Ao pagar a indenização de seguro ao segurado (beneficiário), o segurador adquire o direito de buscar o ressarcimento em regresso contra o causador do dano e do prejuízo.
E isso se dá por força do art. 786 do Código Civil, cujo “caput” diz: “Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano”.
A redação do referido artigo é clara ao dispor que o pagamento da indenização transfere ao segurador direitos e ações, mas não eventuais ônus.
E isso é muito importante porque a sub-rogação e o direito ao ressarcimento são figuras legais consagradas no Direito Civil e no Direito do Seguro.
Antes mesmo da entrada em vigor do atual Código Civil, o sistema legal brasileiro já dispunha exatamente a mesma coisa, a ponto de que o assunto fosse alvo de Enunciado de Súmula do Supremo Tribunal Federal.
Fala-se aqui da Súmula nº 188, cuja dicção é a seguinte: “O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro”.
Não é de hoje que alguns tentam esvaziar o direito de regresso do segurador, e o fazem pelos mais diversos motivos, todos absolutamente inconsistentes.
Nada pode relativizar a força do ressarcimento em regresso derivado da sub-rogação.
Nem poderia ser diferente, até porque o causador do dano e prejuízo não pode ser beneficiado por conta da previdência do segurado.
Aliás, quanto a isso, muito aproveita dizer que o segurador, ao buscar o ressarcimento em regresso contra o causador do dano, não defende apenas seus legítimos direitos e interesses, mas os de todo o colégio de segurados.
Essa defesa de direitos e interesses de todos os segurados, braço social explícito do negócio de seguro, reside no mutualismo, “um dos princípios fundamentais que constitui a base de toda operação de seguro. A reunião de um grande número de expostos aos mesmos riscos possibilita estabelecer o equilíbrio aproximado entre as prestações do segurado (prêmio) e as contraprestações do segurador (responsabilidades)”. (Dicionário de Seguros, Funenseg, Rio de Janeiro: 2000, p. 78)
Por isso, observados o conteúdo da Súmula nº 188 do Supremo Tribunal Federal e o art. 944 do Código Civil, que trata do princípio da reparação civil integral, afirma-se com veemente segurança que absolutamente nada pode prejudicar o pleno exercício do ressarcimento em regresso. E assim sendo, emergem questões interessantes do casamento entre o Direito do Seguro e o Direito Marítimo.
Pois a maior parte dos litígios judiciais que envolvem matéria de Direito Marítimo é patrocinada por seguradores sub-rogados nos direitos e ações de seus segurados, embarcadores ou consignatários de cargas.
Os seguradores indenizam seus segurados por faltas ou avarias causadas pelos transportadores marítimos (armadores) e, consequentemente, buscam destes o devido ressarcimento.
O ressarcimento em regresso tem função social, até porque impacta no cálculo atuarial do seguro e reflete nas relações econômicas em geral, especialmente naquelas vinculadas ao comércio exterior e que se conectam com os transportes internacionais marítimos de cargas.
Além disso, o ressarcimento em regresso pelo segurador se ajusta perfeitamente ao caráter educativo da responsabilidade civil, pois – ao menos em tese – faz com que o transportador marítimo, autor de um ato ilícito civil, ajuste procedimentos para uma prestação de serviços mais eficaz e qualificada (teoria do desestímulo).
Mesmo assim, os transportadores marítimos tentam, quase sempre sem êxito, desprestigiar a amplitude do conceito de ressarcimento em regresso.
Todo transportador de carga é devedor de obrigação contratual de resultado, cujo descumprimento implica a presunção legal de responsabilidade.
Isso significa que o transportador tem de entregar a carga segurada na mesma condição recebida para transporte, sendo presumida sua responsabilidade em caso de falta ou avaria.
Dessa presunção legal de responsabilidade, o transportador somente se exonerará caso, mediante inversão de ônus, prove a ocorrência de alguma causa legal excludente de responsabilidade.
No entanto, os avanços das tecnologias de informação, da engenharia naval, dos equipamentos de navegação, qualidade e segurança das embalagens tornam cada vez mais difícil um transportador demonstrar cabalmente a caracterização de força maior, caso fortuito ou vício de origem (de embalagem).
De fato, a cada dia a navegação se torna mais segura e os mecanismos de navegação, mais precisos, de tal forma que as faltas e avarias acabam sendo, em verdade, derivadas de incúria operacional e de desídia administrativa do transportador.
Não raro, ainda que informado pela presunção legal de responsabilidade por inexecução imotivada de obrigação de fim, no caso concreto, os transportadores agem com culpa em sentido estrito, inobservância do dever geral de cautela e da cláusula de incolumidade inerentes ao seu ramo.
E, por conta disso, transformam suas defesas em Juízo em gritos de desespero, amparados em teses inconsistentes e ancorados em um falso contratualismo.
Quando demandado em Juízo, o transportador marítimo (armador) costuma alegar, diretamente ou por instrução de seu clube de proteção e indenização, as cláusulas de foro estrangeiro e de limitação de responsabilidade presentes no conhecimento marítimo, instrumento que formaliza o contrato de transporte internacional de carga.
Ocorre que o conhecimento marítimo é um documento redigido unilateralmente pelo transportador, constituído por cláusulas impressas que são impostas ao embarcador e ao consignatário da carga.
O negócio jurídico de transporte de carga é informado por um contrato de adesão, cuja inteligência exige cuidados especiais, até porque o ordenamento jurídico brasileiro não aceita o dirigismo contratual e tem por inválidas e ineficazes, senão nulas de pleno Direito, as cláusulas abusivas.
E há muito tempo a jurisprudência se posiciona pela manifesta abusividade das cláusulas que dispõem sobre limitação de responsabilidade e eleição de foro.
O Direito brasileiro trabalha com o conceito de reparação civil ampla e integral. Logo, a cláusula adesiva e unilateral que impõe a limitação de responsabilidade do transportador marítimo é com ele incompatível, pouco importando o pagamento do chamado frete “ad valorem”.
Esse conceito é, em verdade, um princípio de Direito Civil (art. 944) e uma garantia fundamental, prevista no rol exemplificativo do art. 5º da Constituição Federal. Quem causa dano, tem de repará-lo integralmente, o que se diz até em homenagem à boa ordem moral e ao preceito de que a ninguém é dado causar dano a outrem.
Pela mesma razão, o foro estrangeiro imposto à parte aderente de um contrato de adesão não pode vingar, sob pena de grave violação à garantia constitucional de acesso à jurisdição brasileira, bem como às regras processuais de jurisdição e competência.
O art. 25 do Código de Processo Civil não se ajusta ao contrato internacional de transporte marítimo de carga, porque a cláusula que trata do foro estrangeiro não foi eleita pelas partes contratantes, mas imposta ao embarcador e ao consignatário da carga pelo transportador, emissor do instrumento contratual. O verbo utilizado no art. 24 é “eleger”, e a eleição de qualquer coisa pressupõe liberdade, manifestação não viciada de vontade. Dessa forma, se uma das partes não elegeu o foro estrangeiro, o art. 25 não se subsome ao contrato.
Qualquer pesquisa jurisprudencial, ainda que superficial, será o bastante para haurir muitas decisões, singulares e colegiadas, rotulando como abusivas e ineficazes as cláusulas de limitação de responsabilidade e de foro estrangeiro, porque impostas em contratos de adesão. Limitar a responsabilidade não é somente ofender o Direito e a Moral, mas premiar o causador do ato ilícito, o devedor inadimplente de obrigação de resultado.
Tais entendimentos são fortalecidos pela jurisprudência dominante, pela doutrina e por princípios fundamentais de Direito, constitucionais e supraconstitucionais, como os da proporcionalidade, equidade, isonomia e razoabilidade.
Mas se, porventura, alguém ainda insistir que as referidas cláusulas não são abusivas, nem típicas de dirigismo contratual, não sendo, portanto, ilegais, inválidas ou no mínimo ineficazes, ao menos há de se reconhecer que não são elas hábeis em relação ao seguradores sub-rogados.
Com efeito, uma coisa é a validade e a eficácia das cláusulas de limitação de responsabilidade e de eleição de foro em relação aos que figuram no contrato de transporte, diretamente ou por estipulação; outra, bem diferente, é a projeção de efeitos para o segurador sub-rogado.
Além de uma questão lógica, há expressa determinação legal em favor do segurador sub-rogado.
O § 2º do já comentado art. 786 determina ser “ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os atos a que se refere este artigo”.
Assim sendo, as cláusulas em debate – de se sublinhar, essencialmente abusivas – são absolutamente ineficazes em relação ao segurador sub-rogado.
A redação do referido parágrafo, aliás, deixa claro que, mesmo por um ato voluntário do segurado, não pode ele prejudicar de modo algum o direito de regresso do segurador, até por respeito ao contexto constitucional, ora lembrado por conta do enunciado de Súmula nº 188 do Supremo Tribunal Federal.
No contrato de transporte de carga a granel, existem situações especiais, extraordinárias, em que há alguma manifestação de vontade por parte dos segurados, donos de carga. Essa pequena voluntariedade esmorece, em parte, a natureza adesiva dos contratos maritimistas de transportes, mas em nada prejudica os seguradores, eis que parte estranha à relação contratual destacada.
O contrato de seguro de transporte guarda relação com o contrato de transporte marítimo (internacional) de carga, mas não se confunde com este. São contratos absolutamente distintos, com naturezas jurídicas diferenciadas.
Em respeito ao seu importante direito de regresso, o que pode ser eventualmente tido como eficaz pelo segurado, pode não o ser em relação ao segurador.
Relativamente aos temas limitação de responsabilidade e foro estrangeiro, tudo isso que foi exposto cabe simetricamente – e até com mais razão – à chamada cláusula de compromisso arbitral.
E cabe porque os contratos de adesão somente podem conter cláusulas compromissórias de arbitragem se a Lei de Arbitragem brasileira for devidamente observada, sob pena de nulidade absoluta.
A Lei de Arbitragem é clara e taxativa ao dispor que, em contratos de adesão, o compromisso arbitral há de ser destacado em meio ao clausulado ou disposto em termo apartado do conteúdo contratual, sendo necessária em ambos os casos a assinatura de todos os interessados.
Nem poderia ser diferente, uma vez que a arbitragem somente produz efeitos jurídicos se voluntariamente acordada por todas as partes envolvidas em um dado negócio jurídico. A voluntariedade é condição sine qua non da arbitragem. Se uma das partes não concordar com o procedimento arbitral, ele jamais poderá ser levado a efeito.
Contudo, ainda que o segurado tenha concordado com a arbitragem, o segurador não poderá ser compelido a respeitar tal concordância, seja por força da Lei de Arbitragem, seja, mais ainda, por força do comando expresso do art. 786, §2º do Código Civil.
Imposição de arbitragem é algo inaceitável, ilegal, inconstitucional e absolutamente imoral, uma das mais graves violências aos direitos e garantias fundamentais, pois nenhuma câmara arbitral do mundo, por mais séria e respeitável que seja, terá a natural excelência e as presumidas imparcialidade, grandiosidade e imponência da Justiça.
Tanto assim é verdade, que no dia 20 de abril de 2017 o próprio CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima — divulgou a seguinte nota:
A relevância da cláusula compromissória arbitral
A cláusula compromissória é, em síntese, um acordo prévio entre as partes estipulando que, em caso de litígio, o mesmo será resolvido por meio da arbitragem. Muitos estudiosos da arbitragem afirmam que a cláusula compromissória é a pedra angular da arbitragem, possuindo um efeito positivo e um efeito negativo.
O efeito positivo seria a jurisdição para os árbitros (ou árbitro) decidirem (ou decidir) o litígio no caso concreto. Por outro lado, o efeito negativo seria a derrogação da jurisdição estatal. Nesse sentido, é de fundamental importância que a cláusula compromissória arbitral seja bem redigida. E o CBAM possui modelo de cláusula compromissória padrão (disponível em www.cbam.com.br) para facilitar as partes no momento que forem redigir um contrato.
“As partes obrigam-se a submeter qualquer divergência, conflito ou litígio decorrente do presente contrato, inclusive quanto à sua interpretação ou execução, a arbitragem a ser promovida pelo CENTRO BRASILEIRO DE ARBITRAGEM MARÍTIMA – CBAM, na forma do Regulamento do referido CBAM, que é aceito pelas partes que declaram conhecê-lo e concordar com os termos do mesmo”.
Qualquer dúvida em relação à cláusula compromissória não hesite em nos procurar!
Pelo teor da nota, entende-se que somente aqueles que concordaram expressamente com o procedimento arbitral, sem qualquer tipo de tergiversação, podem a ele ser submetidos. Dada a invulgar importância do assunto, vale a pena repetir este trecho da nota, autoexplicativo, e que dispensa maiores comentários: “O efeito positivo seria a jurisdição para os árbitros (ou árbitro) decidirem (ou decidir) o litígio no caso concreto. Por outro lado, o efeito negativo seria a derrogação da jurisdição estatal.
Nesse sentido, é de fundamental importância que a cláusula compromissória arbitral seja bem redigida. E o CBAM possui modelo de cláusula compromissória padrão (disponível em www.cbam.com.br) para facilitar as partes no momento que forem redigir um contrato”.
A arbitragem, diante disso, jamais poderá ser imposta ao segurador sub-rogado se ele não aquiesceu antes, expressa e formalmente, com sua primazia, já que, segundo palavras do Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima, o “efeito negativo seria a derrogação da jurisdição estatal”, de modo absolutamente violento e anticonstitucional.
Pois bem!
Diante disso tudo, e lembrando que o alvo de interesse é a parte do Direito Marítimo que toca o Direito do Seguro, tem-se por firme e valioso que nenhuma disposição contratual, adesiva ou não, poderá ferir, ainda que minimamente, o direito de regresso do segurador sub-rogado.
Um litígio fundado em tema de Direito Marítimo tem especial enquadramento jurídico quando uma das partes for segurador sub-rogado.
O caso passa a ser não mais tratado apenas sob a ótica das regras legais brasileiras, gerais e especiais, disciplinadoras da responsabilidade civil do transportador marítimo de carga, seja o contrato de transporte nacional ou internacional, mas também pelas que disciplinam elementos do Direito do Seguro, como a sub-rogação e o ressarcimento.
Pois, assim que um segurador se sub-roga em um direito, em uma ação, a ontologia do caso concreto assume outros contornos, outros valores, transcendendo a esfera do Direito Marítimo, menos importante, para outra muito maior e mais importante, a do Direito do Seguro; eis que um segurador sub-rogado, não é ocioso repetir, não defende apenas seus interesses próprios e devidos, mas os dos segurados todos, bem como os da sociedade em geral.
Por isso, errada qualquer interpretação jurídica que tenha por orientação transferir ônus possíveis, mas indevidos ao segurador, enfraquecendo seu direito de regresso. O litígio protagonizado por segurador sub-rogado tem outra forma de pensar o Direito, absolutamente distinta do original, não sendo admissível algo incompatível com tradicional exercício do ressarcimento.