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Notas sobre o sistema jurídico do Reino Unido

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Agenda 03/04/2019 às 08:30

X - Os magistrados britânicos

O recrutamento de magistrados, no Reino Unido, é feito entre advogados com maior tempo de exercício da advocacia e, portanto, mais experientes:

“Desde 2006, o processo de seleção de juízes na Inglaterra e no País de Gales fica centralizado numa comissão criada especialmente para a função, a Judicial Appointments Commission. Até então, a escolha de quem ia ocupar o cargo funcionava mais na base do tapinha nas costas. Com a comissão, o processo seletivo ficou mais transparente e, de acordo com os advogados, mais competitivo. Hoje, há um exame escrito, seguido por uma série de avaliações orais e mesmo simulações de julgamentos. Os candidatos escolhidos são enviados pela comissão para aprovação do lord chancellor (o equivalente no Brasil ao secretário de Justiça), que pode recusar a escolha, embora isso não aconteça” (PINHEIRO, Portal Consultor Jurídico, 24.03.2017).

Em 2012, foi proposto que se prestigiem, na seleção, mulheres, minorias étnicas e outros grupos minoritários da sociedade:

“Para o Comitê de Constituição da House of Lords, a proposta é boa. Ter magistrados de diferentes sexos e etnias aumentaria a confiança da população na Justiça. O grupo defendeu que o mérito continue sendo o único critério para a escolha dos juízes. Mas que, quando há dois candidatos que merecem igualmente o mesmo cargo, é razoável optar por aquele que faça parte de alguma minoria”.

Ainda no século 19, o diplomata e abolicionista brasileiro Joquim Nabuco (1981:85), considerava a Inglaterra o “país mais livre do mundo”. Elogiava a sintonia da Câmara dos Comuns com as oscilações do sentimento público. Maiores elogios direcionava à autoridade dos juízes britânicos:

“Somente na Inglaterra, pode-se dizer, há juízes (...). Só há um país no mundo em que o juiz é mais forte do que os poderosos: é a Inglaterra. O juiz sobreleva à família real, à aristocracia, ao dinheiro, e, o que é mais que tudo, à imprensa, à opinião. (...) O Marquês de Salsbury e o Duque de Westminster estão certos de que diante do juiz são iguais ao mais humilde de sua criadagem. Está é a maior impressão de liberdade que fica da Inglaterra. O sentimento de igualdade de direitos, ou de pessoa, na mais extrema desigualdade de fortuna e condição, é o fundo da dignidade anglo-saxônica”.

Edward Coke considerava a Magna Carta uma “garantia de julgamento por júri para todos os homens; proibição em termos absolutos de toda e qualquer prisão arbitrária; e compromisso solene de dispensar a todos uma justiça plena, livre, rápida e igual para todos”. Bernard Schwartz (1979:16-18) apontou Coke como precursor jurídico dos homens que fizeram a Revolução Americana. James Otis, John Adams e Thomas Jefferson, entre outros, foram acalentados pelos escritos de Coke e o exemplo de sua carreira tripla, cada qual deixando sua marca indelével nas Constituições inglesa e americana:

“Como autor e como juiz, Coke proporcionou uma base doutrinária para o edifício constitucional americano (...). Como líder parlamentar, Coke foi o catalisador na luta que culminou na Petição de Direito, um instrumento que orientou os colonos americanos em sua luta contra a Inglaterra.

“Em 1616, Coke foi dispensado, depois de três anos, do cargo de ‘Chief Justice’ do Tribunal do Rei, o mais alto posto de magistrado do reino. Foi afastado em decorrência dos seus esforços judiciais sistemáticos para frustrar as tentativas reais de colocar o poder da Coroa acima da lei. Estava com 65 anos e parecia ser o fim de sua carreira pública. Em 1620, no entanto, ele foi eleito para a Câmara dos Comuns. E foi nesse momento que começou a terceira e, sob alguns aspectos, mais admirável parte de sua carreira”.

Portanto, também os norte-americanos zelam pela independência do Poder Judiciário:

“Tão importante quanto a estabilidade no cargo como ‘conditio sine qua non’ da independência do Judiciário é o dispositivo para a remuneração do Judiciário para que seja independente dos setores políticos do Governo. Os autores da própria Declaração da Independência americana estavam plenamente conscientes disso. (...) Os elaboradores da Constituição federal inscreveram nela um dispositivo expresso de que a remuneração recebida pelos juízes nomeados de acordo com ela ‘não poderá ser diminuída durante a permanência em suas funções’” (SCHWARTZ, 1966:173).

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Aspecto interessante é o uso de perucas pelos magistrados britânicos. Atualmente, porém, as perucas de cachos brancos, típicas da nobreza europeia, sobrevivem apenas nos tribunais ingleses, onde compõem a indumentária oficial dos juízes (Portal Consultor Jurídico, 25.05.2016).


XI – Passagens curiosas

No dia 25 de maio de 2016, visitamos a universidade King’s College, em Londres. Assistimos a conferências na sala de palestras “Edmund J. Safra”, assim denominada em homenagem ao rico brasileiro benemérito da instituição.

Lady Sharp, juíza em Londres, proferiu palestra sobre A independência do juiz e a disciplina judicial.

Encerrada a conferência, uma magistrada brasileira perguntou sobre a adoção de cotas para mulheres na seleção para ingresso nos quadros da magistratura.

Lady Sharp respondeu que as magistradas britânicas enfrentam as mesmas dificuldades das mulheres de todo o mundo: são mães; demoram mais para comprar roupas e calçados, fazer a higiene pessoal e se vestir; e se deparam com algumas barreiras sociais ao desenvolvimento profissional.

No entanto, não há previsão de cotas para selecionar magistradas na Inglaterra. Arrematou a conferencista:

“Se for boa profissional, a mulher será bem sucedida”.

Em 31 de maio de 2016, em Edimburgo, capital da Escócia, visitamos a Corte Comercial escocesa.

Fomos recepcionados por Lord Woolman, juiz da Suprema Corte da Escócia. Ele nos perguntou quem é a pessoa mais importante em um tribunal. Alguns de nós arriscamos responder: o juiz, o jurisdicionado etc. Ele negaceou e afirmou:

“A pessoa mais importante em um tribunal é a que perdeu a demanda. Temos de convencê-la de que, mesmo tendo sucumbido, foi realizada justiça” (Lord Woolman, juiz da Suprema Corte da Escócia).

Visitamos a Universidade de Stirling, cidade histórica escocesa, em 01.06.2016.

Roman Cruft, conferencista sênior de Filosofia da universidade, proferiu palestra sobre Os fundamentos filosóficos dos direitos humanos.

Ao final da apresentação, um juiz brasileiro, entusiasta dos direitos humanos e do garantismo penal, fez uma longa e dramática exposição sobre as más condições das prisões no Brasil. E questionou o conferencista sobre as condições carcerárias no Reino Unido, quais os direitos dos presos etc.

O professor Cruft, britanicamente, respondeu:

“Não conheço a situação dos presídios em seu país e lamento muito que seja tão precária, conforme o senhor relatou. Aqui na Escócia, defendemos o direito de punir com limites. Ou seja, devem ser evitados atos desumanos e desproporcionais. Todavia, punir com limites é direito humano da comunidade”.

Punir com limites – penso eu – é muito diferente de “não punir, sem limites”, como infelizmente ocorre no Brasil. Em nosso país, a comunidade das pessoas de bem, em geral, não tem direitos humanos...

Por derradeiro, na Universidade de Edimburgo, em 02 de junho de 2016, ao final do Congresso, participamos de debate aberto sobre Perspectivas do Judiciário escocês.

Respondendo a uma pergunta minha, George Gretton, professor de Direito Comercial, afirma não haver regra legal, na Escócia, similar ao Estatuto da Advocacia brasileiro, que obriga magistrados a receber advogados em seus gabinetes:

“Nas cortes comerciais, podem os advogados se reunir com o juiz para discutir o rito processual, visando à simplificação do trâmite. É algo informal. Não tenho nenhuma inveja da lei de vocês”.

Já tive ocasião de pontuar:

“Em 2009 surgiu acirrada controvérsia em torno de um projeto de adoção de dispositivo regimental para disciplinar o recebimento de advogados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. Pouco antes, em dezembro de 2008, participei do Curso de Administração Judiciária, Administração Pública e Sistema Judiciário Norte-Americano, ministrado pelo Dean Rusk Center for International and Comparative Law, da Universidade da Geórgia (EUA).

“Fomos informados de que os juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos não recebem advogados para tratar das causas em andamento naquele tribunal. Nas demais Cortes e nos juízos de primeiro grau, federais e estaduais, o advogado somente é recebido pelos magistrados para entrevista previamente agendada e desde que acompanhados pelo advogado da parte contrária. Caso o magistrado receba advogado para examinar alguma medida de emergência, tem a obrigação de dar imediata ciência, por qualquer meio de comunicação disponível, ao advogado da outra parte.

“Também participou daquele intercâmbio o ministro Jorge Nanclares, então presidente da Suprema Corte de Mendoza (Argentina). Nanclares afirmou que a Suprema Corte argentina editou ato normativo segundo o qual - à semelhança do que vigora nos Estados Unidos - o advogado só será recebido pelo ministro em entrevista previamente agendada e desde que acompanhado pelo advogado da parte contrária. Posteriormente, o Conselho Nacional de Justiça argentino estendeu a referida norma a todos os tribunais e juízos do país” (GARCIA DE LIMA, Advogados e juízes, O Estado de S. Paulo, 03.04.2013).


XII – Conclusões

Como já assinalei (GARCIA DE LIMA, Revista Amagis Jurídica, 8/93-115) René Descartes realçava a importância de se viajar a outros países. Ao conhecer diferentes povos e costumes, julgamos mais saudavelmente os nossos (O Discurso do Método, p. 46).

No mundo contemporâneo, deveras, avulta o papel do estudo comparativo entre sistemas jurídicos. René David, no célebre Traité Élémentaire de Droit Civil Comparé, destacava que o estudo dos direitos estrangeiros é um meio para o jurista adquirir o espírito internacional necessário no mundo novo. O estudo comparativo ganha relevância diante do fenômeno contemporâneo da globalização, quando os vários direitos se interpenetram, influenciam e comunicam. Os direitos do mesmo sistema são sempre comunicáveis, mas não é raro que sistemas também se interpenetrem. Existe, pois, comunicabilidade de direitos, civilização e ideologias (CRETELLA JÚNIOR, 1992:XII e 161-163).

O Direito se tornou um “bem intercambiável”, que transpõe as fronteiras “como se fosse um produto de exportação”. Cada vez mais, as regras que organizam a nossa vida comunitária são concebidas em outros territórios; e as que são concebidas internamente servem para formular o Direito em países estrangeiros. Durante muito tempo limitados à interpretação rigorosa do Direito, os juízes são hoje os agentes mais ativos de sua mundialização e, por conseguinte, engenheiros da sua transformação. A literatura especializada fala do “diálogo entre juízes”, “mundialização judicial” ou “auditório global”. Os fóruns mundiais de juízes, enfim, permitem “racionalizar a mundialização” (ALLARD e GARAPON, 2006).

Como conclusão, destaco dois relevantes aspectos do sistema jurídico do Reino Unido.

O primeiro: é importante conhecer o sistema do stare decisis para aplicar precedentes aos novos casos julgados. Como se pratica no Common law, é preciso cotejar o novo caso com o precedente, mediante análise dos fatos e dos fundamentos jurídicos (ratio decidendis).

A propósito, o jurista brasileiro Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal e um dos brilhantes conferencistas do Congresso do Reino Unido, alertou:

“Nos últimos anos, a jurisprudência, com o consequente uso de precedentes, se tornou uma fonte formal de direito no Brasil. Nada obstante isso, juízes, advogados, membros do Ministério Público e operadores jurídicos em geral não estão familiarizados com as técnicas associadas ao emprego de precedentes” (Portal AMB. 19.04.2016).

Vale acrescentar: o Novo Código de Processo Civil brasileiro assimilou bastante a doutrina dos precedentes, do Common law. Muitos operadores do direito, no entanto, ignoram que sua aplicação requer cotejo analítico do caso precedente com o caso sob julgamento, à luz dos fatos e da fundamentação jurídica.

Não basta a mera citação da ementa do julgado do caso precedente, não raro dissociada dos detalhes fáticos e jurídicos dos caso posterior sub judice.

O segundo: não verifiquei, no sistema judiciário britânico, a prática do denominado “ativismo judicial”. Juízes e tribunais não inovam aleatoriamente as decisões, respeitam a autoridade dos precedentes e preservam a segurança jurídica.

No Reino Unido, enfim, constatei o zelo pelo cumprimento das leis e pela atuação independente do Poder Judiciário.

Sobre o autor
Rogério Medeiros Garcia de Lima

Desembargador da 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor da Escola Judicial "Desembargador Edésio Fernandes"-TJMG e de cursos de gradução e pós-graduação em Direito, autor dos livros O Direito Administrativo e o Poder Judiciário. Belo Horizonte: Del Rey, 1ª ed., 2002, e 2ª ed., 2005; Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003; e Refletindo o Direito e a Justiça. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 2010, bem como de diversos artigos jurídicos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Rogério Medeiros Garcia. Notas sobre o sistema jurídico do Reino Unido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5754, 3 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69499. Acesso em: 22 dez. 2024.

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