O pleno do Supremo Tribunal Federal, no dia 14/11/2018, analisando a (in)constitucionalidade do art. 305 do Código de Trânsito (Lei nº 9.503/97), firmou o entendimento de que "a regra que prevê o crime do art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro é constitucional, posto não infirmar o princípio da não incriminação, garantido o direito ao silêncio e ressalvadas as hipóteses de exclusão da tipicidade e da antijuridicidade"[1].
A linha de raciocínio adotada pela Suprema Corte está ancorada no argumento de que o direito ao silêncio, insculpido no artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal, não constitui obstáculo à imputação do crime de fuga do condutor do local do acidente de trânsito, não havendo qualquer incompatibilidade na coexistência das duas normas. Ainda, restou afastado o argumento de que impor ao agente que permaneça no local do acidente equivaleria a obrigá-lo a fazer prova contra si, em afronta ao disposto no artigo 8º, inciso II, alínea “g”, do Pacto de São José da Costa Rica.
O dispositivo legal cuja constitucionalidade foi questionada descreve como crime a conduta de “afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída”, prevendo pena de 06 (seis) meses a 01 (um) ano de detenção, ou multa.
A decisão tomada pelo STF contraria o posicionamento firmado por diversas Cortes Estaduais[2], as quais, ancoradas no entendimento de que a imposição de permanência na cena do crime é suficiente para caracterizar ofensa à garantia da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere[3] ou privilege against self incrimination), alinharam a sua jurisprudência pela inconstitucionalidade do preceito legal em comento. A doutrina pátria majoritária, da mesma forma, aponta a incompatibilidade do art. 305 do Código de Trânsito com a garantia da não autoincriminação[4].
Segundo Guilherme de Souza Nucci[5], o artigo 305 do Código de Trânsito “contraria, frontalmente, o principio de que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo”. E, na sequência, completa o referido autor, lecionando que “inexiste razão plausível para obrigar alguém a se autoacusar, permanecendo no local do crime para sofrer as consequências penais e civis do que provocou. Qualquer agente criminoso pode fugir à responsabilidade, exceto o autor de delito de trânsito”.
No mesmo sentido, é o escólio de Eduardo Luiz Santos Cabette[6]:
... o envolvido em acidente de trânsito seria compelido, mediante a ameaça de incriminação, a permanecer no local do fato, não atuando em seu direito de autodefesa que abrange inclusive a própria ocultação, tanto é verdade que a norma não existe para outros crimes, onde a fuga do local é apenas um “post factum” não punível, constituindo no “iter criminis” a fase de exaurimento. Nem se argumente que nos casos de crimes de trânsito a fuga do local é mais incidente e justificaria a normativa em discussão. Isso porque a alegação não corresponde à realidade do mundo da vida. Ou será que alguém vê com frequência o homicida aguardando a polícia no local do crime, o estuprador, o praticante de furto ou roubo etc.?
Concordamos com o posicionamento dos autores referidos, pois não há na legislação pátria qualquer dispositivo semelhante em relação a outro crime, inclusive os mais graves. A título de exemplo, veja-se que o homicida ou o estuprador não recebem uma punição mais acentuada, ou sequer são responsabilizados em tipo penal autônomo, por se ausentarem do local do crime.
Completando o entendimento, colacionamos ementa do TJSC[7]:
ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE - APELAÇÃO CRIMINAL - ART. 305 DO CTB - FUGA DO LOCAL DO ACIDENTE PARA ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL OU PENAL - INCONSTITUCIONALIDADE - VIOLAÇÃO AOS DIREITOS DE SILÊNCIO E DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO (CF/88, ART. 5º, LXIII) - AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE - TRATAMENTO DIFERENCIADO SEM MOTIVAÇÃO IDÔNEA - PROCEDÊNCIA DA ARGUIÇÃO. Não se pode conceber a premissa de que, pelo simples fato de estar na condução de um veículo, o motorista que se envolve em um acidente de trânsito tenha que aguardar a chegada da autoridade competente para averiguação de eventual responsabilidade civil ou penal porquanto reconhecer tal norma como aplicável, seria impor ao condutor a obrigação de produzir prova contra si, hipótese vedada pela Constituição Federal por ofender o preceito da ampla defesa (CF/88, art. 5º, LV), além de incorrer em malferição ao direito ao silêncio (CF, art. 5º, LXIII). Ademais, estar-se-ia punindo o agente por uma conduta praticada por qualquer outro delinquente, qual seja, a evasão da cena do delito, sem que por tal conduta recebam sanção mais alta ou acarrete maior gravosidade em suas penas, estabelecendo-se forte contrariedade aos princípios da isonomia e da proporcionalidade. Desse modo, afigura-se inviável vislumbrar outra responsabilidade penal a ser imputada ao motorista que se evade do local em que estivera envolvido em acidente de trânsito com vítima que não a omissão de socorro, situação com disposição específica no CTB (art. 304). Assim, se o condutor que se encontra nessas circunstâncias, que resultaram apenas em danos materiais, pode ter sua liberdade cerceada, está-se criando nova modalidade de prisão por responsabilidade civil, matéria que encontra limites constitucionais inestendíveis pelo legislador ordinário, o qual sofre limitação pelo art. 5º, LXVII da CF/88, que impede a prisão civil por dívida, afora as hipóteses nele excetuadas.
Com a devida vênia à decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, entendemos que no julgamento em estudo foi implementada uma visão reducionista da garantia contra a não autoincriminação, violando-se o núcleo duro deste postulado, pois, para nós, essa garantia é bem mais ampla do que o simples direito ao silêncio, que se apresenta apenas como uma das facetas do nemo tenetur se detegere, postulado que escora inúmeras condutas de autodefesa, v.g., não fornecer material gráfico ou genético para perícia, não participar de reprodução simulada dos fatos ou, ainda, não se submeter ao etilômetro.
Nesse ponto, com razão o ministro Gilmar Mendes quando, abrindo divergência ao entendimento vencedor, em seu voto, referiu que “a comprovação da conduta criminosa pressupõe a configuração de autoria e de materialidade, e a permanência do imputado no local do crime inquestionavelmente contribui para a comprovação da autoria, assentando o seu envolvimento com o fato em análise potencialmente criminoso”.
Ainda, para além do argumento acima ventilado, de afronta à garantia da não autoincriminação, entendemos que o art. 305 do Código de Trânsito se equivale à imposição do agente no local do acidente para garantir quase que exclusivamente a responsabilidade civil, nos casos de dano (leia-se: dívida), afrontando, também, o artigo 5º, LXVII, da Constituição Federal, que proíbe prisão por dívida, salvo nos casos de pensão alimentícia e depositário infiel[8], bem como o art. 7°, §7°, do Pacto de São José da Costa Rica, ainda mais restrito.
Esse raciocínio se deve ao fato de que o dispositivo legal em análise possui aplicação apenas nos casos de acidente de trânsito “sem vítima”. Ora, se a fuga do local do acidente ocorrer após a prática de lesão corporal culposa ou homicídio culposo, o agente já será mais severamente punido pela existência de circunstância majorante (§1° dos artigos 302 e 303). Há, ainda, o crime autônomo de omissão de socorro (art. 304) e o crime de inovação artificiosa (art. 312). Todos esses dispositivos aplicam-se nos casos de acidentes “com vítima”, sendo plenamente justificável a tutela penal. Aliás, registre-se, para estas situações, há o incentivo legal da não imposição de prisão em flagrante (art. 301).
Dessa forma, a inferência lógica decorrente do tirocínio acima posto, extraído a partir de uma leitura conglobante do Código de Trânsito, aliado à experiência proporcionada pelo cotidiano, nos mostra que o restrito âmbito de aplicação do artigo 305 tem o escopo punir a fuga destinada a evitar a responsabilização civil por danos[9].
E, ainda que seja questionável o aspecto moral da conduta daquele que foge do local do acidente para evitar sua responsabilidade civil – atitude que, a toda evidência, não é compatível com a construção de uma sociedade justa e solidária –, não podemos olvidar que a fuga do local do acidente sem vítima pode ser objeto de tutela por outros âmbitos do Direito, suficientes para tutelar os interesses em questão.
Notas
[1] STF. Pleno. RE 971959, Rel. Luiz Fux, j. 14/11/2018.
[2] Nesse sentido: TJRS, Incidente de Inconstitucionalidade 70047947478; TJSP, Arguição de Inconstitucionalidade nº 990.10.159020-4; TJMG, Arguição de Inconstitucionalidade 1.0000.07.456021-0/000; TJSC, Arguição de Inconstitucionalidade em Apelação Criminal 2009.026222-9/001.00; TRF4, Arguição de Inconstitucionalidade 0004934- 66.2011.404.0000.
[3] Sinônimos: nemo tenetur se ipsum accusare ou nemo tenetur se ipsum prodere.
[4] Guilherme de Souza Nucci; Damásio Evangelista de Jesus; Cláudia Barros Portocarrero; Ariosvaldo de Campos Pires; Sheila Jorge Selim Sales.
[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 10ª Ed. Vol 2, Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 1015.
[6] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A inconstitucionalidade do artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/258222819/a-inconstitucionalidade-do-artigo-305-do-codigo-de-transito-brasileiro. Acessado em 21/11/2018.
[7] TJSC, Argüição de Inconstitucionalidade em Apelação Criminal 2009.026222-9, de Forquilhinha, rel. Des. Salete Silva Sommariva, j. 01-06-2011
[8] Atente-se para o fato de que o STF, no julgamento do RE 349703 e do RE 466343, que discutiam a prisão civil de alienante fiduciário infiel, decidiu por estender a proibição de prisão civil por dívida, prevista no artigo 5°, inciso LXVII, da Constituição Federal, às hipóteses de infidelidade no depósito de bens e alienação fiduciária. Assim, a prisão civil por dívida é aplicável apenas ao responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.
[9] Dano que terá apenas consequências cíveis, já que não existe crime culposo de dano.