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A continuidade dos serviços públicos, a supremacia do interesse público e a greve dos servidores públicos:

Um paralelo entre o direito do trabalhador, a prestação do serviço público e a sua natureza pública

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Agenda 20/07/2018 às 12:10

3 DA POSSIBILIDADE DO EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE PELOS SERVIDORES PÚBLICOS NO CONFRONTO COM O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DOS SERVIÇOS PÚBLICOS E A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

Considerando a natureza pública do serviço prestado pelo servidor público, uma das teses a desfavor ao exercício do direito de greve por estes trabalhadores é sobre o risco que a paralisação cause prejuízos à sociedade, assim como o conflito de interesses e de leis, pois, de um lado, tem-se o direito de greve e do outro, a supremacia do interesse público sobre o privado e a continuidade dos serviços públicos.

A CRFB de 1988 além de prever direito de greve já existente na Constituição de 1946, trouxe novas disposições e abrangeu o tema de forma mais completa, sem se esquecer dos servidores públicos, apesar da omissão legislativa quanto ao exercício de greve dos mesmos. A Constituição de 1988 ultrapassou barreiras e previu ainda o direito à sindicalização, antes somente existente para os obreiros da iniciativa privada. Ao mesmo tempo em que se criou uma maior efetivação do direito de greve aos servidores públicos, o legislador provocou um verdadeiro impasse que circunda entre a dignidade dos cidadãos versus a dignidade do trabalhador da área pública.

Vigorou no Brasil a Lei nº 4.330 de 1 de junho de 1964 que regulava o direito de greve na forma do artigo 158 da CRFB de 1988, que previa em seu artigo 4º a proibição de exercício da greve, qual seja:

A greve não pode ser exercida pelos funcionários e servidores da União, Estados, Territórios, Municípios e autarquias, salvo se se tratar de serviço industrial e o pessoal não receber remuneração fixada por lei ou estiver amparado pela legislação do trabalho (BRASIL, 1964)

Ainda neste âmbito de proibição do movimento paredista por servidores públicos, independente da esfera à qual pertence, o artigo 37 da Lei nº 6.620, de 17 de dezembro de 1978, a Lei de Segurança Nacional: 

Cessarem funcionários públicos, coletivamente, no todo, ou em parte, os serviços a seu cargo.

Pena: detenção, de 8 meses a 1 ano.

Parágrafo único - Incorrerá nas mesmas penas o funcionário público que, direta ou indiretamente, se solidarizar com os atos de cessação ou paralisação do serviço público ou que contribua para a não execução ou retardamento do mesmo (BRASIL, 1978)

Na contramão da tipificação da greve como um delito, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 mudou este panorama, contemplando o direito de greve aos servidores públicos, independente da esfera à qual se filie: municipal, estadual ou federal, e indo além da previsão existente na Constituição de 1946.

A omissão legislativa existente quanto ao exercício de greve fez com que muitos sindicatos de servidores públicos das mais diferentes espécies ingressassem com ações perante o Poder Judiciário para que fosse reconhecido este direito e para que não caracterizasse abusividade do movimento paredista através do Mandado de Injunção, conforme artigo 5º, inciso LXXI:

[…] conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (BRASIL, 1988).

Dentre os mandados de injunção impetrados, um é o que ganha destaque na busca pelo direito de greve dos servidores públicos: MI nº 670/ES julgado em 2007 pelo STF e considerado pioneiro na luta pela aplicabilidade da Lei 7783/1989 aos trabalhadores da iniciativa pública. Este remédio constitucional foi impetrado pelo Sindicato da Polícia Civil do Espírito Santo- SINDPOL- e que resultou na aplicabilidade direta da Lei 7783/1989:

MANDADO DE INJUNÇÃO. GARANTIA FUNDAMENTAL (CF, ART. 5º, INCISO LXXI). DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS (CF, ART. 37, INCISO VII). EVOLUÇÃO DO TEMA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). DEFINIÇÃO DOS PARÂMETROS DE COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL PARA APRECIAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL E DA JUSTIÇA ESTADUAL ATÉ A EDIÇÃO DA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA PERTINENTE, NOS TERMOS DO ART. 37, VII, DA CF. EM OBSERVÂNCIA AOS DITAMES DA SEGURANÇA JURÍDICA E À EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL NA INTERPRETAÇÃO DA OMISSÃO LEGISLATIVA SOBRE O DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS, FIXAÇÃO DO PRAZO DE 60 (SESSENTA) DIAS PARA QUE O CONGRESSO NACIONAL LEGISLE SOBRE A MATÉRIA. MANDADO DE INJUNÇÃO DEFERIDO PARA DETERMINAR A APLICAÇÃO DAS LEIS Nos 7.701/1988 E 7.783/1989. (MI 670/ES, Relator: MAURÍCIO CORRÊA, Data de Julgamento: 25/10/2007, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 31/10/2008) – sem grifo no original (BRASIL, 2008a). 

Outro caso em que a aplicabilidade da Lei n 7783/89 efetivou-se foi no MI nº 712/PA com o voto de autoria do relator Ministro Eros Grau no ano de 2008: 

MANDADO DE INJUNÇÃO. ART. 5º, LXXI DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. CONCESSÃO DE EFETIVIDADE À NORMA VEICULADA PELO ARTIGO 37, INCISO VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. LEGITIMIDADE ATIVA DE ENTIDADE SINDICAL. GREVE DOS TRABALHADORES EM GERAL [ART. 9º DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL]. APLICAÇÃO DA LEI FEDERAL N. 7.783/89 À GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO ATÉ QUE SOBREVENHA LEI REGULAMENTADORA. PARÂMETROS CONCERNENTES AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE PELOS SERVIDORES PÚBLICOS DEFINIDOS POR ESTA CORTE. CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO. GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO. ALTERAÇÃO DE ENTENDIMENTO ANTERIOR QUANTO À

SUBSTÂNCIA DO MANDADO DE INJUNÇÃO. PREVALÊNCIA DO INTERESSE SOCIAL. INSUBSSISTÊNCIA DO ARGUMENTO SEGUNDO O QUAL DAR-SE-IA OFENSA À INDEPENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS PODERES [ART. 2O DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL] E À SEPARAÇÃO DOS PODERES [art. 60, § 4o, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL]. INCUMBE AO PODER JUDICIÁRIO PRODUZIR A NORMA SUFICIENTE PARA TORNAR VIÁVEL O EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS, CONSAGRADO NO ARTIGO 37, VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. [...] 2. A Constituição do Brasil reconhece expressamente possam os servidores públicos civis exercer o direito de greve --- artigo 37, inciso VII. A Lei n. 7.783/89 dispõe sobre o exercício do direito de greve dos trabalhadores em geral, afirmado pelo artigo 9º da Constituição do Brasil. Ato normativo de início inaplicável aos servidores públicos civis. 3. O preceito veiculado pelo artigo 37, inciso VII, da CB/88 exige a edição de ato normativo que integre sua eficácia. Reclama-se, para fins de plena incidência do preceito, atuação legislativa que dê concreção ao comando positivado no texto da Constituição. [...] 5. Diante de mora legislativa, cumpre ao Supremo Tribunal Federal decidir no sentido de suprir omissão dessa ordem. Esta Corte não se presta, quando se trate da apreciação de mandados de injunção, a emitir decisões desnutridas de eficácia. 6. A greve, poder de fato, é a arma mais eficaz de que dispõem os trabalhadores visando à conquista de melhores condições de vida. Sua auto- aplicabilidade é inquestionável; trata-se de direito fundamental de caráter instrumental. [...] 9. A norma veiculada pelo artigo 37, VII, da Constituição do Brasil reclama regulamentação, a fim de que seja adequadamente assegurada a coesão social. 10. A regulamentação do exercício do direito de greve pelos servidores públicos há de ser peculiar, mesmo porque "serviços ou atividades essenciais" e "necessidades inadiáveis da coletividade" não se superpõem a "serviços públicos"; e vice-versa. 11. Daí porque não deve ser aplicado ao exercício do direito de greve no âmbito da Administração tão-somente o disposto na Lei n. 7.783/89. A esta Corte impõe-se traçar os parâmetros atinentes a esse exercício. [...] 12. O que deve ser regulado, na hipótese dos autos, é a coerência entre o exercício do direito de greve pelo servidor público e as condições necessárias à coesão e interdependência social, que a prestação continuada dos serviços públicos assegura. 13. O argumento de que a Corte estaria então a legislar o que se afiguraria inconcebível, por ferir a independência e harmonia entre os poderes [art. 2o da Constituição do Brasil]e a separação dos poderes [art. 60, § 4o, III] é insubsistente. 14. O Poder Judiciário está vinculado pelo dever-poder de, no mandado de injunção, formular supletivamente a norma regulamentadora de que carece o ordenamento jurídico. 15. No mandado de injunção o Poder Judiciário não define norma de decisão, mas enuncia o texto normativo que faltava para, no caso, tornar viável o exercício do direito de greve dos servidores públicos. 16. Mandado de injunção julgado procedente, para remover o obstáculo decorrente da omissão legislativa e, supletivamente, tornar viável o exercício do direito consagrado no artigo 37, VII, da Constituição do Brasil. (MI 712/PA, Relator: EROS GRAU, Data de Julgamento: 25.10.2007, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 31.10.2008) – sem grifo no original. (BRASIL, 2008b).  

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As decisões acima expostas aplicam aos servidores públicos civis a Lei nº 7783/89 no que lhe couber quanto ao exercício do direito de greve, consagrando a aplicabilidade por analogia da norma, eis que, como já mencionado, esta Lei nasceu para atender aos trabalhadores da iniciativa privada.

Questão já trazida é a do princípio da continuidade dos serviços públicos. O serviço público, considerando a sua natureza pública e a de atender, precipuamente às necessidades inadiáveis da sociedade, via de regra não pode ser paralisado, eis que geraria um verdadeiro caos nos direitos dos cidadãos e instauraria uma enorme desordem em nossa sociedade.

Aqui busca-se a satisfação do interesse público, ou seja, demonstra que a finalidade do Estado deve se aliar à necessidade e comodidade da população, garantindo assim à sociedade o fornecimento de um serviço adequado e de suas vantagens prestacionais.

A continuidade dos serviços públicos é um axioma que determina características essenciais a estas espécies de serviços e, neste sentido, Araújo (2010) entende que a não interrupção, disponibilidade dos serviços quando acionados, delegação de competências, substituição funcional e a aplicabilidade às concessões e permissões preenchem este rol de caracteres.

A continuidade não deve somente manter os serviços de forma contínua, é princípio que vai além e que, na visão de José Cretella Júnior: 

[…] o cuidado que a Administração demonstra para assegurar a prestação contínua e regular dos serviços públicos pode ser aferido na criação de institutos como os da suplência, da delegação e da substituição, ou na punição dos agentes que concorrem para a interrupção ilegítima dos serviços (CRETELLA JR, 1976, p. 37).

Apesar desse importante princípio vedar a interrupção dos serviços públicos, ele não é absoluto, comportando determinadas exceções, quais sejam: o inadimplemento do usuário na hipótese de serviço público singular remunerado por tarifa; a interrupção dos serviços em hipóteses de necessidade de reparos e obras; e o direito de greve dos servidores públicos, tema deste trabalho.

Em relação à greve dos servidores públicos enquanto hipótese de restrição ao princípio da continuidade dos serviços públicos, Araújo analisa que:

[…] o direito de greve nos serviços públicos sempre foi vedado com base no princípio da continuidade dos serviços públicos. Essa vedação era absoluta, mas a atual Constituição Federal a abrandou, admitindo tal tipo de greve nas condições a serem definidas em lei complementar, que, até o momento, não foi promulgada (ARAÚJO, 2010, p. 87).

No mesmo sentido acima e em relação ao status absoluto deste axioma, Moacyr Lobo da Costa pondera que:

[…] quanto ao direito de greve dos servidores públicos, tal direito vinha sendo, como tal fundamento, expressamente vedado pelo ordenamento constitucional (art. 157, § 7º da CF de 1967; art. 162, da EC de 1969), mas o texto vigente o admitiu, nas condições a serem definidas em lei complementar, consideradas as atividades essenciais e o atendimento às necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, §§1º e 2º; art. 37, VII, da CF). Esta lei ainda não existe, pois a Lei Federal n. 7783, de 28 de junho de 1989, apesar de definir como serviços essenciais quase que somente serviços públicos tradicionais (art. 10 e incisos), não é aplicável a servidores da Administração direta, indireta e fundacional (art. 16) (COSTA, 1997, p. 33).

A flexibilização do princípio da continuidade em prol da greve dos servidores públicos certamente caminha para um conflito de interesses, pois, se o serviço possui natureza pública e atende às necessidades inadiáveis de toda uma coletividade, razão se faz para pensar que o movimento grevista não é passível de conciliação com as necessidades sociais, entendimento que ganha respaldo de Araújo (2010).

Desta forma, no que tange ao princípio da continuidade dos serviços públicos, verifica-se que, frente a amplitude concedida pela CRFB de 1988 ao direito de greve dos trabalhadores do setor público, não há a prima facie qualquer ilegalidade ou confronto de normas, tendo em vista que a suspensão do serviço público por seus agentes é hipótese de exceção à continuidade destes serviços.

Ainda que seja aceita a greve dos servidores como forma de exceção ao princípio da continuidade dos serviços públicos, o conflito de interesses entre trabalhador e sociedade permanece e não ganhou uma solução por completo, pois permanece a lacuna legislativa e aplicabilidade analógica da Lei nº 7.783/89. Neste ponto entre a luta de forças e de direitos surge o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.

O Estado é o titular do interesse público, pois nele é vista a síntese de coletividade e sociedade, podendo ele, enquanto autoridade, dispor desse interesse e somente em hipóteses previstas legalmente, em extrema observância ao princípio da legalidade, ou seja, os agentes públicos no desempenho de suas funções são vedados de dispor de qualquer interesse público ou ainda de fazer prevalecer a sua vontade, pois, como entende Araújo (2010), os agentes públicos detém tão somente a guarda do interesse público e não a sua titularidade.

Assim, observa-se que o interesse público é indisponível e, como consequência disso, Araújo (2010) assim se posiciona:

Os poderes atribuídos ao administrador, com efeito, são estes: guarda, gerenciamento, fiscalização etc., em oposição aos poderes característicos de proprietário, como alienação e disposição (ARAÚJO, 2010).

O fato do interesse público ser indisponível eleva tal interesse à condição de inalienável, impenhorável, intransigível, intransferível a particulares e, na visão de Celso Antônio Bandeira de Mello (2007), este conjunto representa a sua indisponibilidade.

Diante do paradigma entre o direito fundamental de greve dos servidores públicos e da indisponibilidade do interesse público, surge um conflito para ser dirimido acerca de que medida a greve dos servidores públicos pode ser realizada enquanto o interesse público é supremo ao privado e deve prevalecer.

A supremacia do interesse público sobre o privado representa um princípio balizador das atividades dos servidores públicos e do direito administrativo e na visão de Celso Antônio Bandeira de Mello

Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o particular, como condição até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último. É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados (MELLO, 2007, p. 60).

Assim como Bandeira de Mello, Di Pietro (2014) entende que o interesse público, por sua característica de indisponível é supremo e que o interesse dos particulares é reflexo:

Se a lei dá à Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual (DI PIETRO, 2014, p. 70).

Considerando que a atribuição estatal está pautada no atendimento das necessidades da sociedade, não se admite que ele, através de seus agentes e entidades, atue na contramão ou sem o respaldo de interesse público existente de fato.

O princípio da supremacia do interesse público, na visão de Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1989), deve ser chamado de princípio da finalidade pública, considerando ser o atendimento à coletividade a finalidade e raiz da existência da Administração Pública e da atuação do Administrador, sendo instrumento balizador de extrema importância no Direito Administrativo.

De acordo com Daniel Sarmento (2004), esta sobreposição de interesse público sobre o particular com a ideia de anulação do direito privado é decorrente principalmente de duas correntes filosóficas que possuem traços em comum: organicismo e o utilitarismo, enquanto a ideia de sobreposição do interesse privado sobre o público, de acordo com Norberto Bobbio (2000), deriva do individualismo.

O organicismo funda-se na concepção de que cada pessoa é integrante de uma sociedade, seria um fragmento dessa sociedade e que o bem de cada pessoa apenas estaria satisfeito se o bem comum for alcançado, e para isso, segundo Gustavo Binenbojm (2008), o interesse do grupo social goza de supremacia sobre o interesse de particulares. Neste sentido, Georg Wilhelm Hegel (2003, p. 217) assume que “[…] os indivíduos têm no Estado o seu mais elevado ser”.

O organicismo proposto por Hegel (2003) foi a base teórica de diversos sistemas políticos existentes ao decorrer do século XX, inclusive o comunismo, onde a ideia da felicidade como um processo coletivo abriu as portas para a liberdade e fins de governos ditatoriais, colocando a figura do Estado e de sua Administração Pública como responsáveis diretos pela finalidade a ser atingida na vida dos cidadãos.

Por outro lado, tem-se a figura do Utilitarismo que, de maneira simples afirma que o ato ou procedimento moralmente correto é o que proporciona a felicidade da maior quantidade de pessoas, e não de todos como no organicismo. Aqui ainda como bem salienta Will Kymlicka (2006), o utilitarismo estaria intimamente ligado a moral humana, e esta moral seria desenhada a partir da maximização da felicidade dos seres humanos.

Uma das características utilitaristas que ganha destaque é o denominado consequencialismo, que requer a análise quanto à importância da atitude a ser tomada, e, se ela causará a maximização de felicidade, impedindo de pronto que as vedações morais sem uma explicação sólida sejam utilizadas, havendo uma razão e um pensamento para os malefícios e para os benefícios das condutas adotadas.

Nesta esteira de consequencialismo, pode-se citar que a greve dos servidores públicos apesar de estar prevista constitucionalmente e corresponder ao exercício de um direito considerado fundamental aos trabalhadores, seja da iniciativa privada, seja do setor público, seria ruim por ferir a prestação de atendimento básico de necessidades, por vezes vitais, do povo, não contendo lados positivos para a população.

O filósofo Kymlicka descreve que o utilitarismo possui dois atrativos que o diferencia de outras correntes filosóficas:

[…] são o fato que ele se amolda à nossa intuição de que o bem-estar humano tem importância e à nossa intuição de que as regras morais devem ser testadas no que diz respeito a suas conseqüências para o bem-estar humano. E, se aceitamos esses dois pontos, então, o utilitarismo parece uma decorrência quase que inevitável. Se o bem-estar humano é o bem de que se ocupa a moralidade, então, com certeza, o melhor ato em termos morais é aquele que maximiza o bem-estar humano, dando igual peso ao bem-estar de cada pessoa. Os que crêem que o utilitarismo tem de ser verdadeiro estão convencidos de que qualquer coisa que negue qualquer uma dessas duas intuições deve ser falsa (KYMLICKA, 2006, p. 14).

A felicidade extremada alcançado a maior quantidade de pessoas possível é chamada pelos utilitaristas de utilidade. O atendimento da utilidade de todas as pessoas é impossível, logo, a visão consequencialista de promover a utilidade das pessoas, e quando promovida, estaria sendo satisfeita todas as preferências de todas as pessoas é equivocada. Isto se dá pela ausência de recursos para que todos sejam atingidos.

Da impossibilidade de se atender a todos é que se situa a supremacia do interesse público sobre o privado, ou seja, o interesse da população em manter o seu serviço público funcionando prevalece sobre a greve dos servidores públicos, considerando-se que os destinatários dos serviços estão em maior número do que os responsáveis por prestarem o serviço, afastando de vez a ideia individualista pregada nos movimentos grevistas.

Neste sentido Kymlicka afirma que

[…] as preferências de algumas pessoas não estarão satisfeitas se estiverem em conflito com o que maximiza a utilidade de maneira geral. Isso é infeliz. Mas, como os vencedores necessariamente ultrapassam o número de perdedores, não há nenhuma razão pela qual as preferências dos perdedores devam ter precedência sobre as preferências mais numerosas (ou mais intensas ) dos vencedores.

[…] portanto, devemos proporcionar conseqüências que satisfaçam o maior número de preferências entre as pessoas da sociedade (KYMLICKA, 2006, p. 25)

Desta forma, pode-se concluir que o interesse público sobre o privado é preceito fundamental na prestação do serviço público e no mundo do dever-ser, vez que, na prática, o que se vê é a concessão do exercício do direito de greve por uma legislação que não lhe é própria, bem como trazendo prejuízos à coletividade em prol de interesses particulares, considerando ser a greve um obstáculo aos direitos dos cidadãos à efetiva prestação dos serviços pelo qual pagam através do recolhimento de tributos.

Sobre o autor
Pedro Carvalho Goularte

Advogado Especialista na área de Fazenda Pública em Juízo pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Sá de Vitória. Pós graduando em Direito Material e Processual do Trabalho pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante. Coordenador das cadeiras de Direito do Trabalho e Direito do Consumidor da C&G Advocacia e Consultoria Jurídica. Membro da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB/ES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOULARTE, Pedro Carvalho. A continuidade dos serviços públicos, a supremacia do interesse público e a greve dos servidores públicos:: Um paralelo entre o direito do trabalhador, a prestação do serviço público e a sua natureza pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5497, 20 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67596. Acesso em: 23 dez. 2024.

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