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Poder e força de polícia

Agenda 21/05/2018 às 10:15

Discute a detenção do poder de polícia pelas Forças Armadas do Brasil na conjuntura atual de crise da segurança pública.

Até final dos anos 80, abordagens de questões doutrinárias relativas à Instituição-Polícia eram realizadas por preceptores da área do Direito. Entretanto, muitos conceitos, muitos princípios, muitos enquadramentos não eram endossados, nem aceitos, muito menos absorvidos pelos integrantes das corporações policiais, por várias razões, principalmente porque havia uma extensa bibliografia, produzida por estes profissionais, e que circulava somente internamente, com flagrante discordância de certas colocações daqueles mestres.

Com o surgimento do Movimento Policiológico de 82, em Minas Gerais, criado por oficiais da PMMG, para manifestação peculiar e divulgação dos princípios que dão embasamento à atividade, todo o material doutrinário, relativo à Polícia, passou a fazer parte do acervo da Policiologia, uma novel ciência, que nascia promissoramente. Simultaneamente, os quartéis da Força Pública Estadual (que tem o péssimo cognome de Polícia Militar) foram abertos à comunidade acadêmico-científica, com destaque para as visitas e consultas ao conjunto bibliográfico. Profissionais, ligados de alguma forma à segurança social (psicólogos, educadores, assistentes sociais, médicos, filósofos, jornalistas e, principalmente, sociólogos, cientistas políticos e sociais), descobriram, na pesquisa e no debate da proteção da sociedade, um nicho extraordinário para, com seus conhecimentos específicos, oferecerem propostas que conduzissem à melhoria em nossa qualidade de vida. Assim, seus posicionamentos, suas obras, enfim, suas contribuições interromperam o predomínio da interpretação jurídica, fazendo com que, hoje, essa matéria tenha, generalizando, três enfoques, às vezes guardando sintonia, às vezes divergência: do Direito, das Ciências Sociopolíticas e da Policiologia.

Essa transformação tem se mostrado, de um lado, extremamente positiva, principalmente no aspecto conceitual, ao contribuir na definição de certos juízos objetivos, incorporados à doutrina (conjunto permanente de princípios fundamentais, conjunturalmente aceitos). Por outro lado, estudos paralelos, independentes, individuais, de representantes dessas áreas, têm provocado demora na consolidação dessa ciência, o que poderia ser superado se houvesse um esforço sinérgico, envolvendo citados profissionais. Enfim, a não consolidação de princípios fundamentais tem prejudicado a compreensão do tema, o que, aliado a uma falsa complexidade, decorrente de manifestações controvertidas, tem sido um obstáculo para apresentação, minimamente, de propostas conceituais, contextuais, estruturais e comportamentais.      

Entende-se que essa contextualização se faz absolutamente necessária, visando a nivelar o leitor – profissional da área ou não – sobre as inúmeras razões da insegurança em nosso dia a dia, que se inicia com a ausência de uma consistente doutrina e o que isso provoca. Veja-se, por exemplo, o ocorrido por ocasião da recente intervenção no Rio de Janeiro. Em certo momento, houve uma parada no planejamento da operação, para se discutir a legalidade de as Forças Armadas (FFAA) atuarem respaldadas pelo Poder de Polícia. O ministro Jungman, após esse exame, comunicou à imprensa que a atuação seria sem o referido poder, possivelmente estribado em assessoramento (equivocado, sob nossa óptica) de que as FFAA não têm essa atribuição precípua. Imediatamente o Legislativo pôs-se a campo, apresentando, através de deputado de SP, uma PEC, assegurando “... às Forças Armadas, o exercício do poder de polícia em qualquer área do território nacional ...”. Ambos não deixaram claro se o poder de polícia, a que se referiram, seria o pleno ou o administrativo ou o judiciário.

Por outro lado, grande número de cientistas sociopolíticos não discutiu o poder de polícia das FFAA, porém, colocou-se frontalmente contra a intervenção no RJ. O Sindicato dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro e o Instituto de Sociologia do Rio de Janeiro manifestaram-se: "A crise da segurança é só a ponta do iceberg da crise social, política e econômica que vivemos. As Forças Armadas nas ruas não irão resolver esses problemas estruturais graves. Poderá, eventualmente, proporcionar uma sensação de segurança para a classe média e para as elites, mas, a população da periferia continuará sendo massacrada pelas políticas neoliberais e, agora, pela truculência de uma força de guerra treinada para matar e não para proporcionar a defesa do cidadão”. Fizeram algumas considerações muito boas, mas, ao final, não perderam a oportunidade de “jogar para a galera”, com banais e discutíveis frases de efeito.

Alguns policiólogos colocaram-se contra a intervenção, entendendo que etapas, dentro de certo escalonamento de esforços, foram queimadas atabalhoadamente, açodadamente, o que, mais à frente, pode afetar a atual e enorme credibilidade das FFAA, mas não se escusaram de discutir a posse, a detenção do poder de polícia pelas FFAA. Dessa forma, coerente com o pragmatismo sempre presente em análises dessa emergente ciência, alguns policiólogos entendem que há, nessa posse, legitimidade e legalidade. Primeiro porque o povo necessita, o povo quer esse empoderamento. Segundo porque uma das razões de criação do Estado é realizar o provimento da proteção e promover o progresso, nacional e social. Para isso, o Estado detém autoridade, capacidade de atuar sobre a vontade individual e a coletiva. E essa autoridade é bipartida em poder e força.

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Poder é a capacidade de alterar a vontade individual e a vontade coletiva, enquanto Força é a capacidade de impor a vontade do Estado. Permitem-se inferir que quem detém Poder não tem a Força, mas quem detém a Força detém o Poder, que lhe é intrínseco. O trabalho nas ruas, e não em gabinetes com ar condicionado, nas ocorrências de caráter preventivo e repressivo, possibilitou-lhes enxergar esse aspecto, para o que invocam a expressão latina “in eo quod plus est semper inest et minus” (quem pode o mais, pode o menos). Em sua rotina, a polícia ostensiva se utiliza de poder, quando atua preventivamente, e da força, quando atua repressivamente. Concluindo, entendem que as FFAA (força pública federal) vão atuar como polícia ostensiva, nas mesmas circunstâncias em que atua a Polícia Militar (força pública estadual). Vale dizer, ratificam, essa atividade, quando preventiva, será desenvolvida embasada no poder de polícia e, quando repressiva, utilizará a força de polícia, nos limites da lei.

Enfim, essa discussão se as FFAA (força pública federal), garantidoras da ordem nacional, detêm poder de polícia, quando empregadas como polícia ostensiva, na garantia da ordem social, pode ser vista como totalmente intempestiva, por absolutamente cristalina. De resto, essa celeuma vem reforçar a necessidade de se estabelecer uma sólida doutrina de segurança social, que começasse pela fixação de políticas públicas para a defesa social.

Sobre o autor
Amauri Meireles

Coronel Veterano da PMMG Foi Comandante da Região Metropolitana de BH

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEIRELES, Amauri. Poder e força de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5437, 21 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66287. Acesso em: 2 nov. 2024.

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