1.Introdução.
Sem dúvida, o Código de Processo Civil de 2015 consolidou um sistema de precedentes judiciais vinculantes, na medida em que ampliou os padrões decisórios aos quais estão necessariamente submetidos os órgãos do Poder Judiciário. Tal mudança de paradigma teve por objetivo central guarnecer, preponderantemente, princípios caros como a isonomia e a segurança jurídica, pois a jurisprudência lotérica brasileira, diuturnamente, vergasta direitos e garantias fundamentais do jurisdicionado[1].
O movimento de valorização dos “precedentes” vinculantes já ganhava contornos claros antes mesmo da edição da legislação processual em vigor[2], pois institutos como a súmula vinculante, a repercussão geral no recurso extraordinário, a cognominada súmula impeditiva de recursos (art. 518,§1º, do CPC/73), o rito repetitivo do recurso especial (art. 543-C, do CPC/15), dentre outros, já davam sinais da necessidade inconteste de se buscar, no âmbito do Poder Judiciário, integridade, coerência e estabilidade (art. 926, do CPC/15). Afinal de contas, não basta que se garanta a igualdade perante a lei! A igualdade precisa se fazer presente na aplicação da lei.
Dessa forma, foram alçadas à categoria de manifestações judiciais vinculantes decisões proferidas em sede de incidente de resolução de demandas repetitivas e de incidente de assunção de competência, acórdãos oriundos de recursos especiais e extraordinários repetitivos, súmulas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, além de outros casos previstos, em boa parte, nos artigos 332 e 927 do Código de Processo Civil em vigor.
Assim, cresce a preocupação com a necessidade de aprimoramento de uma teoria dos precedentes judiciais, considerando que a realidade jurídica dos Tribunais brasileiros em muito se distanciou do modelo decisório calcado no respeito a pronunciamentos judiciais anteriores (stare decisis), o qual clama por uma perspectiva alinhada ao método indutivo, cujos preceitos exigem que se extraia de um determinado caso concreto uma regra geral universalizável, que poderá ser aplicada em situações análogas, de acordo com as circunstâncias fáticas a envolver determinada demanda.
Nesse sentido, José Rogério Cruz e Tucci[3] propõe que o precedente judicial é composto de duas partes distintas, quais sejam, as circunstâncias fáticas que fundamentam a controvérsia e a tese ou princípio jurídico estabelecido na motivação decisória, também conhecida como ratio decidendi ou holding. Portanto, para se aplicar um precedente judicial é necessário verificar a similaridade substancial dos casos, com vistas a aferir a plausibilidade jurídica da replicação da ratio decidendi.
Ponto de relevo, no que pertine à teoria dos precedentes judiciais, é a discussão em torno da sua superação, mormente quando se discute o possível engessamento do Direito diante da manutenção dos entendimentos judiciais. De fato, não se pode supor que os precedentes obrigatórios serão mantidos a qualquer custo, ainda que o contexto que lhe serviu de esteio seja radicalmente modificado.
Com efeito, em países tradicionalmente adstritos ao common law (a exemplo dos Estados Unidos e da Inglaterra), surgiram instrumentos como o overruling (superação total do precedente) e overtuning (superação parcial do precedente) para alijar incongruências sistêmicas que resultassem em afastamento de uma ordem jurídica justa[4]. Desse modo, evita-se que, sob justificativa da proteção à uniformidade, sejam mantidos posicionamentos avessos ao arcabouço fático, jurídico, econômico e social subjacente.
Sob essa ótica, é imprescindível esmiuçar os modos de superação dos precedentes vinculantes, no direito brasileiro, tomando-se por base as diretrizes fixadas no CPC/15, mormente no que se refere à necessidade de um maior ônus argumentativo exigido para a mudança de entendimento (art. 927, §4º, do CPC/15), à ampliação do debate (art. 927, §2º, do CPC/15), em casos de revirement, e à modulação de efeitos (art. 927, §3º, do CPC/15).
Especificamente, no presente artigo, buscar-se-á analisar a possibilidade de realização do chamado anticipatory overruling, ou seja, da antecipação de revogação de precedente por Tribunais inferiores, nas hipóteses em que o caso paradigma não mais deve ser tomado por parâmetro decisório, tendo em vista a existência de razões concretas para o seu regular afastamento.
Nessa linha de intelecção, será discutido se o anticipatory overruling é a medida adequada para o afastamento do precedente judicial, quando ocorrer mudança de parâmetro legislativo, tal como ocorre na hipótese do art. 537, §3º, do CPC/15, que prevê a possibilidade de cumprimento provisório da multa cominatória, ainda que não exista decisão fundada em cognição exauriente, em contrariedade a entendimento anterior firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, por ducto do Recurso Especial repetitivo nº 1.200.856/RS.
2. O anticipatory overruling e o legislative override: Aplicabilidade no direito brasileiro.
Tal como registrado em linhas pretéritas, a ideia de manutenção do precedente judicial tem por intuito dar guarida, principalmente, à segurança jurídica, pois, segundo Humberto Ávila[5], esta pressupõe cognoscibilidade, previsibilidade, estabilidade e confiança, bem como à isonomia. Mas, como se disse, é inviável manter uma linha decisória a qualquer custo, na medida em que nem sempre serão sustentáveis os elementos justificadores de determinado posicionamento.
Assim o respeito ao precedente judicial não deverá ser justificativa para engessar o direito e chancelar decisões descompassadas com a realidade esquadrinhada em um novo contexto fático. O direito como integridade, conforme lições de Ronald Dworkin, impõe a necessidade da contínua interpretação do direito, mesmo que a atividade interpretativa anterior seja considerada bem-sucedida[6].
Desse modo, é que se prevê a possibilidade de realização do overruling ou superação total do precedente judicial, que exige, em face da proteção do histórico institucional decisório do Tribunal, razões sérias e fortes para a sua ocorrência, como já aduzia Neil Duxbury[7].
O Código de Processo Civil de 2015 fez menção expressa ao overruling, principalmente nos §§ 2º, 3º e 4º, do art. 927, quando previu a possibilidade de alteração de entendimento já consolidado em precedente obrigatório, desde que respeitado aspectos relacionados à profundidade argumentativa e ao amplo debate, bem como à modulação de efeitos, com o intuito de resguardar a legítima confiança do administrado. Em consonância com o disposto, manifesta-se Thomas da Rosa Bustamante[8]:
O que diferencia o overruling e o torna especialmente relevante é que ele não se refere a um simples problema de aplicação do precedente judicial – não se contenta com a não ocorrência de suas consequências no caso concreto -, mas vai bem além disso, já que representa uma ab-rogação da própria norma adscrita aceita como precedente. O overruling apresenta-se como o resultado de um discurso de justificação em que resulta infirmada a própria validade da regra antes visualizada como correta. Por isso, as razões que o justificam devem ser ainda mais fortes que as que seriam suficientes para o distinguishing (seja a interpretação restritiva ou a redução teleológica do precedente judicial).
Cumpre ressaltar, por oportuno, que o overruling deverá ser realizado, em regra, pelo órgão competente para a edição do precedente judicial obrigatório, na medida em que não se poderá subtrair do órgão jurisdicional uniformizador o juízo de apreciação alusivo à manutenção ou afastamento do entendimento outrora exposto[9]. O próprio sistema de precedentes obrigatórios pressupõe, nesse sentido, uma organização hierárquica do Poder Judiciário, através da qual devem ser respeitadas as distintas atribuições dos diversos órgãos jurisdicionais, mormente aquelas conferidas às Cortes de Vértice, no exercício da função nomofilácica.
A despeito do acima exposto, é necessário considerar a possibilidade de realização do chamado anticipatory overruling, no contexto da legislação processual brasileira.
Preliminarmente cumpre estabelecer o que se entende por anticipatory overruling, para os fins deste trabalho.
O anticipatory overruling ou antecipação da revogação é instituto que tem gerado controvérsias em países como Estados Unidos e Inglaterra[10] e pressupõe a possibilidade de a Corte inferior afastar um determinado precedente obrigatório, antes de sua revogação formal pela Corte que o editou. Veja-se que não se trata, ontologicamente, de revogação do precedente, mas de inaplicabilidade do padrão decisório vinculante, tendo em conta a existência de razões fortes o suficiente a apontar para uma possível superação de entendimento. Afinando-se no mesmo diapasão, pronuncia-se Luiz Guilherme Marinoni[11]:
Entenda-se por anticipatory overruling a atuação antecipatória das Cortes de Apelação estadunidenses em relação ao overruling dos precedentes da Suprema Corte. Trata-se, em outros termos, de fenômeno identificado como a antecipação a provável revogação de precedentes por parte da Suprema Corte.
Existem algumas razões pelas quais se justifica o afastamento pela Corte inferior de um precedente editado por uma Corte superior[12], dentre elas o desgaste do precedente judicial, a edição de novos posicionamentos, em sentido diverso do precedente consolidado, a confirmação de que o órgão jurisdicional superior reverá o entendimento, além da mudança de paradigma legislativo que pode ir de encontro à ratio decidendi do pronunciamento vinculante.
Saliente-se, nesse caso, que o anticipatory overruling não é técnica a ser utilizada quando o órgão jurisdicional simplesmente discorda do conteúdo do pronunciamento vinculante, sob pena de tornar estéril o próprio sistema de decisões obrigatórias. Apenas se perfaz possível antecipar a superação, caso existam fundamentos contundentes, a maior parte deles expressados pela Corte superior, indicativos da futura revogação do padrão decisório vinculante.
Assim, estar-se-ia a prestigiar a segurança jurídica, pois o jurisdicionado não mais espera que incidam as razões determinantes do precedente que estejam desconectadas da realidade.
Fica claro, portanto, que o anticipatory overruling decorre do próprio dever que a Corte inferior tem de observar as manifestações das Cortes superiores, uma vez que a antecipação da revogação há de ser aplicada, quando já existir forte sinalização do órgão que editou o precedente de que não vai mais utilizá-lo ou na hipótese de transmudação do paradigma legislativo que serviu de preceito estruturante para a edição do padrão decisório vinculante.
Posto isso, não há razões para rechaçar a aplicação do anticipatoty overruling, no Brasil, na medida em que, ao contrário do que podem pensar alguns doutrinadores, tal técnica não vai de encontro à estabilidade, integridade e coerência, posto que é inviável prosseguir com a aplicação de precedente obrigatório cuja holding já foi, de algum modo, evidenciada como incompatível com o sistema jurídico.
Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior[13] não destoa dos argumentos acima referenciados, ao se manifestar nos seguintes termos:
Em verdade, tendo o STJ ou STF demonstrado claramente que estão na iminência de revogar determinado precedente vinculante, por que não se permitir que os tribunais locais, ou até mesmo os juízes de primeira instância deixem de aplicar tal precedente ao caso em julgamento? Por que submeter a parte vencida à interposição de inúmeros e sucessivos recursos para, enfim, ver seu direito reconhecido perante o STJ ou STF, quando estes já haviam demonstrado cabalmente o desgaste de seu precedente?
Particularmente no que se refere à modificação do parâmetro legislativo a fundamentar o precedente judicial vinculante e a possibilidade de realização do anticipatory overruling, deve-se registrar que os órgãos jurisdicionais inferiores não podem se furtar à aplicação de novo enunciado normativo contrário à ratio decidendi do padrão decisório obrigatório. Nesse caso, não se está a violar a eficácia vinculante do precedente judicial, pois o órgão jurisdicional inferior apenas afasta a aplicação do precedente, em benefício da efetividade da disposição legislativa (Statute Law). Talvez essa seja a hipótese mais comum, no Brasil, de observância do anticipatory overruling.
Em consonância com o disposto, cumpre transcrever manifestação de Alexandre Freitas Câmara[14]:
Pense-se, por exemplo, no caso de se ter formado o padrão decisório vinculante a partir da interpretação de certo texto normativo que posteriormente venha a ser revogado. Seja permitido figurar uma hipótese: o STJ decidiu, pela técnica de julgamento dos recursos especiais repetitivos, que “[em] execução provisória, descabe o arbitramento de honorários advocatícios em benefício do exequente.” Ocorre que posteriormente à formação deste padrão decisório foi alterada a legislação processual, e o art. 520, §2º, do CPC/15 estabelece exatamente o contrário do que decidido naquele acórdão que o STJ proferiu. Parece óbvio que em casos assim não se pode negar ao órgão jurisdicional inferior a possibilidade de, antecipando-se ao tribunal que lhe é superior, afastar-se do padrão decisório e promover uma superação antecipada. Afinal, caso asism não se entenda, ter-se-á de considerar que a vinculatividade dos precedentes e dos enunciados de súmula é mais forte, mais densa do que a vinculatividade da lei (ou até mesmo da Constituição. (Grifos nossos)
Assim, é inadmissível pressupor que, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas viesse a afastar enunciado normativo constitucional superveniente, em prol da aplicabilidade de precedente judicial do Supremo Tribunal Federal que lhe fosse contrário.
Poder-se-ia, nesse ponto, vislumbrar a questão sob a ótica do legislative override[15], cujo teor pressupõe a possibilidade de o legislador superar entendimento consolidado, no âmbito jurisdicional. Se o legislador, portanto, não está adstrito a certo posicionamento emanado do Poder Judiciário, não podem os Tribunais negar vigência a dispositivo legal de teor diametralmente oposto a precedente vinculante[16].
Exsurge evidente, desse modo, que a técnica do anticipatory overruling é o esteio necessário para evitar que se perpetue situação em descompasso com os novos contornos da ordem jurídica e social, nos moldes do que propõe Lucas Buril de Macêdo[17]:
A superação antecipada é uma manifestação do conflito entre justiça e segurança jurídica. Certamente, a sua aplicação é pautada numa tentativa de garantir uma tutela mais juta para as situações de direito material, afastando um precedente que provavelmente será superado pelo tribunal superior, o que é feito com base na falta de congruência com proposições sociais ou inconsistências com o sistema jurídico como um todo. Assim, evita-se a prolação de uma decisão injusta ou inadequada (contrária a razões substanciais) por razões de segurança já não tão fortes.
Indubitável, desse modo, a necessidade da devida incorporação do anticipatory overruling ao sistema jurídico nacional.