A portaria nº 1129/2017 do Ministério do Trabalho e a caracterização do trabalho escravo
Em 16 de outubro de 2017, foi editada pelo Ministério do Trabalho e Emprego a Portaria nº 1129, de 16 de outubro de 2017, que estabeleceu de forma detalhada o conceito de condição análoga a de escravo ascendendo a discussão acerca da temática do combate ao trabalho escravo no Brasil. Segundo o normativo, trabalho forçado seria aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade; a jornada exaustiva decorreria da submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria; a condição degradante estaria caracterizada por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade[32].
Ainda de acordo com a nova norma, a condição análoga à de escravo se caracteriza quando há submissão do empregado a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária; cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico; ou a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto[33].
O partido Rede Sustentabilidade ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a referida portaria, cujo pedido liminar foi provido ensejando a suspensão de sua aplicabilidade. Dentre os vícios sustentados, destacam-se a restrição do conceito de “redução à condição análoga a escravo”; o condicionamento da inclusão de empregador na “lista suja” do trabalho escravo e da divulgação dessa lista a prévio ato do Ministro do Trabalho; a criação de entraves burocráticos e políticos para a atuação dos órgãos e autoridades envolvidos na fiscalização e combate às formas modernas de escravidão; e o afastamento de requisitos mínimos para a celebração de Termos de Ajustamento de Conduta sobre a matéria, o que tende, segundo sustentam, a gerar impunidade[34].
Argumentou-se que o ato normativo impugnado restringiu radicalmente o conceito de trabalho escravo, pretendendo retornar ao marco jurídico anterior a 2003, em que a redução a condição análoga à de escravo pressupunha a restrição à liberdade de locomoção do trabalhador. Nessa linha, defendeu a violação do princípio da dignidade humana e do postulado da proibição ao retrocesso[35], ferindo diretamente preceitos fundamentais da Carta de 88[36].
A despeito da coerência dos argumentos sustentados, a questão relativa à vinculação do conceito de trabalho escravo a restrição da liberdade ainda é controversa e não está pacificada. Há posicionamento, igualmente coerente, inclusive de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, como o Ministro Gilmar Mendes e o Ministro Marco Aurélio, de que as más condições de trabalho não são aptas a integrar conceitualmente o tipo de trabalho escravo ante as graves consequências do crime[37].
O problema das normas trazidas pela Portaria, contudo, está em vincular o conceito de trabalho escravo à restrição da liberdade por meio apenas da coação física. Ignora-se que o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos, compondo um cenário capaz de impedir o trabalhador de reagir, de sair daquela situação conforme adiante se demonstrará ao definir o conceito de “condições degradantes” para fins penais sem perder de vista que, de alguma forma, a violação da dignidade humanda do trabalhador por meio de condições degradantes de trabalho deve estar de alguma forma, ainda que indiretamente, vinculada a violação ao direito à liberdade do trabalhador.
A definição de “condições degradantes” para fins de caracterização do crime de redução de trabalhadores a condições análogas à de escravo
De acordo com o recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal, seguido pelo Superior Tribunal de Justiça, o crime de redução de trabalhadores a condições análogas a de escravo se configura mediante a sujeição do trabalhador a condições degradantes, não se exigindo necessariamente a privação da liberdade[38]. Entende-se que a violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação de modo que, se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, atingindo níveis gritantes, por meio da submissão a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou condições degradantes, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal [39] [40].
Houve um reconhecimento legislativo da transmutação do bem jurídico tutelado, seguindo tendência internacional, de modo que a liberdade deixou de ser o único bem jurídico tutelado, despontando como objeto de tutela da norma penal também a dignidade da pessoa humana[41] [42]. Segundo César Roberto Bitencourt, protege-se aqui a liberdade sob o aspecto ético social e a própria dignidade do indivíduo, também igualmente elevada ao nível de dogma constitucional[43]. Rogério Greco defende que o bem juridicamente protegido é não apenas a liberdade da vítima como também a vida, a saúde e a segurança do trabalhador ante a menção as condições degradantes como hipótese de incidência do crime[44].
Se o tipo do art. 149 do Código Penal criminaliza a submissão do trabalhador a “condições degradantes”, tutelando não apenas a liberdade individual, mas a dignidade humana, é preciso enfrentar a problemática da definição de “condições degradantes” para fins penais.
A doutrina trabalhista defende que a só constatação de alojamentos inadequados em barracos de lona já configuraria condições degradantes e, por conseguinte, trabalho análogo ao escravo[45], assim como a falta de água potável e alimentação suficiente e adequada, bem como a ausência de refeitório e cozinha adequados, a falta de instalações sanitárias adequadas, a falta de equipamento de proteção individual ou coletiva, a falta de assistência médica e a falta de registro do trabalhador. Cada um desses elementos, por si só, já configuraria a sujeição do trabalhador a situação análoga a de escravo[46]. Sustenta-se que em 2003 o legislador brasileiro decidiu ampliar a proteção conferida aos trabalhadores, por meio de opção legislativa deliberada, que merece ser reconhecida e respeitada, eis que exercida democraticamente para que, a pretexto de se interpretar a lei, não se venha a derrogar a nova redação[47].
Esse, contudo, não é o melhor entendimento sob pena de se considerar todo e qualquer trabalho na zona rural do país como análogo ao escravo e criar um direito penal máximo que desborda dos limites de sua atuação, avançando para o campo dos outros ramos do direito, em total desrespeito aos princípios basilares da fragmentariedade e subsidiariedade, corolários do princípio da intervenção mínima.
Primeiro, para caracterizar trabalho escravo, mediante “condições degradantes”, deve restar configurada uma lesão das vítimas superior àquelas já punidas na esfera trabalhista. Nesta análise, a configuração de vários fatores há de ser levada em conta, tais como a restrição da liberdade, jornadas exaustivas, ausência de descanso, condições dos alojamentos e de higiene, exposição a agentes nocivos ou a risco de acidentes, em um contexto em que a associação de diversos fatores leve ao resultado semelhante à escravidão.
Não há condições degradantes de trabalho para fins de caracterização de trabalho escravo contemporâneo pelo só descumprimento de normas de segurança sem a coisificação do trabalhador, por irregularidades quanto ao cumprimento da legislação trabalhista. Tampouco alçam o patamar de condições degradantes para fins penais a mera precariedade das acomodações dos trabalhadores em especial quando compartilhada por um dos réus e sua família e advertidos os trabalhadores previamente das condições de trabalho[48].
A violação das regras trabalhistas, por si só, atrai a tutela jurídica em âmbito judicial próprio – a Justiça do Trabalho, cujo órgão de cúpula, o Tribunal Superior do Trabalho, vem, de forma reiterada, condenando empregadores ao pagamento de indenizações por danos morais nos casos em que trabalhadores são submetidos a condições consideradas, sob a ótica trabalhista, degradantes.
Não é sempre que se pode legitimamente afirmar que as irregulares condições de trabalho, de moradia, de segurança e de salubridade a que sujeitos os trabalhadores lesiona as suas dignidades de modo a reclamar a intervenção do Direito Penal, que, como já antecipado, é a última “ratio”. Em regra, as infrações às normas de medicina, saúde e segurança do trabalho podem ser suficientemente reprimidas mediante a aplicação das penalidades administrativas previstas na própria legislação trabalhista[49].
Nesse sentido, é esclarecedora a distinção feita pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio, no bojo do inquérito penal nº 3412[50]:
Deve-se caminhar para a distinção de situações. O ordenamento jurídico legou ao Direito Penal a tutela dos bens jurídicos mais caros ao indivíduo, daí a cominação de consequências sancionatórias graves, chegando-se à possibilidade
[51]
Segundo, para a caracterização do “trabalho escravo”, mediante submissão a condições degradantes, o consentimento da vítima deve ser obtido de forma viciada, mediante coação ou erro. Sujeitar-se a condições degradantes de trabalho tem o sentido de permitir que consigo seja feita alguma coisa, sem que o sujeito tenha vontade de se colocar naquela situação, se rendendo e se conformando[52]. O consentimento da vítima só é irrelevante se obtido de forma viciada, mediante fraude, coação ou erro. Ausentes esses vícios, sabendo o trabalhador exatamente sob que condições serão realizadas as atividades e podendo ele a qualquer tempo se retirar voluntariamente dessa situação, não há trabalho escravo[53].
Terceiro, para a caracterização de “condições degradantes” para fins penais, é imprescindível que o trabalhador esteja impossibilitado de reagir. O crime só se consuma com a efetiva redução da vítima a condição análoga a de escravo. Uma eventual jornada exaustiva ou uma esporádica condição degradante de trabalho pode configurar violação à lei trabalhista, mas por si só não é suficiente a consumação do crime se o trabalhador puder reagir e não estiver efetivamente reduzido a condições análogas a de escravo[54].
A restrição da liberdade de forma violenta se sobressai na análise do tipo, mas não é elemento exclusivo a ser analisado. Mesmo sem a sua constatação, é possível, em tese, a configuração do crime quando a liberdade do trabalhador é anulada por qualquer outra forma como acontece, a título ilustrativo, na hipótese de isolamento da fazenda e da existência (ou temor da existência) de animais ferozes nas proximidades do alojamento impedindo a saída dos trabalhadores. O cerceamento da liberdade dos trabalhadores pode ocorrer por diversos meios como, por exemplo, retenção indevida de salários, de documentos ou mesmo com a prática do trucksystem.
Não há consumação do delito quando a vítima não se torna submissa ao poder de outrem, por tempo juridicamente relevante resultando na efetiva redução do ofendido a condição análoga a de escravo[55]. É necessário, de algum modo, a supressão do estado de liberdade, sujeitando a vítima moral e fisicamente ao poder do dominador; não é qualquer irregularidade nas relações laborativas suficientes para determinar a incidência do art. 149.
Exemplificativamente, no bojo do processo nº 645-88.2013.4.01.3303, que tramitou na subseção judiciária da Justiça Federal em Barreiras na Bahia, os réus foram absolvidos, pois não havia “condições degradantes” para fins penais a configurar a tipicudade do crime do art. 149 do CP. As vítimas, apesar de ressaltarem as péssimas condições do local de trabalho, deixaram claro que eram livres, que não existia vigilância e que o horário de trabalho era definido por elas. Uma das vítimas relatou que no período em que permaneceu na fazenda, cerca de 15 (quinze) dias, visitou a família “umas duas vezes”, usando bicicleta até o ponto de ônibus. Outra vítima ressaltou que não foi enganada, sabia o que o esperava, sabia que ia dormir em barracão, mostrando que o consentimento da vítima não foi obtido de forma viciada e ela podia a qualquer tempo voluntariamente sair da situação em que se encontrava.
Nos autos do processo nº 2007.39.04.001121-1 que tramitou na subseção de Castanhal, no Pará, o juiz federal Omar Belloti Ferreira absolveu os réus das imputações do crime do art. 149 do CP, por entender não ser possível legitimamente afirmar que as condições de trabalho, de moradia, de segurança e de salubridade a que estavam sujeitos os obreiros tenha lesionado as suas dignidades de modo a reclamar a intervenção do Direito Penal, que, como se sabe, é a última ratio. Há, portanto, que se entender que as infrações às normas de medicina, saúde e segurança do trabalho foram suficientemente reprimidas mediante a aplicação das penalidades administrativas previstas na própria legislação trabalhista.
No caso, segundo entendimento do magistrado, inexistiu a comprovação de que os trabalhadores foram arregimentados mediante a utilização de qualquer meio fraudulento e a situação verificada resultou de fatores de ordem econômica da região e da pouca ou nenhuma qualificação dos obreiros que, diante da necessidade de assegurar a sobrevivência, aceitaram pactos laborais desprovidos dos direitos trabalhistas, o que demanda a firme e proporcional reprimenda dos órgãos competentes na matéria, sem, contudo, constituir ilícito penal.
Logo, o “trabalho degradante” para fins penais e alguma espécie de limitação à liberdade de ir e vir costumam andar juntas[56] sem que seja necessária a existência de violência física para a configuração do delito de redução à condição análoga à de escravo[57].