5. Não existe um sistema autocorretivo nos tribunais
OUTROS PERSONAGENS se movem nesse palco; nele há muitos figurantes tomando o lugar dos atores principais, ao mesmo tempo em que o roteiro não comporta tantos incidentes e o tumulto em cena, de modo que seja possível permitir que a comédia possa chegar a um fim.
Em termos de encenação, talvez coubesse ao decano Celso de Mello o papel do corifeu, cuja presença nos vem do teatro grego, mas ele teria de estabelecer uma palavra prevalente, teria que anunciar a definição de um destino.
O decano, porém, não é um anunciador; voltou-se para a interioridade do amor à palavra, que cultua com animada ênfase, ainda que o seu significado seja o curial.
Seus votos são recheados de negritos, sublinhados e itálicos.
Parece que o som, os fonemas, constituem para ele a grande paródia da cena verdadeira; parece bem que a ‘enfeitam’.
É como se a indisciplina dos atores fizesse com que o diretor abandonasse a sua mise en scene, ou o chef d’orchestre perdesse o andamento ou o controle da partitura (ou seja, das leis), e tudo fosse entregue ao improviso....
Ao lado do decano, o ministro Luiz Fux tem suas qualidades de julgador reconhecidas há muitos anos, por ser juiz de carreira, mas, como seu colega mais velho, perde-se no acessório, e esse acessório passa a ser o mais marcante em sua atuação.
Por exemplo, seu empenho na nomeação da filha (tão jovem como a filha de Marco Aurélio “Protagonista” de Mello, e que integrava o mesmo escritório de advocacia de Sérgio Bermudes, onde também trabalha a mulher de Gilmar Mendes) como desembargadora do quinto no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deixou-o devedor de favores à magistratura carioca. Talvez por isso, sendo relator do caso, não concluiu por quase cinco anos o exame dos penduricalhos pagos com base em leis estaduais e resoluções do próprio TJ-RJ à magistratura daquele Estado, embora inquinados de inconstitucionalidade em ação movida pela Procuradoria estadual.
Luiz Fux também sustentou uma liminar que estabelece o pagamento de auxílio-moradia, por ele dada e que vige há mais de quatro anos. Por ela, ele concedeu aos juízes ativos o mesmo que ele próprio recebia a igual título. Era então o único ministro do Supremo que auferia auxílio-moradia. Hoje não há tal pagamento no STF.
6. Por que o texto e o discurso jurídico não portam mais o conhecimento do Direito que é aplicado
É DIANTE DISSO, dessa realidade palpável e conhecida de todos, que se produzem o texto e o discurso jurídico.
Daí a sua decadência.
Não há como produzir uma teoria do processo, por exemplo, ou sobre a definição de culpa, ou qualquer outro sistema justificador do ordenamento jurídico tanto quanto um rol aceitável de requisitos para a fundamentação de um julgado.
O Supremo Tribunal Federal perverteu Heráclito (que seu contemporâneo Sócrates já considerava obscuro): ali não se atravessa o mesmo rio (do Direito) duas vezes...
O próprio professor Conrado Hübner Mendes, que continua a produzir textos excelentes, publicou (Época, 26.07.2018) um artigo com o título “Reformar ou ser reformado: o dilema do STF”, tendo como subtítulo “Há tribunal constitucional que incomoda pelo que faz bem. O STF incomoda mais pelo que faz mal”.
Embora, em linhas gerais ele reafirme a crítica que vem desenvolvendo, mostrando que a vontade de se afirmar dos ministros do Supremo, como personalidades de um direito plenipotenciário, vem impedindo o tribunal de se reformar, o trecho que passa a ser analisado aqui revela um somatório de erros, prova cabal de que é impossível colocar uma ordem sistemática na cena contraditória e repleta de malícias que ali se desenha.
Diz o texto de Hübner:
“O STF precisa de uma boa reforma, não de qualquer reforma.
Intuição, palpite e afeto podem ser gatilhos de mudança, mas não são nortes. O antipetismo, sob condução de Eduardo Cunha, aumentou em 2015 a aposentadoria de ministros para 75 anos de idade por meio da “PEC da Bengala”. (*) Fabricou pânico diante de uma “Corte de ministros do PT”. Não apontou evidência empírica de que ministros se curvam ao partido. (**) O petismo, por sua vez, em reação ao julgamento do mensalão, buscou combater o “ativismo judicial” — que mal conseguiu conceituar ou demonstrar — por meio da PEC 33, de 2011. Propunha, entre outras coisas, um recurso plebiscitário contra certas decisões do STF. (***)
A maioria dos Projetos de Lei sobre o STF que tramitam no Congresso trata do método de nomeação de ministros. Variável importante, mas que toca na superfície do colapso arquitetônico do tribunal. A Câmara também aprovou, há poucos dias, Projeto de Lei que proíbe liminares monocráticas no controle de constitucionalidade. Não explicou o que essa lei acrescentaria à Lei 9882/99, que já proíbe tais liminares. (****) Se o STF ignora essa lei, por que seguiria a nova? Não se reforma cultura decisória numa canetada legislativa.”
E ainda:
“P.S.: sob a regência de Luiz Fux e Cármen Lúcia, o pagamento ilegal de auxílio-moradia universal a juízes e promotores vai completar quatro anos. Ao que parece, o caso será procrastinado até que um acordo atenda à magistocracia. Bilhões de reais depois, poderá ser arquivado. Outra vitória da baixa política judicial.” (*****)
EIS OS ERROS de Hübner marcados pelos asteriscos:
(1) – (*) O antipetismo conduzido por Eduardo Cunha estabeleceu a PEC da bengala em 2015
Errado: A PEC conhecida com esse nome recebeu o nº. 457 e foi de autoria do senador Pedro Simon, tendo sido apresentada em 2005.
Naquela época, o Governo Lula havia indicado apenas um ministro para o STF, Cézar Pelluso (2003). Só veio a indicar o segundo (Menezes Direito) em 2007.
A aprovação da PEC deu-se no âmbito do Congresso, e não somente na Câmara de Deputados. Logo, não poderia ser conduzida por Eduardo Campos, então presidente da câmara baixa.
Além disso, a PEC da bengala previa lei complementar para estender o novo limite de idade a outras categorias, uma vez que não se destinava somente à magistratura. Assim surgiu a Lei Complementar 125/2015, com projeto de autoria do senador José Serra, sendo vetado integralmente por Dilma Roussef. O veto foi derrubado pela expressiva votação de 64x2 no Senado e 350x15 na Câmara.
(2) – (**) O antipetismo fabricou o pânico de ministros indicados pelo PT e não demonstrou evidência empírica de vinculação deles ao partido
Errado: A vinculação dos votos de Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski têm histórico de “evidência empírica” gritante com os interesses de dirigentes do PT, notável principalmente quanto aos principais dirigentes, José Dirceu e Lula.
Negar isso, diante do verdadeiro rosário de episódios reveladores desse espírito (chamemos assim) é o mesmo que pretender apagar uma estrela com o dedo.
Também os ministros Teori Zavaski e Roberto Barroso ingressaram quando houve o julgamento dos embargos infingentes ao acórdão condenatório do “Mensalão”. Compuseram nova maioria exatamente para excluir o crime de formação de quadrilha, quando sabido que os crimes praticados em ampla rede de desvio dos recursos públicos, subtraídos de superfaturamento, para subornar parlamentares, jamais poderia ser praticado sem que houvesse uma organização criminosa compartimentada.
Esses ministros se comportaram como pagadores de promessa de sua própria indicação.
Depois mudaram, quando a Operação Lava-Jato desabou sobre suas consciências e trabalhar partidariamente contra ela seria cavar a própria tumba como juiz.
(3) – (***) O petismo buscou combater o ativismo judicial pela PEC 33/2011, que submetia decisões do Supremo a plebiscito.
Errado: é uma má metodologia dividir correntes interpretativas em dois lados, só para facilitar a conclusão de que ambos têm seus vícios.
Na verdade, a PEC 33-A/2011 teve a autoria do deputado piauiense, que é médico, Nazareno Fonteles, conhecido por apresentar projetos que se enquadram no folclore político, como o que estabelecia o “consumo fraterno”, segundo o qual as famílias não poderiam ultrapassar um padrão médio de gastos, fixado pelo IBGE, de modo que o excesso de suas rendas seria destinado aos programas sociais.
É o mesmo que pretender os efeitos de uma revolução sem ter o trabalho de fazê-la.
O projeto da PEC 33-A foi logo arquivado, ainda no âmbito das Comissões, depois de sofrer questionamentos no STF.
Não se pode subentender que ele foi uma tática consistente para combater o ativismo judicial, embora o cite em seu texto.
Mesmo porque o que se mostra sob o nome de ‘ativismo’ no Supremo, como percebeu o próprio professor Hübner, é um voluntarismo dispersivo e destruidor.
Ou seja: no nome não reveste o fato.
(4) – (****) A Câmara aprovou projeto que proíbe liminares individuais que reconheçam inconstitucionalidade, o que é inócuo, pois a Lei 9882/99 já veda essa prática e não é cumprida
Errado: Eis o que diz a mencionada lei:
“Art. 5o O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de descumprimento de preceito fundamental.
§ 1o Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno.”
Como se vê, o texto legal vigente permite que a liminar seja concedida apenas pelo relator em três amplas hipóteses, e geralmente elas incidem na maioria dos casos em que é pedida.
Assim sendo, não se pode dizer, genericamente, que a lei vigente é descumprida; nem se preconizar que o projeto agora aprovado na Câmara será inócuo, quando na verdade ele inova e evita o protagonismo temerário e oportunista.
(5) – (*****) A baixa política judicial sustenta o pagamento ilegal do auxílio moradia e favorece à magistocracia
Errado: Tanto a liminar do ministro Luiz Fux concedendo aos juízes em atividade o auxílio-moradia incondicionado, como sua demora no voto de vista sobre os ‘penduricalhos’ concedidos à magistratura do Rio de Janeiro, com base em leis estaduais, resoluções do Tribunal de Justiça ou interpretações extensivas, fazem parte de um elenco de flagrantes ilegalidades dentre as muitas que os ministros do Supremo cometem desde que arvoraram-se em atores de televisão, ou celebridades que comparecem a programas gravados em estúdios ou ao vivo, ou ainda tornaram-se viajantes intercontinentais assíduos que vão a casamentos de amigos na ilha de Capri, ou a festas da realeza britânica ou – sem que isso seja o fim de um extenso rol – frequentam tribunas de congressos ou universidades onde destampam toda sorte de conceitos esdrúxulos, como o ministro Roberto Barroso, contumaz nessa prática, que sustentou no Reino Unido que o Brasil tem mais ações trabalhistas do que todas as nações do mundo somadas.
Isto não é, de nenhum modo, política judicial, nem mesmo baixa política judicial visando a implantar uma magistocracia. Primeiro, porque não há sinal do horizonte de qualquer programação que justifique a existência de uma política, desde que se tenha por esta a organização prática de acesso e do exercício do poder. Segundo, porque só haveria uma magistocracia caso a magistratura estivesse se entendendo, adotando uma visão de mundo uniforme, reivindicando uma identidade comum do seu papel. Ora, o que se vê é o contrário: uma magistratura convulsionada, com seu lado que mente e outro que o desmente, em que a procura da verdade não será melhor nem mesmo com a lanterna de Diógenes.
É PRECISO que esses erros sejam apontados ainda que incidentes nos melhores textos analíticos, entre eles o do professor Hübner, para que não se cristalize uma concepção de que existem ondas insondáveis ou impossíveis de controlar, que trazem a dissolução opressiva que não nos é dado deter.
Saber se o Supremo se reformará ou será reformado é hoje apenas uma especulação.
Quando Teori Zavaski e Roberto Barroso compuseram uma nova maioria no STF, em julgamento de embargos infringentes, com a ajuda (hoje, quem diria?) de Cármen Lúcia, para começarem o desmonte das condenações do ‘Mensalão’, Joaquim Barbosa, relator do caso e então presidente da Corte, fez uma declaração seca: “Alerto o país que este é só o primeiro passo”. De lá para cá muitos outros foram dados.
A desconstrução do Supremo é uma operação cruenta: sangra o Direito, sangra o país, sangram outras instituições que só podem operar com parâmetros estáveis.
Não se pode mais afirmar se um torturador está absolvido ad aeternitatem, embora vivo, identificado, aposentado e recebendo de cofres públicos. O julgamento do STF a respeito da anistia é simplesmente inconvincente, além de falho, pois não examinou todos os aspectos da questão e manteve uma espécie de feitiço interpretativo de que a lei editada no Governo Figueiredo foi “negociada”, sendo então intocável (ver, a propósito, “Caso Vladimir Herzog, o Estado brasileiro fora da lei” e “Ainda o Caso Herzog”, de Márcio Sotelo Felippe, in ConJur de 18.06.2018 e de 26.07.2018).
O Supremo é um case study de quem decaiu de si mesmo e se decompôs, mas que sobrevive – com pompa - na decomposição.