1 INTRODUÇÃO
O historiador Henry Kelly, em “Church History”[1], admite dois equívocos geralmente cometidos pelos historiadores quando em se tratando do termo “inquisição”. O primeiro referir-se-ia a extensão abusiva atribuída à palavra (já com teor intimidador) para se referir a um falso sistema altamente organizado de processamento de heresias, com sede direta em Roma. O segundo, remete mais especificamente à fase do processo de mesmo nome, e a concepção distorcida tanto do real poder dos juízes, inquisidores e advogados (quando permitidos), quanto dos procedimentos operados.
Essas concepções, em grande parte, reconhece Christopher Black em “The Italian Inquisition”[2], devem-se à grande carência de informações acerca das complexidades do funcionamento do Santo Ofício ao longo de um extenso espaço de tempo e de uma Europa extremamente fragmentada. Além disso, graças às políticas de autopreservação da Igreja Católica, as principais fontes de informação tornaram-se disponíveis apenas em 1998, com a abertura do Arquivo do Santo Ofício do Vaticano, e tratando-se do período medieval, menos centralizado e registrado, os dados são ainda mais enevoados. Como decorrência, prevaleceram as abordagens rasas e simplistas sobre o assunto, especialmente no sentido de legitimar os modelos de racionalidade e secularidade propostos posteriormente, com o Iluminismo.
Por conseguinte, uma perspectiva não anacrônica ou pictórica do processo inquisitorial é de difícil acesso ao público, predominando a imagem ilusória de trevas e barbáries, dentre as quais se destaca principalmente o caso das bruxas e feiticeiras. A riqueza do processo inquisitorial como modelo que guarda fortes conexões ao surgimento do moderno procedimento criminal ocidental é frequentemente subestimada (e, raras vezes, como veremos, superestimada) por juristas e estudiosos da história – de maneira similar a construção fictícia da Idade Média como uma “noite de mil anos”, que finalmente vem sendo desconstruída.
Por outro lado, apesar da importante racionalidade do processo canônico, que já em 1215, com o IV Concílio de Latrão, aboliu as cruéis ordálias em prol de um sofisticado sistema de juramentos e testemunhos, não se pode deixar de ter em perspectiva as irracionalidades que baseavam esse sistema (como a crença em diabos e bruxaria), assim como as distinções entre o que geralmente previam os códigos de procedimento e o que acontecia na prática. Nesse sentido, as torturas, a falta de conhecimento legal dos inquisidores e, em seu ápice, as perversas perseguições de mulheres que se seguiram ao famoso “Martelo das Feiticeiras”[3] não devem ser esquecidas, ou tomadas como simples “perversões” do real processo inquisitorial, como conclui Kelly[4] em suas ponderações.
Este artigo objetiva, então, questionar a abordagem maniqueísta do processo inquisitorial, reconhecendo tanto seus avanços jurídicos, quanto seus abusos, algo carente nas perspectivas que aqui serão trabalhadas para este fim (de questionamento). Intenta-se traçar um retrato menos generalizante, ao qual se possa fazer compreender melhor as complexidades e minúcias envolvidas quando se tratando de tal período histórico.
De fato, não basta à história do Direito a função de legitimação[5]. E em seu lugar, defenderemos um estudo crítico, aos moldes propostos por Hespanha, desconfiados de generalizações feitas em manuais de história do direito e conformados com a impossibilidade de conhecer toda a diversidade de formas adotadas pela Inquisição Moderna na Europa dos séculos XV ao XIX. Nesse sentido, o estudo de caso do moleiro Menocchio, protagonista de “O Queijo e os Vermes”[6], uma das obras inaugurais da microhistória na Itália, serve de auxílio e parâmetro à nossa abordagem, que terá enfoque neste tempo e espaço, ou seja, Veneza do século XVI.
2 DAS DIFICULDADES INTERPOSTAS PELO MOMENTO HISTÓRICO
O questionamento original que daria corpo a este artigo, e que logo revelou-se demasiadamente ambicioso para ser desenvolvido no tempo e nos moldes estipulados, sem a realização de pesquisa mais extensa, ilustra de forma bastante clara as dificuldades oferecidas pelo período. Dificuldades tanto de origem metodológica, como documental.
A perspectiva inicial ao estabelecer, como intervalo de interesse, o período inquisitorial católico, era a de procurar esclarecer o papel desempenhado por uma das profissões sobre a qual a falta de conhecimento, aliada às más impressões deixadas pelos pensadores iluministas sobre o medievo – no qual os tribunais do Santo Ofício foram fundados e desenvolveram grande parte de sua história, embora não tenham se limitado a ele –, deixou efeito nebuloso: a dos advogados. O objetivo seria, portanto, centralmente, explicitar como se dava, de forma factual, seu papel nos inquéritos de hereges realizados pela Igreja Católica, abordando as ferramentas à sua disposição e as ocasiões em que lhes era permitido atuar.
Boa parte da população contemporânea, de fato, se questionada sobre o papel efetivo dos bacharéis em Direito durante o interrogatório de bruxas e outros hereges do século XVI – por exemplo –, optaria, muito provavelmente, pela perspectiva de que este simplesmente não existia – pelo menos na maioria dos casos. Essa perspectiva encontra embasamento numa corrente teórica real e, de certa forma, pessimista, que atribui ao papel do advogado dessa época – nos raros momentos em que estaria presente – a mera atividade de fazer o processo correr mais rápido, de modo a facilitar o caminho para a condenação do acusado. É fácil perceber como essa concepção é por demais generalista, ainda mais quando confrontada pelo seu extremo oposto, como a teorizada por Henry Kelly – que, por mais que assente a existência de períodos de arbitrariedade nos tribunais do Santo Ofício, em que a imperatividade do inquisidor superava qualquer procedimento legal, desenvolve muito mais uma concepção idealista, de uma ordem jurídica assegurada, com presença quase geral do advogado.
Tal divergência entre estudiosos pode ser explicada, entre outros fatores, pela extensa pluralidade – e, por vezes, questionabilidade[7] – das fontes disponíveis, tendo sido a Inquisição bastante diversa nas diferentes localidades e épocas nas quais se instalou, tornando difícil a realização de qualquer generalização. Embora vários documentos não tenham sobrevivido às intempéries do tempo, outros existem, ainda hoje, em quantidade bastante considerável e de conteúdo heterogêneo[8]. A depender das fontes escolhidas – sendo impossível, e até mesmo desinteressante, realizar um estudo de todos os documentos, vista a já referida pluralidade inerente ao período, que seria completamente perdida num estudo essencialmente quantitativo e estatístico – o objeto de pesquisa, antes tendo como base um plano generalista, acabaria por relativizar-se em demasia. Soma-se a isso o fato de que algumas fontes são estudadas e revisadas – como os processos de Galileu Galilei (1633) ou do cardeal Morone (1552-1559)[9] –, enquanto outros permanecem na obscuridade – como processos de camponeses e outros populares –, condenados à falta de interesse dos teóricos, e obtém-se um quadro em que, em um processo, de um certo período e lugar, o papel do advogado mostra-se perfeitamente consolidado; já em outro, de outra época e ambiente, a arbitrariedade impera.
De modo a evitar o embarque em qualquer das duas correntes teóricas, portanto – “pessimista” ou “idealista” – resumir-nos-emos a um espaço amostral menor, localizado no Friuli do século XVI. Inspirados num dos maiores exemplos contemporâneos de corrente histórica que demonstra o quão frutífero pode se tornar a exaustão investigativa de um caso ordinário e desconhecido, mencionaremos o papel do advogado – assim como nossas outras observações – somente no contexto específico do moleiro Menocchio, de “O queijo e os vermes”, de Carlo Ginzburg. A microhistória, introduzida pelo autor, como um jogo indutivo – partindo, então, do particular ao geral – oferece ferramentas interessantes, na conquista de caminhos ainda inexplorados da História.
3 DAS COMPLEXIDADES DA HISTÓRIA INQUISITORIAL ITALIANA E DAS DUAS PERSPECTIVAS
Atentando-nos um pouco mais a corrente que se optou por denominar “idealista”, podemos – com ressalvas – destrinchar famosos mitos disseminados pelos autores “pessimistas” acerca do período inquisitorial europeu, que se subdividiu entre as Idades medieval e moderna, no intento de subjugar quaisquer legados das dinâmicas então desenvolvidas – como se todo requintado direito romano anterior houvesse sido congelado e somente retomado com o movimento da Ilustração.
O que hoje tradicionalmente chama-se de “Inquisição Romana” se referiu ao Santo Ofício Inquisitorial nos moldes da Reforma Papal de 1542, que colocou os diferentes sistemas operantes na Itália de Menocchio sob o controle central e direto de um seleto grupo de cardeais de Roma, segundo Christopher Black[10]. Alguns desses cardeais, inclusive chegaram a participar simultaneamente de outra congregação, a do Index Librorum Prohibitorum, posteriormente estabelecida em 1571, que realizava trabalho independente e, por vezes, conflituoso com o do Santo Ofício. Esse esforço coletivo de repressão por parte da Igreja pode ser associado a onda de ideias protestantes que começavam a eclodir em outras partes da Europa, com fortes conotações humanistas e, embora não ateístas, representantes de grande ameaça à homogeneidade ideológica cristã – ainda mais posta à prova com o advento da imprensa de Gutemberg.
No entanto, o processo inquisitorial havia sido, na verdade, criado vários séculos antes, com o IV Concílio de Latrão de 1215, oriundo da necessidade de se substituir a accusatio, outra forma de procedimento - visto que até então existiam accusatio, inquisitio e denunciatio (esse último uma espécie alternativa de começar uma inquisição), apesar de que ambas modalidades continuariam a ser prescritas pelos códigos canônicos. Após essa data, a inquisição torna-se oficialmente o método universal das cortes eclesiásticas, não só de heresias, mas das ações rotineiras, a exemplo dos julgamentos de anulação de casamento de Henrique VIII, da Inglaterra. A exceção eram as “ações civis”, destaca Kelly[11], nas quais os próprios autores traziam as ações contra seus réus.
É importante ressaltar aqui que, segundo Van Hove[12], predominava a ausência de outros sistemas judiciais, além do eclesiástico. Somente séculos após o estabelecimento do Santo Ofício que os Estados seculares europeus iriam emergir com seus respectivos sistemas judiciários, completamente separados da Igreja. Por isso, vários dos próprios inquisidores eram treinados segundo a lei canônica a receber denúncias, normalmente realizadas por cidadãos comuns e, eventualmente, por espiões da Igreja. No entanto, a inauguração de um tribunal não era qualquer novidade, visto que a maioria das dioceses já tinham cortes autorizadas a julgar uma enorme variedade de casos e matérias – dentre as quais a heresia era somente uma dentre as muitas.
Diferenciava-se, então, a inquisição dos demais processos, por essa simples peculiaridade: nela, o juiz seria o responsável por apresentar as denúncias contra o réu. Mas não arbitrariamente, o papa Inocêncio III não queria o juiz agindo como promotor[13], vislumbrava apenas sua atuação como representante da opinião pública bem-estabelecida e cuidadosamente verificada, por uma etapa de recolhimento de evidências, especialmente por parte de membros tidos como “confiáveis” da comunidade - como no caso Menocchio, denunciado pelo seu próprio padre.
Ora, se a essência do processo inquisitorial não guardava quaisquer relações especiais com o julgamento de heresias, como então tornaram-se tão intrinsecamente sinônimos? Kelly atenta para uma importante distinção da língua latina medieval entre a inquisição rotineira e aquela responsável pelas heresias (“inquisitio heretice pravitatis”). Essa vital especialização foi perdida nos historiadores modernos, especialmente os falantes da língua inglesa, que passaram a nomear simplesmente “heresia” ambas as situações.
Apesar dessa essencial confusão, mesmo a inquisição a serviço do julgamento de hereges, na Itália, não guardava tantas distinções com o processo tradicional quanto somos levados a imaginar. Partilhando da assertiva acima e, contrariando renomados estudiosos do período inquisitorial como Bernard Hamilton e Richard Kieckhefer, Henry Kelly e H. C. Lea[14] propõem uma quebra de imagem paradigmática, ao alegar que não haviam diferenças procedimentais entre os poderes dos inquisidores papais encarregados dos hereges e dos demais juízes episcopais. Quaisquer delegações ou apropriações de competências mais eram realizadas “contra jus”, isso é, de forma ilegal.
Assim, pode-se concluir que, uma vez superado o período inicial inquisitório - de levantamento das denúncias pelo próprio juiz -, o resto do procedimento tendia a se encaminhar da mesma forma que quaisquer outros. Mitos como os de que o acusado era considerado “culpado, até provado inocente”; não era permitida defesa; não eram lidos seus direitos ou acusações, não encontram respaldo histórico-teórico de sustentação. De fato, o abreviamento dos procedimentos era extremamente raro, a exemplo encontrado apenas na França de 1255 e 1298, sob ordens de Alexandre IV e Bonifácio VIII, respectivamente. Diferente era o que acontecia no Common Law inglês, onde a possibilidade de recusa de julgamento só veio a ser eliminada em 1836. Rejeita-se, portanto, a noção “pessimista” típica dos autores da Ilustração europeia e mesmo dos subsequentes, de que os tribunais inquisitoriais eram altamente organizados e eficientes no combate preciso – e, frequentemente, fatal – dos atos heréticos. Contra essa lenda, Hove[15] apresenta dados acerca das execuções: menos de 2% dos acusados, ou cerca de três pessoas por ano, nas cidades de Valencia e Galicia, onde atuou a cruel Inquisição Espanhola, por exemplo.
Isso não deve diminuir a percepção de selvageria ocasional, as perseguições sem precedentes e os diversos outros atos de puro terror promovidos ou incentivados pela Igreja Católica – Santo Ofício incluso – nesses seus anos de supremacia intelectual-ideológica. Também não se intenta, por outro lado, compactuar com a tese de Kelly, anteriormente citada – de redução dos abusos e horrores a meras desvirtuações eventuais do procedimento teórico, dando enfoque as similitudes deste com nosso atual sistema penal. No entanto, essa disparidade de visões nos serve, evidentemente, de importante lembrete ao quanto o estudo da História (e, especialmente a História do Direito) pode ser manipulada a fim de sustentar interesses – a famosa história recortada, feita com “frasco de cola e tesoura”, a qual se referia Marrou[16].
4 DO PROCESSO INQUISITORIAL E DO CASO MENOCCHIO
“O inquérito na Europa Medieval é sobretudo um processo de governo, uma técnica de administração, uma modalidade de gestão; em outras palavras, o inquérito é uma determinada maneira do poder se exercer”[17]. Seguindo uma ótica foucaultiana, que observa o mundo a partir, essencialmente, de relações de poder, podemos apresentar o primeiro passo que deveria ser observado na instalação de um tribunal do Santo Ofício: a perscrutação do ambiente com o objetivo de estabelecer o nível de aceitação da legitimidade do poder eclesiástico por parte da população, além de seu poder jurisdicional factual[18].
Se inquirir é exercer poder, é certo o conflito a ser formado pelos pretendentes a praticar função inquisitorial com os titulares do poder estatal – já bastante centralizado, à época tratada[19] – e incerta a legitimidade a ser obtida e preservada. O Friuli de Menocchio, dominado por Veneza, com efeito, continha certa tensão entre os poderes eclesiásticos e seculares - motivada por uma multiplicidade de fatores, dentre eles a Reforma Protestante - e exemplificada pela necessidade da constante presença de um representante do poder secular no processo que se seguiu. Foi também o poder secular o sancionador das penas determinadas – como já era comum –, cabendo à Igreja somente os procedimentos de inquérito stricto sensu e o andamento cerimonial do caso.
A este último, cabe o desenvolvimento da seguinte observação: enquanto os processos inquisitoriais seguiam naturalmente sob o princípio da sigilosidade, as penas costumavam ser públicas, cheias de dramaticidade, com leituras em voz alta das infrações e das penas – “autos de fé” –, visando, ao mesmo tempo, desmotivar o descumprimento dos dogmas da Santa Igreja, e assegurar a legitimidade de seu poder no combate pela retidão moral[20].
E, nesse sentido, o processo inquisitorial de heréticos envolvia, “grosso modo”, três etapas – além da etapa pré-inicial de recebimento da denúncia: o recolhimento de boatos, o interrogatório, e a condenação – e assim o foi com Menocchio. Sobre essa estrutura, entretanto, incidiu um leque de convenções, assim como de descomedimentos, excessos e subversões[21]. A história do tribunal a respeito das bruxas, marcada pela existência de manuais como o infame “Malleus Maleficarum” além da famosa Inquisição Espanhola[22], são exemplares a este respeito, assim como a forma com que eram conduzidas tanto a etapa pré-inicial de “recebimento da denúncia”, quanto o recolhimento dos boatos e o interrogatório em si.
Na primeira, a denúncia não poderia advir de qualquer popular; era fundamental ao inquisidor a observância da importância social do denunciante, de sua “boa fama”. Na segunda, imperava o medo entre as pessoas de serem mal interpretadas como se estivessem agindo com o interesse de proteger o acusado – ora, todos os habitantes da vila de Menocchio que foram interrogados possuíam, em menor ou maior grau, esse temor, como nos mostra Ginzburg nos capítulos referentes à essa parte do processo. Na terceira, o inquérito, a partir da acusação recebida de pessoa de boa índole e dos boatos, já se iniciava com certa presunção da culpabilidade do acusado – não oficialmente, como vimos, mas, por vezes, evidente no tratamento dos inquisidores ao réu. Não é difícil inferir os problemas que daí poderiam surgir. Acusações acabavam se apresentando como forma de vingança pessoal; padres e líderes sociais possuíam maior respeitabilidade e, portanto, suas denúncias poderiam ser ouvidas com maior atenção – o próprio caso do moleiro foi motivado por um padre com quem este possuía desavenças.
Como mencionado anteriormente, a perspectiva idealista – a que elegemos como exemplar o desenvolvido pelo professor Henry Kelly – discorre sobre a integridade da ordo juris do processo, dando menor atenção aos seus períodos de maior arbitrariedade e reforçando mais o seu aspecto que “chegou até nós” – a influência que realizou nos atuais sistemas de processo criminal ocidental. Tal concepção de ordenamento jurídico íntegro presume, entretanto, a existência de uma ideal união doutrinária, entre os diversos tribunais existentes, ou mesmo um manual de referência comum que extrapolasse a Bíblia, a reunião de alguns dos mais polêmicos escritos agostinianos – assim como de algumas das cartas paulinas – e as influências do Direito Romano, que constituíam as fontes básicas dos inquisidores.
Esse suposto objeto doutrinário, entretanto, inexiste. Pelo contrário, ao que tudo indica, à exceção de poucos, a maioria dos manuais não possuía grandes intervalos de influência temporal, assim como territorial[23], acabando, na prática, por ficar a critério do próprio inquisidor o manual que seguiria para realizar suas funções, em que pesem as limitações hierárquicas da Igreja e a necessidade de observância das atualizações no Direito Canônico. A própria ignorância dos inquisidores diante da pluralidade de características presentes na cosmogonia de Menocchio, quanto à como categorizá-la dentro dos parâmetros de heresia existentes, demonstra a inexistência de uma compilação efetiva de procedimentos, visto que várias características anabatistas passam despercebidas[24].
A fé de Kelly no processo inquisitorial e na sua integridade jurídica, destarte, encontra correspondência no caso específico de Menocchio[25]. Talvez – novamente, em uma perspectiva foucaultiana – a tensão entre os poderes secular e eclesiástico tenham forçado esse último a “agir conforme as regras” – é mister lembrar também da proteção exercida pelo governo de Veneza à plebe em geral, devido à revoltas e conflitos ocasionados anteriormente com a nobreza, como nos explica Ginzburg[26].
Mas é claro como este pensamento não pode ser transposto a qualquer lugar e à qualquer tempo: em alguns períodos da história espanhola[27], por exemplo, onde a união Igreja e Estado se dava de forma muito mais amigável, essa ordo juris tendeu a perder-se. Quanto ao papel do advogado, por fim, a teoria de Kelly[28] também parece adequar-se ao caso do moleiro; há a presença destes em vários pontos de sua história: Ziannuto contrata um, quando da primeira prisão para os interrogatórios, por exemplo, e Ginzburg detecta a presença de outro (ou o mesmo), na súplica apresentada ao bispo Matteo Sanudo e ao inquisidor de Aquileia e Concórdia, frade Evangelista Peleo[29]; também lhe é oferecido um advogado em outro ponto do processo, antes dos anos passados no cárcere[30] - o que sugere ser a uma análise generalista do tema ainda mais problemática.