127 de 12 de agosto de 2020, ampliou as atribuições das delegacias das mulheres e demais delegacias que fazem o atendimento referente a violência de gênero no estado de São Paulo, prevendo expressamente que: "As Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher, criadas pela Lei nº 5.467, de 24 de dezembro de 1986, têm, em suas respectivas áreas de atuação, a atribuição para investigar infrações penais relativas à violência doméstica ou familiar e infrações contra a dignidade sexual praticadas contra pessoas com identidade de gênero feminino e contra crianças e adolescentes.", sacramentando uma posição institucional da Polícia Civil paulista.'  

Respeitamos opinião em contrário, mas não há que se falar em eventual "analogia in malam partem", na aplicação da referida em favor da população “trans”, tendo em vista que o que se faz é aplicar a lei nos exatos fins a que ela se propõe, ou seja, tendo por base a identidade de gênero, não havendo que se falar na indevida aplicação em casos similares não previsto no âmbito normativo; uma vez que a análise histórica, sistemática e conceitual centra–se na proteção do gênero e não do sexo ou orientação sexual.

 

Sobre o autor
Arilson Veras Brandão

Delegado de Polícia do Estado de São Paulo

Informações sobre o texto

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