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HABEAS CORPUS: O “BARBEIRO DE SEVILHA” PARA A GARANTIA DA LIBERDADE NO DIREITO BRASILEIRO

Quando a forma não é Garantia.

Agenda 27/03/2018 às 04:28

É inadmissível que a apreciação do mérito do Habeas Corpus, instrumento instituído pelo própria Constituição como um factótum na Garantia da liberdade, seja condicionada à prévia, extensa e contraproducente valoração de requisitos puramente formais.

Na Constituição Federal ele está previsto no art. 5º, LXVIII e, por isto, tem status de Garantia Fundamental – e, portanto, insuprimível – do povo e do cidadão brasileiro.

            Diz o texto da Carta Magna, de forma muito clara e objetiva, que sua concessão dar-se-á “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

            No Código de Processo Penal, sua aplicabilidade e respectivo procedimento de tramitação estão estampados no art. 647 e seguintes, cuidando o subsequente art. 648 de elencar, em rol meramente exemplificativo (NUCCI, 2017, p. 87), as situações configuradoras de constrangimento ilegal que recomendam sua impetração.

            Na faculdade de Direito, diz-se, vulgarmente, que dada sua importância e indispensabilidade ao Estado Brasileiro, sua petição inicial pode ser feita “até em papel de pão” que, ainda assim, terá plena validade jurídica para ser apreciada.

            Aliás, a tal flexibilidade dos meios de materialização dele constata-se a partir de notícias retratadas pela imprensa, tais como a de um preso que se valeu de um pedaço de lençol para tanto[i] e, de outro, que se serviu de um rolo de papel higiênico para isto[ii], tendo, ambos os casos, sido “normalmente” remetidos para apreciação Superior Tribunal de Justiça.

            Nos Tribunais, ao digitar-se seu nome no campo de pesquisa de jurisprudência, depara-se com um sem-fim de resultados que dão conta de sua indispensável serventia e de sua aplicabilidade para desafiar os mais diversos temas, nos mais diversos momentos da persecução penal, inclusive antes e após a conclusão desta.

            Dos arquivos digitais dos julgados prolatados por nossos pretórios, desde a mais clássica das questões afetas à pretensão revogatória de prisões provisórias, passando por pleitos de trancamento de ações penais e declarações de nulidades fundadas em provas por meio ilícito e chegando até à anulação de sentenças e revisão de dosimetria de penas provenientes de condenações já transitadas em julgado, constata-se que, mais do que relevante, ele imprescindível ao direito penal (processual e material) brasileiro.

            Sua importância, a propósito, perpassa os limites do direito penal, chegando, muito embora timidamente, ao direito civil, quando, por ocasião de prisões decorrentes de dívidas alimentares e/ou infidelidade do depositário[iii], serve para sanar eventual ilegalidade na privação da liberdade.

            Fala-se aqui, como já se supõe, do Habeas Corpus.

           Historicamente, segundo a maioria dos autores (MORAES, 2005, p. 108), sua gênese remonta ao ano de 1215, na Magna Carta outorgada pelo Rei João Sem Terra, quando, precisamente no capitulo XXIX, restou consolidado o seguinte:

XXIX – Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou despojado, de algum modo, de sua condição; nem procederemos com força contra ele, ou mandaremos outros fazê-lo, a não ser mediante o legítimo julgamento de seus iguais e de acordo com a lei da terra.

Segundo Alexandre de Moraes (2005, p. 108), há ainda precedente mais remoto de instrumento similar ao Habeas Corpus, constituído ao tempo do Direito Romano, “pelo qual todo o cidadão podia reclamar a exibição do homem livre por meio de uma ação privilegiada que se chamava interdictum de libero homine exhibendo.”, mecanismo este que, porém, mais cuidava de tutelar interesses favoráveis à aristocracia do que da liberdade propriamente dita.

Também, menção importante merece ser feita à sua indireta presença no Direito Aragonês, a partir da la manifestación de personas de la corona de aragón, sistema jurídico este que, segundo Aury Lopes Jr.  (2011, p. 628), durante o período de 1428-1592, já dispunha de expedientes notadamente identificados com os predicados do atual Habeas Corpus.

Porém, tanto no Direito Romano, quanto na Magna Charta e no Direito Aragonês, o que se tinha, evidentemente, era algo que apenas se assemelhava ao Habeas Corpus atualmente existente, por assim dizer, protótipos de sua concepção moderna.

            O efetivo nascimento do Habeas Corpus tipicamente considerado remonta ao direito inglês, pela via do chamado Habeas Corpus Act, de 1679, o qual, já em seu item “I”, consolidou juridicamente o cabimento do writ em situações de privação da liberdade. Assim:

I - A reclamação ou requerimento escrito de algum indivíduo ou a favor de algum indivíduo detido ou acusado da prática de um crime (exceto tratando-se de traição ou felonia, assim declarada no mandato respectivo, ou de cumplicidade ou de suspeita de cumplicidade, no passado, em qualquer traição ou felonia, também declarada no mandato, e salvo o caso de formação de culpa ou incriminação em processo legal), o lorde-chanceler ou, em tempo de férias, algum juiz dos tribunais superiores, depois de terem visto cópia do mandato ou o certificado de que a cópia foi recusada, concederão providência de habeas corpus (exceto se o próprio indivíduo tiver negligenciado, por dois períodos, em pedir a sua libertação) em benefício do preso, a qual será imediatamente executória perante o mesmo lorde-chanceler ou o juiz; e, se, afiançável, o indivíduo será solto, durante a execução da providência (upon the return), comprometendo-se a comparecer e a responder à acusação no tribunal competente.

            Aqui no Brasil, a instituição do Habeas Corpus deu-se originalmente no Código de Processo Criminal do Império de 1832, passando, a partir disto, a permanentemente figurar nas sequentes Constituições Brasileiras, desde a Republicana de 1891 até a atual, promulgada em 1988.

            Por sua própria natureza e, em especial, pela absoluta importância do tema que constitui seu objeto (a emergente restauração da liberdade humana indevidamente aprisionada ou prevenção de sua perda), o Habeas Corpus, além de possuir rito simplificado e sumário, não se ressente de maiores formalidades, podendo, como acima dito, ser, inclusive, interposto pelos mais inusitados meios escritos, tais como em pedaços de lençol e até papel higiênico, desde que minimamente observados os requisitos do § 1º, do art. 654, do CPP.

            No entanto, nada obstante seu evidente caráter de combatividade no que se refere à salvaguarda ao direito de locomoção para o direito brasileiro, a partir de (nova) rápida pesquisa nos repositórios de jurisprudência dos saites dos Tribunais Pátrios (especialmente os Superiores), exsurge a conclusão de que, a despeito de sua efetividade teoricamente assegurada na lei e na doutrina, na prática, o Habeas Corpus, muitas vezes, tem sua admissibilidade subordinada a determinados requisitos e, inclusive, condicionado à observância de precisos caracteres formalísticos.

            Demonstração cabal disto está na Súmula 691, do Supremo Tribunal Federal que define que “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.”.

            A referida Súmula 691, do Pretório Excelso, muito embora seja recorrentemente “superada” em determinados casos – fato este que demonstra, por si só, a total impertinência de sua validade –, é um dos principais fundamentos utilizados pelos Tribunais Superiores para que seja obstado o trânsito de um Habeas Corpus que, irresignado com a denegação de liminar por determinado Pretório  de instância em remédio heroico lá apresentado, é impetrado perante a instância imediatamente superior rogando pela pronta cessação do alegado constrangimento ilegal.

            Há casos onde, também, conforme adverte Aury Lopes Jr. (2011, p. 634), ao serem instados à conceder liminares em sede de Habeas Corpus, determinados julgadores afirmam “ter por princípio não conceder liminares” ou que “a concessão de liminares é construção meramente jurisprudencial e, portanto, carente de previsão legal para ser deferida”, situação esta que, em diversas hipóteses, acaba ocasionando severo prejuízo ao paciente, o qual tem de aguardar o integral trâmite do writ impetrado em seu favor para, ao fim, muitas vezes meses após, ver expressamente reconhecida a ilegalidade que desde o princípio já se exprobava a existência e que, então, já poderia, lá, ter cessado.

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            Mais do que isso, em episódios mais específicos da prática forense, identificam-se situações onde, a despeito da ideia de simplicidade que é juridicamente natural da essência própria do Habeas Corpus, há a subordinação de sua admissibilidade a, por exemplo – e pasmem –, a “instrução” de remédio constitucional por advogado habilitado em casos onde a impetração seja deduzida por pessoa presa “sem conhecimentos técnicos” para tanto.

            Ocorre que, sem sombra de dúvidas, tal restritividade é absolutamente inconcebível à luz do texto constitucional.

            Exigir que o Habeas Corpus seja impetrado em conformação à rigorosas formalidades redunda, evidentemente, na deformação de sua essência própria e oportuniza, por certo, que retrações ilegais da liberdade reinem impunes sob o manto de inconcebíveis cerimônias estético-legais.

            Recusar-se, já em caráter prévio e sem sequer conhecer da situação-mérito, a analisar determinado Habeas Corpus fundado apenas em óbices tipicamente formais é, certamente, de modo silencioso – porém inequívoco – enjeitar os próprios princípios da Constituição Federal, tais como o da dignidade da pessoa humana e, principalmente, da liberdade.

            Por ser um instrumento vocacionado pela Constituição para assegurar a liberdade dos cidadãos brasileiros, é realmente injustificável que para o “conhecimento” de um Habeas Corpus sejam suscitados diversos obstáculos formais e, ainda, que seja o remédio heroico vinculado apenas a determinadas situações e/ou instâncias, como recentemente sugeriram as afamadas “10 medidas contra a corrupção[iv] projetadas pelo Ministério Público Federal.

            A bem dizer – e, agora sim, justificando ao leitor o inusitado título deste artigo – o Habeas Corpus é, à luz do texto constitucional, verdadeiramente, o “Barbeiro de Sevilha” da proteção do direito de liberdade no direito brasileiro.

            A quem não conhece ou não se recorda, cabe esclarecer que “O Barbeiro de Sevilha” (originalmente “Il barbiere di Siviglia”) é uma ópera de autoria do compositor italiano Gioachino Rossini, encenada pela primeira vez em 20 de fevereiro de 1816, em Roma, e que foi baseada na comédia homônima do dramaturgo francês Pierre Beaumarchais, criada em 1775.

            Seu trecho mais marcante – e, por certo, mais conhecido – é aquele onde, a plenos pulmões, o tenor invoca sucessivamente o nome do Barbeiro de Sevilha e brada: “Fígaro! (...) Fígaro! (...) Fígaro! (...) Fígaro! (...)Fígaro! (...) Fígaro! (...)Fígaro! (...) Fígaro! (...)Fígaro! (...) Fígaro! (...)”.

            Em resumo, a ópera “O Barbeiro de Sevilha” retrata, em linhas gerais, o cotidiano de Fígaro, um barbeiro que, além de seu ofício tradicional, desempenha inúmeras outras atividades, tais como, arranjar casamentos e transportar cartas e bilhetes entre os moradores de Sevilha.

            A tal referida polivalência de Fígaro na comunidade está iniludivelmente descrita já na primeira frase da ópera, que em seu idioma nativo adverte “Largo al factotum della citta!”, expressão que livremente traduzida ao português, condiz com “Abram alas ao faz tudo da cidade!”.

            Logo adiante, esta característica de “faz tudo” de Fígaro é reforçada quando a letra da ópera assere o seguinte:

Pronto a far tutto, la notte e il giorno

sempre d'intorno in giro sta

Miglior cuccagna per un barbiere

vita piu nobile, no, non si da

La la la la la la la la la la la la la!

 

(“Pronto para fazer tudo, noite e dia

Sempre rodando

Melhor sorte para um barbeiro

Uma vida mais nobre, não, não haverá

La la la la la la la la la la la la la!”)

 

            Daí, porque, em razão de sua multifuncionalidade para combater os igualmente múltiplos modos de restrição ilegal da liberdade, pode o Habeas Corpus ser adequadamente comparado com o “Barbeiro de Sevilha”.

            Sempre chamado, como Fígaro, a (re)solver as questões relacionadas à contração do direito de liberdade, deve o Habeas Corpus ser, sempre, mantido no mais elevado patamar do sistema jurídico brasileiro, uma vez que, tratando-se do retumbo de um brado da própria Constituição, é inadmissível que seja o “HC” fadado às amarras do formalismo e, assim, tenha comprometido seu alcance jurídico e reduzida sua possibilidade de eficiência.

            Por certo que a ora propugnada amplitude não implica, sob ângulo qualquer, na defesa de que todo e qualquer Habeas Corpus impetrado deva ter sua ordem concedida e, a despeito das demais motivações jurídicas (i.e. prisão preventiva adequadamente constituída com base no art. 312, do CPP), redunde na imediata liberdade de seu(s) paciente(s).

            Nada disto! 

            Naturalmente, a procedência da pretensão do writ estará fundamentalmente atrelada à constatação de efetivo constrangimento ilegal, o que, sabe-se, com total justiça, nem sempre se verifica em toda e qualquer súplica encaminhada aos juízes e, principalmente, Tribunais.

            Tenha-se em mente que, na forma do texto constitucional, ao lado do direito de petição (art. 5.º, XXXIV, “a”) está o direito à uma decisão fundamentada (art. 93, IX), decisão esta que, porém, não necessariamente corresponderá ao anseio tencionado pelo respectivo requerente.

            O que não se pode, porém, jamais, é desprezar o mérito contido na pretensão de salvaguarda do direito deambulatório deduzida via Habeas Corpus sob o fundamento de que este não é “formalmente cabível” ou que não está adequado a requisitos de índole formal.

            Os protestos correlatos a afirmado constrangimento ilegal nunca poderão ser tomados por invisíveis e/ou desconhecidos somente porque não foram encartados nos moldes da fôrma processual.

Desprezar reclamo de tamanha gravidade somente por “veneração ao rito” seria, verdadeiramente, colocar a Constituição em subserviência às formatações criadas por leis – e legisladores – inferiores ou mesmo súmulas – independentemente do Tribunal em que sejam editadas.

            Destarte que, aqui, não se está a falar de aplicação do princípio da fungibilidade aos Habeas Corpus para pô-lo como meio heterodoxo (STRECK e OLIVEIRA, 2012, p. 24) de solução das questões do processo penal, algo como o “chá de boldo”[v] representa para os enjoos após o almoço de domingo.

            Por se tratar de verdadeira ação constitucional “que visa evitar ou cessar violência ou ameaça na liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder[vi], seria até impossível colocar o Habeas Corpus em posição horizontal aos recursos previstos em lei, porque, enquanto o objeto do remédio heroico é, puramente, o restabelecimento ou a preservação do status libertatis do indivíduo e sua impetração independe da existência de processo em curso, os recursos cuidam de atacar a própria higidez técnica e a fundamentação jurídica de decisão proferida no contexto de ação (penal) judicializada.

            Numa palavra, enquanto o Habeas Corpus tem por foco a liberdade, os recursos processuais estão umbilicalmente conectados à insurgência do jurisdicionado sucumbente aos fundamentos – ou à ausência destes – empregados em decisão proferida em processo judicial.

             Além disto, dado seu caráter constitucional, o Habeas Corpus não pode ser, sob hipótese qualquer, equiparado a eventuais recursos ou expedientes processuais originados de normas inferiores (CPP, legislação esparsa, etc.), motivo porque não se cogita a hipótese de fungibilidade, sobretudo porque a fungibilidade só é cabível, nos termos do art. 579, do CPP, quando, salvo por má-fé, a (já) parte interpuser – e não “impetrar – “um recurso por outro”.

            A doutrina, a propósito, conforme leciona Paulo Rangel (2015, p. 1060) é resoluta ao afirmar, neste sentido, que “o habeas corpus não é um recurso, tratando-se de uma ação autônoma de impugnação cuja pretensão é a liberdade.”.

Entretanto, apesar de não se rogar pela fungibilidade do writ em estudo, tal como na ópera de Rossini, por ser um “factotum” (faz-tudo) idealizado no texto constitucional para que, nitidamente, de forma ampla, esteja sempre a postos para eficientemente proteger o direito à liberdade de quem indevidamente dela esteja ou alegue estar privado, deve o Habeas Corpus ser imune a quaisquer empecilhos de cunho meramente formais e burocráticos que o impeçam de transitar, como na ópera, com alas abertas nos Tribunais.

Algemar o Habeas Corpus a cânones científicos, culmina, sem sombra de dúvidas, em inaceitável paradoxo lógico e legal, no prévio emudecimento do último decibel da voz de quem já se vê em possívele muitas vezes efetiva – situação de clausura irregular de sua liberdade.

Para que possa o Habeas Corpus cumprir com sua aptidão constitucionalmente idealizada, é básico que a ele não sejam impostas peias, sobretudo àqueles tipicamente formais e estilísticas.

Em síntese, todo e qualquer Habeas Corpus deve, invariavelmente, ter seu mérito apreciado e, nesse sentido, ter como sentenças possíveis somente a concessão ou a denegação da ordem rogada.

Para que seja garantida, nos termos da Constituição Federal, a eficácia plena do remédio heroico, “não conhecer” ou “negar seguimento” a um Habeas Corpus não pode ser hipótese ativa nos Tribunais, posto que tais resultados configuram clara afronta à Garantia Constitucional de valoração da (i)legalidade da segregação suportada pelo paciente – ou daquela já prenunciada em seu prejuízo.

Adotar a aqui defendida premissa, aliás, acarretaria a extinção de um protocolo que, salvo melhor juízo, caracteriza um ululante contrassenso nos pretórios brasileiros e que, por mais que se exija do pensamento, não se faz juridicamente palatável.

Não raro vemos os Tribunais, sobretudo os Superiores, “não conhecendo” os Habeas Corpus impetrados em suas distribuições para, algumas linhas após esta rejeição, “conceder-lhe a ordem de ofício[vii].

A bem da verdade, a utilização deste aberrante expediente não possui sustentação lógica a partir do fato de que, nada obstante declaradamente e formalmente “concedida de ofício”, a ordem de liberdade – aqui dita em sentido lato – apenas teve procedência, somente e tão somente, por obra do (fictamente) ignorado pleito deduzido pelo impetrante.

Tais incoerentes casos de “não conhecimento” que ocasionam a “concessão da ordem” – porém de ofício –, afora sua flagrante desestrutura lógica, não gozam de mínima plausibilidade jurídica.

Ora, se a situação descrita na petição inicial de Habeas Corpus ostentava gravidade suficiente para ensejar a concessão de “ordem de ofício” e se, por outro lado, a autoridade impetrada apenas tomou ciência da situação fática através da iniciativa do peticionante particular – ou, em raros casos, do Ministério Público –, forçoso dizer que, indo além de enfadonhos volteios técnicos, foi o writ deveras conhecido, apreciado e julgado procedente.

Reforça essa concepção, também, o fato de que, quando o Código de Processo Penal, em seu art. 654, § 2º, autoriza a hipótese de expedição de ordem de Habeas Corpus de ofício, há absoluta e irretorquível clareza de que tal hipótese se dará em casos onde a constatação do constrangimento ilegal se der de modo contingente, aleatório, por assim dizer, acidental.

Nesse sentido, a corroborar tal entendimento, leciona Guilherme de Souza Nucci (2005, p. 993) (grifei):

Habeas corpus de ofício: é admissível que, tomando conhecimento de uma coação à liberdade de ir e vir de alguém, o juiz ou o tribunal determina a expedição de ordem de habeas corpus em favor do coacto. Trata-se de providência harmoniosa com o princípio da indisponibilidade da liberdade, sendo dever do magistrado zelar pela sua manutenção. Ex.: pode chegar ao conhecimento do magistrado que uma testemunha de processo seu foi irregularmente detida pela autoridade policial, para complementar suas declarações a respeito do caso. Pode expedir, de ofício, ordem de habeas corpus para liberar o sujeito. Dessa decisão, recorrerá de ofício (art. 574, I, CPP). Quanto ao tribunal, pode, também, conceder a ordem sem qualquer provocação, não havendo necessidade, por ausência de previsão legal, de recorrer a órgão jurisdicional superior.

 

Evidentemente que, uma vez provocado, via ação de Habeas Corpus, acerca de determinado contexto correlacionado à possível constrangimento ilegal, não está o julgador impetrado conhecendo a matéria por via fortuita e espontânea, mas, sim, propriamente, através de pretensão objetivamente a ele direcionada por vontade do impetrante, de modo que, nestes casos, “conceder a ordem de ofício” é, a bem da verdade, admitir a existência da ilegalidade denunciada na impetração e, portanto, ratificar o total cabimento do writ distribuído.

Conceder Habeas Corpus de ofício em meio a julgamento de recurso que, nada obstante intempestivo, tenha levado questão de evidente constrangimento ao Pretório, constitui exemplo claro de situação típica prevista no § 2º, do art. 654, do CPP.

Diversamente, conceder Habeas Corpus de “Ofício” no bojo de Habeas Corpus Impetrado pelos mesmos e idênticos fundamentos alegados na respectiva petição inicial é, salvo melhor juízo, dizer que seis não é meia dúzia, mas que meia dúzia é seis – mas que fique claro que seis não pode, nunca, por não ter a nomenclatura diretamente relacionada com doze, ser identificado como meia dúzia.

Repare-se ainda que, recentemente, em 22/03/2018, o Supremo Tribunal Federal dedicou boas horas de sua já assoberbada pauta para discutir, nos autos do “HC 152752”, se o indigitado writ poderia ou não ser “conhecido” – como se isto já não estivesse acontecendo... – face a questões preliminares/processuais.

Concluído tal debate[viii], face ao adiantado horário de seu encerramento, restou inviabilizada a imediata deliberação acerca do mérito do writou seja, a parte que realmente importa –, cenário este que, perfeitamente evitável, sem sombra de dúvidas, prejudica a própria eficiência dos trabalhos do Tribunal e, singularmente, põe o paciente e o impetrante – e, neste caso concreto, a própria sociedade –  em ansiosa posição de desnecessária espera pelo resultado final do julgamento.

Superar essa contraproducente tendência de cobrar milimétrica adequação do Habeas Corpus a requisitos de fundo processual e de negar-lhe a atenção apenas com base em questões técnicas que, diante da privação da liberdade, são deveras ínfimas, redundará, inclusive, em julgamentos mais céleres e, diga-se de passagem, mais sintonizados ao princípio da eficiência que também orienta o Poder Judiciário.

A partir do momento que a questão de mérito do remédio heroico for diretamente apreciada, sem maiores elucubrações sobre critérios essencialmente formais, certamente a própria celeridade da justiça melhor será providencia, na medida em que, além de atalharem-se os caminhos de discussões muitas vezes vãs correlacionadas ao rito processual – as quais, controversamente após, por vezes, acabam sendo magicamente superadas por concessões de ordem “de ofício” –, será a (in)existência do constrangimento ilegal devidamente apreciada e julgada incontinenti, sem reticências ou senões, o que, ainda, favorece(rá) a própria segurança jurídica, posto que inequivocamente valora e decide o thema iudicandum, pondo fim à controvérsia e liberando o Poder Judiciário da questão e entregando ao jurisdicionado a resposta que este procura(va).

Excepcionalmente contrariando a (correta) máxima de que, na persecução penal, “forma é Garantia”, no caso do Habeas Corpus, a rigidez na exigência do enquadramento do writ às balizas formais acaba por traduzir-se, curiosamente, em flagrante ofensa a uma Garantia Constitucional, qual seja, a da liberdadeou, no mínimo, a do direito de ter a legalidade de seu aprisionamento valorada pelo Poder Judiciário.

Causa espanto, aliás, que os mesmos Tribunais que, não raras vezes, ao enfrentarem o tema das nulidades no processo penal, afirmam que a inobservância da formalidade apenas invalida o ato se presente prejuízo real (pas de nullité sans grief), quando diante de Habeas Corpus, ergam com tanta facilidade empecilhos relacionados a padrões processuais para, fulminantemente, não conhecerem o writ e sequer pronunciarem-se acerca de seu mérito.

No tocante ao Habeas Corpus, sopesando a antiga dicotomia forma x substância (CAPRA, 1995, p. 15), conclusivo é que a forma tem diminuta importância frente à sua substância, razão pela qual não pode o tema afeto ao “rito” motivar seu “não conhecimento”, porquanto, nas sábias palavras de Alberto Zacharias Toron (2018)[ix] tais embargos não passam de “falsas questões para objetar-se o trânsito do HC”.

Enfim, é necessário permitir que o Habeas Corpus, nosso “Barbeiro de Sevilha”, nosso “Fígaro”, nosso “remédio heroico”, nosso “factótum” em prol da liberdade, consiga trabalhar dedicado em seus verdadeiros ofícios e deles dê a devida conta, como quer sua genitora, a Constituição Federal.

Assim como Fígaro que, para poder cumprir com efetividade a plêiade de funções que desenvolve em Sevilha, depende de plena autonomia para agir e transitar na comunidade levando seus recados, é necessário que se desopile a resistência ao Habeas Corpus, especialmente em relação ao rigor técnico por (muitas) vezes dele exigido, pois é o remédio heroico, sem dúvida alguma, além de uma Garantia Constitucional, um instrumento indispensável para a própria existência do Estado Democrático de Direito Brasileiro.

NOTAS

[i] Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2014/05/preso-do-ceara-usa-lencol-para-escrever-habeas-corpus-ao-stj.html. Acesso em 24/03/2018, às 15h:23min.

[ii] Disponível em: http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/06/preso-envia-pedido-de-habeas-corpus-escrito-em-papel-higienico-para-o-stj.html. Acesso em 24/03/2018, às 15h:25min.

[iii] Neste caso, naturalmente, em precedentes anteriores à Súmula Vinculante n. 25.

[iv] Medida de nº. 04As propostas que se seguem, da sétima até a décima, versam sobre o habeas corpus. As alterações objetivam: evitar decisões proferidas sem que exista um quadro de informações mais completo sobre o caso; evitar decisões precipitadas ou que substituam a análise cuidadosa dos autos quando a decisão buscada não implicar a soltura do paciente; garantir o aproveitamento de atos processuais não maculados por nulidade declarada em habeas corpus; garantir a intimação do Ministério Público e do impetrante para o julgamento dessa ação constitucional; permitir um recurso em favor do Ministério Público dentro do próprio tribunal que conceder ordem de habeas corpus, o que visa a garantir alguma paridade de armas no tocante à possibilidade de recorrer contra uma decisão desfavorável; e evitar a concessão de habeas corpus em caso de nulidade e cassação de decisão que não tangenciem diretamente o direito de ir e vir.” Disponível em < http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/conheca-as-medidas>. Acesso em 24/03/2018, às 21h:02min.

[v] Na expressão do ilustre Advogado Pedro Marques Teixeira.

[vi] MORAES, op. cit. p. 111.

[vii] São exemplos disto os julgados HC 427.095/PE, HC 424.233/SP e HC 434.921/SP, do STJ e HC 138621, HC 140589 e HC 134878, do STF.

[viii] O qual, gize-se, acertadamente, resultou no conhecimento daquele Habeas Corpus.

[ix]Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mar-23/lula-supremo-reabriu-portas-hc-afirmam-advogados?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook. Acesso em 25/03/2018, às 11h:05min.

 

BIBLIOGRAFIA

 

CAPRA, Fritjof.  A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2011.

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 18 ed. São Paulo: Atlas, 2005.

NUCCI, Guilherme de Souza. Habeas Corpus. 2 ed. rev., atual. e ampl. Forense: Rio de Janeiro, 2017.

__________. Código de processo penal comentado. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2015.

STRECK, Lênio Luiz. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O que é isto – as garantias processuais penais?. Livraria do Advogado Editora: Porto Alegre, 2012

Sobre o autor
Affonso Celso Pupe da Silveira Neto

Advogado. Especialista em Direito e Gestão Empresarial com ênfase nas áreas de Contratos e Consultoria Corporativa. Master of Business Administration em Gestão Jurídica Aduaneira e Internacional.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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