Resumo: Nesta pesquisa, investiga-se, no âmbito da Justiça Comum, a aplicação da Lei nº 10.671/2003 (Estatuto de Defesa do Torcedor) na configuração da responsabilidade civil do Estado durante julgamentos. Como objetivo central, busca-se analisar sentenças e acórdãos acerca de situações de violência nos estádios de futebol brasileiros envolvendo o instituto da responsabilidade civil e o Estatuto de Defesa do Torcedor. Como objetivos específicos, pretende-se entender qual a interpretação da Justiça Comum a respeito do Estatuto de Defesa do Torcedor e da responsabilidade civil do Estado ante casos concretos e como essa interpretação repercute na quantificação do valor devido a título de indenização. A metodologia deste trabalho apoia-se em pesquisa bibliográfica e jurisprudencial bem como em estudos de casos. Os principais resultados apontam para decisões fundamentadas, em sua maioria, apenas na doutrina, tipificando a responsabilidade do Poder Público em subjetiva ou objetiva, de modo a ser pouco explorada a principal legislação vigente sobre o assunto, o que pode prejudicar as decisões. Quanto à indenização, a subjetividade humana mostra-se preponderante na jurisprudência. Em alguns casos, o quantum indenizatório não é condizente com os danos sofridos pelas vítimas dos casos analisados nem com o poderio econômico do Poder Público, não desencorajando, possivelmente, atos futuros da mesma natureza tampouco restabelecendo a confiança do torcedor para novamente frequentar praças esportivas sem o medo de sofrer nova violência gratuitamente.
Palavras-chave: Estatuto de Defesa do Torcedor. Responsabilidade civil do Estado. Violência em estádios de futebol brasileiros. Indenização.
Sumário: Introdução. 1. DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM GERAL. 1.1. Breve histórico. 1.2. Pressupostos (elementos). 1.3. Classificação (espécies). 1.4. Excludentes. 1.5. Responsabilidade civil do Estado. 2. O ESTATUTO DE DEFESA DO TORCEDOR. 2.1. Dispositivos do Estatuto de Defesa do Torcedor atinentes à responsabilidade civil do Estado. 2.2. Pressupostos para a responsabilidade civil do Estado ante o Estatuto de Defesa do Torcedor. 2.2.1. A conduta. 2.2.2. O dano. 2.2.3. O nexo causal. 3. ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS ENVOLVENDO A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO E O ESTATUTO DE DEFESA DO TORCEDOR. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Os constantes conflitos, na sociedade contemporânea, envolvem, muitas vezes, ocorrência de prejuízos e, em decorrência disso, obrigações de reparação de danos. Casos desse tipo têm ocorrido nas praças esportivas, como estádios, ginásios e congêneres, fato o qual afronta o princípio básico de integração promovido pelo esporte.
Nesse contexto, de modo mais específico, cada vez mais estádios de futebol brasileiros têm-se esvaziado em virtude da falta de segurança e do clima de instabilidade que se tem instaurado antes, durante e depois dos eventos desportivos. É nesse cenário, pois, que se pode falar da Lei nº 10.671/2003, mais conhecida como Estatuto de Defesa do Torcedor, que surgiu com uma proposta de trazer segurança aos apaixonados por esporte.
Infelizmente, alguns dispositivos dessa Lei que tratam especificamente da garantia de segurança por parte do Estado não são cumpridos, seja por comissão, seja por omissão, o que incita a responsabilização civil estatal. Diante disso, chegam aos tribunais alguns processos de indivíduos que acionam o Judiciário com o fito de pleitear indenização reparadora de danos, especialmente, ocorridos no contexto futebolístico.
Ante os casos concretos, magistrados, após interpretações do referido Estatuto e das noções de responsabilidade civil, proferem decisões que, em alguns casos, eximem o Estado de qualquer culpa, isentando-o da obrigação de indenizar vítimas, e, em outros, responsabilizam-no, estipulando valores por danos morais e materiais.
Pensando nisso, algumas inquietações são instigantes, sendo possível questionar como esses entendimentos se baseiam na Lei nº 10.671/2003 e na responsabilidade civil do Estado e em que medida intervêm na responsabilização ou no afastamento da responsabilidade do Poder Público, especialmente tendo em vista que esse tema é, até então, pouco explorado.
Em virtude do exposto, observa-se a pertinência de analisar, como objetivo geral, as decisões de juízes de primeira instância e de tribunais sobre casos de futebol brasileiros envolvendo o instituto da responsabilidade civil e o Estatuto de Defesa do Torcedor.
Quanto aos objetivos específicos, pretende-se entender qual a interpretação da Justiça Comum a respeito da referida Lei e do instituto civil abordados perante casos concretos e como essa interpretação repercute na quantificação do valor devido a título de indenização, observando que a segurança do torcedor é um direito previsto no ordenamento jurídico.
Sobre os aspectos metodológicos, tem-se um trabalho qualitativo baseado em pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, com análise interpretativa de doutrina e de decisões judiciais referentes a casos concretos pertinentes ao tema sob investigação.
Para a compilação das referidas decisões, a partir de uma busca criteriosa, selecionam-se sentenças e acórdãos. Em um primeiro momento, acessa-se um repositório composto de amplo conteúdo jurídico, o JusBrasil 1, o qual é nacionalmente conhecido por profissionais do Direito.
Em seguida, utilizando-se de descritores específicos, como responsabilidade civil do Estado e Estatuto do Torcedor, e filtrando a busca por jurisprudência de Tribunais de Justiça estaduais, os resultados são avaliados. Verifica-se se, de fato, há algum ente federativo como réu e busca-se selecionar decisões de juízos e tribunais diversos com a incidência das responsabilidades objetiva e subjetiva a fim de garantir uma análise mais rica.
Já em relação à organização do trabalho, com o fito de atingir os objetivos propostos, no primeiro capítulo, abordam-se os aspectos teóricos da responsabilidade civil em geral, perpassando seu histórico, seus pressupostos (elementos), suas espécies e suas excludentes, bem como os da responsabilidade civil estatal.
Já no capítulo segundo, é apresentado o Estatuto de Defesa do Torcedor, fazendo referência aos dispositivos que têm relação direta com o que é discutido na primeira parte do trabalho.
Finalizando, no terceiro capítulo, faz-se a análise de decisões judiciais que tratam, mais especificamente, da violência nos estádios de futebol brasileiros e da responsabilidade civil do Poder Público.
1. DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM GERAL
A responsabilidade civil é um dos institutos mais estudados pela doutrina jurídica, entretanto, apesar de existirem numerosos trabalhos relacionados a esse tema, nenhum deles consegue apreciá-lo de forma exaustiva e definitiva, o que é absolutamente natural devido à complexidade e ao dinamismo presentes nas relações humanas.
Diniz leciona que “o vocábulo ‘responsabilidade’ é oriundo do verbo latino respondere, designando o fato de ter alguém se constituído garantidor de algo” (2013, p. 49). Conceitualmente, conforme entendimento de Gonçalves (2012, p. 20), a palavra responsabilidade refere-se à ideia de restauração de equilíbrio ou harmonia, de contraprestação e de reparação de dano. Venosa leciona que o referido termo “é utilizado em qualquer situação na qual alguma pessoa, natural ou jurídica, deva arcar com as consequências de um ato, fato ou negócio danoso” (2013, p. 1). No Direito Civil, tal responsabilidade pressupõe atividade danosa violadora de norma jurídica preexistente (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 53), decorrendo, assim, da prática de um ato jurídico, o qual pode ser lícito ou ilícito (GONÇALVES, 2012, p. 34).
Mais especificamente, a responsabilidade, no âmbito civil, segundo Wald e Giancoli (2012, p. 165), refere-se a uma forma de solucionar conflitos humanos resultantes da violação de um dever jurídico. Nesse tocante, convém destacar o conceito de Diniz (2013, p. 51), o qual trata da responsabilidade civil como a aplicação de medidas que impõem a uma pessoa qualquer a reparação do dano moral ou patrimonial causado a terceiros em virtude de ato praticado por ela mesma, por quem ela responde, por algo pertencente a ela ou por imposição legal.
Ainda conforme a referida autora, conclui-se que, para que haja responsabilidade civil, deve existir uma relação jurídica entre o prejudicado e o autor do dano, cuidando a responsabilidade civil, por força legal, de transferir o ônus oriundo da relação jurídica originária para a figura do autor do prejuízo. Tal responsabilidade tem, portanto, o aspecto de dupla função: a garantia do prejudicado em ter seu prejuízo transferido a outrem e a natureza de sanção civil na punição ao infrator e no desestímulo à prática de novos atos lesivos (2013, p. 23-25).
É importante ressaltar que responsabilidade difere de obrigação, pois, na verdade, tem um caráter suplementar e surge de uma prestação descumprida (LISBOA, 2013, p. 264). Para Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 47), a responsabilidade é uma obrigação derivada das consequências jurídicas de um fato, sendo denominada “dever jurídico sucessivo”. Nessa esteira, mais claro ainda é o ensinamento de Gonçalves:
Obrigação é sempre um dever jurídico originário; responsabilidade é um dever jurídico sucessivo, consequente à violação do primeiro. Se alguém se compromete a prestar serviços profissionais a outrem, assume uma obrigação, um dever jurídico originário. Se não cumprir a obrigação (deixar de prestar os serviços), violará o dever jurídico originário, surgindo daí a responsabilidade, o dever de compor o prejuízo causado pelo não cumprimento da obrigação (2012, p. 22).
Destarte, percebe-se que a responsabilidade surge apenas quando há um compromisso anterior firmado, seja por meio de um contrato estabelecido, seja por meio de uma lei vigente, por exemplo. Assim, se um particular, uma pessoa jurídica de direito privado ou uma pessoa jurídica de direito público possui uma obrigação a cumprir em determinada relação, mas não a cumpre, resta caracterizada sua responsabilidade diante de possíveis danos.
1.1. BREVE HISTÓRICO
Compreender atualmente a responsabilidade civil ou qualquer outro instituto jurídico clássico requer, necessariamente, uma análise sobre a sua evolução, ao longo do tempo, nas civilizações consideradas “berços da ciência jurídica”.
Desse modo, nos primórdios, a vingança caracterizou a primeira forma de repúdio aos comportamentos lesivos, e a autotutela imperava, sendo protegida até mesmo pelo ordenamento jurídico primitivo, a exemplo da Lei de Talião. Como assevera Lisboa (2013, p. 259), “tão somente a partir do momento em que se concebeu um poder central a regular as diferentes relações sociais é que se vislumbrou a mediação e a supressão da anarquia na solução do conflito”.
O que ocorria, então, segundo o mesmo autor, era a prática de vingança como uma justiça retributiva, ou seja, a prática de um dano como a reparação de outro (2013, p. 260). Apenas posteriormente houve a possibilidade de compensação pecuniária em restituição ao ofendido, caracterizando-se, dessa maneira, a responsabilidade civil no sentido atual (FARIAS; ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2014, p. 65).
Em uma fase posterior, avaliando-se que era inconveniente e insuficiente punir sem ressarcir o ofendido, surgiu, com os romanos, a ideia de composição, consubstanciada na Lex Aquilia de damno, que regulava o damnum injuria datum e impunha o ônus da reparação ao patrimônio do autor do dano, introduzindo a noção de culpa como fundamento da responsabilidade e estabelecendo, assim, as bases da responsabilidade extracontratual. O Estado passou a intervir nos conflitos de modo a estabelecer uma forma de indenização pecuniária do prejuízo, fixando o seu valor. Além disso, obrigou a vítima a aceitar a composição e a renunciar à vingança (DINIZ, 2013, p. 27).
Mais tarde, Gonçalves (2012, p. 27-28) afirma que foram estabelecidos, na França, com o Código de Napoleão, alguns princípios relativos à responsabilidade civil, como o direito à reparação sempre que houvesse culpa e a existência de uma culpa contratual, originando-se da imprudência ou da negligência. Logo, nesse Código, inseriu-se a noção da culpa in abstracto e a distinção entre culpa contratual e delitual. A responsabilidade civil passou a fundar-se na culpa, sendo inserida, com esse entendimento, na legislação de todo o mundo.
Com o advento da Revolução Industrial, a orientação doutrinária e jurisprudencial sobre o tema teve de ser alterada, pois apareceram novos meios de produção que dificultaram a avaliação da culpa no caso concreto, ficando difícil a comprovação de que os prejuízos suportados pela vítima eram oriundos da culpa do autor do ilícito. Nasceram, nesse período, as condições para o reconhecimento da responsabilidade do administrador pelo exercício de atividades de risco e pela simples ocorrência do fato danoso, independentemente de culpa ou dolo, isto é, surgiu, então, a responsabilidade objetiva (LISBOA, 2013, p. 262-263).
Observa-se, desse modo, segundo Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 56), a adoção dessas teorias nas legislações mais modernas, inclusive no Código Civil de 2002, sem desprezo completo, todavia, à tradicional teoria da culpa. Ratificando essa conclusão, Gonçalves (2012, p. 30-31) esclarece que, no direito brasileiro, convivem as responsabilidades subjetiva e objetiva. A primeira pode ser observada nos arts. 186. e 927 do Código Civil, de modo que, para que haja responsabilidade e obrigação de reparar o dano, faz-se necessária a prova de culpa. Em outra perspectiva, percebe-se a modalidade objetiva nos arts. 927, parágrafo único, 933, 936, 937, 938 e 1299, a qual prescinde da comprovação de culpa do agente causador do dano.
Finalizando esta etapa, pode-se afirmar que o conceito de responsabilidade surgiu, após um longo período de evolução humana, de uma necessidade real dos indivíduos de estabelecer a justiça e a ordem tão essenciais à saudável e harmoniosa convivência social.
1.2. PRESSUPOSTOS (ELEMENTOS)
A responsabilidade civil não se origina simplesmente da ocorrência de um fato. O direito à indenização somente pode concretizar-se quando verificados elementos ou pressupostos específicos, a saber: a conduta (comissiva ou omissiva), o dano e o nexo causal.
Antes de aprofundar a discussão sobre tais elementos, cabe ressaltar que a culpa não pode ser entendida como elemento da responsabilidade civil por faltar-lhe o caráter de generalidade, pois a responsabilidade objetiva prescinde de culpa, o que será mais bem explicado no tópico posterior.
Partindo para a análise da conduta, com base em Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 78), ela, que pode ser positiva (ação) ou negativa (omissão), desde que seja voluntária e gere algum dano ou prejuízo, constitui-se em elemento da responsabilidade civil.
O dever de reparar o dano a outrem nasce de uma conduta voluntária, que se exterioriza no Direito por meio de ação, violando um dever geral de abstenção fora do domínio contratual, ou por meio de omissão, sendo relevante juridicamente nos casos em que a prática de um ato impediria um resultado (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 24-25).
Seja na ação, seja na omissão, existem componentes físicos e psíquicos que fazem parte do comportamento. A vontade corresponde ao elemento subjetivo da conduta, significando controle ou domínio das atitudes positivas ou negativas, enquanto a consciência da conduta em si é o elemento objetivo (WALD; GIANCOLI, 2012, p. 79-81).
Nesse sentido, como núcleo fundamental, tem-se a liberdade de escolha do agente, o discernimento daquilo que se faz. A voluntariedade, então, não se liga à intenção de causar dano, mas sim à consciência do que se está fazendo.
Além da voluntariedade, extrai-se dos ensinamentos de Venosa (2013, p. 24) que a aferição da responsabilidade nasce, principalmente, de atos ilícitos voluntários cujo dever de indenizar surge da inobservância do dever de conduta resguardado em uma determinada norma jurídica.
Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 83) destacam a ilicitude, de modo geral, como aspecto necessário da ação humana voluntária. Como a responsabilidade civil apresenta a ideia de imputar as consequências danosas da conduta ao agente infrator, para que haja o dever de indenizar, é necessário que a atuação lesiva seja contrária ao direito.
Já em relação ao elemento dano, compreende-se que ele é característico da responsabilidade civil, diferenciando-a das outras modalidades de responsabilidade (administrativa e penal). A noção de dano está diretamente relacionada à noção de prejuízo, devendo ser, em regra, atual e, pelo menos, determinável (VENOSA, 2013, p. 38).
Segundo Wald e Giancoli (2012, p. 85-87), o dano requer a violação de um interesse de cunho patrimonial ou extrapatrimonial para o surgimento das funções ressarcitórias ou reparatórias da responsabilidade civil, podendo ser compreendido em uma perspectiva física ou jurídica. Fisicamente, representa uma modificação da situação favorável de alguém, enquanto, juridicamente, compreende a desobediência a uma norma.
Verifica-se, também, uma dimensão abstrata e concreta desse elemento. Na dimensão abstrata, o dano seria “a negação das bases apriorísticas do próprio ordenamento jurídico” (WALD; GIANCOLI, 2012, p. 86), ao passo que, na dimensão concreta, “o dano é a perda ou deterioração de um bem pertencente à pessoa ofendida, resulta de uma diferença, de uma diminuição de um status pessoal numa relação espaço-tempo” (WALD; GIANCOLI, 2012, p. 87).
Existem alguns requisitos para a caracterização do dano indenizável, como a violação de um interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de uma pessoa física ou jurídica, a certeza, pois apenas o dano certo e efetivo é indenizável, e, ainda, a subsistência, já que o dano deve subsistir no momento de sua exigibilidade em juízo (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 91).
Para Stoco (2013, p. 387), além da lesão na esfera econômica do indivíduo, é fundamental que haja ofensa a um bem jurídico protegido por um sistema normativo. Nesse contexto, conclui-se que o dano pode ser subdividido em dano material ou em dano moral.
O dano material, conforme ensina Cavalieri Filho (2012, p. 78), compreende o conjunto das relações jurídicas de uma pessoa apreciáveis economicamente, podendo atingir o patrimônio presente e o futuro. Já o dano moral, segundo o referido autor, tem um conceito extraído do princípio da dignidade da pessoa humana, presente na Constituição Federal de 1988, que é considerado o pilar dos direitos de personalidade.
Em sentido estrito, o dano moral representa, portanto, a violação do direito à dignidade e, em sentido amplo, a violação dos direitos de personalidade como um todo. Por ser um direito imaterial, que é insuscetível de avaliação pecuniária, a obrigação pecuniária imposta ao causador do dano revela-se mais como uma compensação do que como uma indenização propriamente dita (2012, p. 88-91).
Quanto ao último elemento, considerado igualmente elemento da responsabilidade civil, o nexo causal se refere ao liame que vincula a atividade do ofensor ao prejuízo causado, de forma que, sem aquela atividade, não se teria provocado o resultado. Diz respeito ao elo existente entre a conduta e o prejuízo, ligando um ao outro.
Nesse cenário teórico, são importantes, para a elucidação do nexo causal, as palavras de Farias, Rosenvald e Braga Netto:
[...] Não é a culpabilidade que determina a medida da responsabilidade, mas a causalidade. Com efeito, antes de se determinar se o agente é imputável (discernimento), conduziu-se de forma antijurídica (liberdade) e com ofensa a um dever de cuidado (intenção), faz-se necessário averiguar a configuração do nexo causal entre o seu agir e os danos por ele porventura causados (2014, p. 458).
Enfim, o conceito de nexo causal estabelece um vínculo entre determinado comportamento e um evento, o que permite avaliar se a ação ou a omissão do agente foi ou não a causa do dano e se o resultado surge como consequência natural da voluntária conduta do agente.
1.3. CLASSIFICAÇÃO (ESPÉCIES)
Dentro da esfera de caráter moral, perpassando as noções de responsabilidade e de reparação, consideram-se questões relacionadas à culpa e ao dolo. Em relação a isso, cabe ressaltar que, na doutrina, diversos estudiosos optaram por uma classificação sistemática que abrange espécies de responsabilidade civil, a saber: responsabilidade civil direta, responsabilidade civil indireta, responsabilidade civil subjetiva, responsabilidade civil objetiva, responsabilidade civil contratual ou negocial e responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana.
Iniciando os estudos sobre a classificação da responsabilidade civil, a responsabilidade civil direta ou por fato próprio é aquela decorrente de ato praticado pelo mesmo indivíduo responsável pela reparação do dano, enquanto a responsabilidade civil indireta resulta de um vínculo jurídico envolvendo o dever de guarda, vigilância ou custódia que liga o autor do ato ilícito à pessoa legalmente incumbida pelo ressarcimento de outrem (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 204-205).
Mais especificamente, nas palavras de Diniz (2013, p. 566), a responsabilidade indireta ou complexa pode exteriorizar-se a partir de fato de terceiro, de fato de coisa ou de fato de animal, conforme reza o artigo 932 do Código Civil:
Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;
II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;
III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;
IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;
V - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.
Quanto às outras espécies, Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 57) afirmam que a responsabilidade civil subjetiva decorre de dano causado em função de ato doloso ou culposo e que a culpa se caracteriza quando o agente causador do prejuízo for negligente ou imprudente, conforme a redação do art. 186. do Código Civil de 2002: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Ainda sobre essa espécie, a qual “depende da análise de elementos da conduta do sujeito no momento da prática do ato ilícito” (ASSIS NETO; JESUS; MELO, 2013, p. 798), Wald e Giancoli (2012, p.172) afirmam que a responsabilidade subjetiva fundamentada na culpa é considerada a regra geral no direito brasileiro e possui como base, além do já citado art. 186. do Código Civil, o art. 927. do mesmo Código: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186. e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
Surgida da desnecessidade do exame de culpa, visto que provar a culpa, em alguns casos, para a vítima, seria muito difícil, a responsabilidade civil objetiva, segundo Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 58-59), trata como irrelevantes juridicamente o dolo e a culpa, sendo somente necessária, para a obrigatoriedade de indenizar, a existência de nexo de causalidade entre o prejuízo e a conduta do agente responsável.
Tal percepção pode ser notada no parágrafo único do art. 927. do Código Civil, segundo o qual “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem”.
A partir desse dispositivo, de acordo com Assis Neto, Jesus e Melo (2013, p. 798), há uma substituição da culpa pelo risco sempre que este for verificado ou determinado por lei. Percebe-se, então, a partir das contribuições dos autores citados, que, por lógica, a culpa não pode ser considerada pressuposto ou elemento da responsabilidade civil.
Já a responsabilidade civil contratual e a civil extracontratual basicamente se distinguem por meio do descumprimento obrigacional de norma anteriormente fixada ou da não observação de um preceito normativo que regula a vida, como pontua Tartuce (2014, p. 223), devendo a vítima, no caso da responsabilidade aquiliana, sempre provar a culpa do agente causador do dano.
Wald e Giancoli (2012, p. 167-168) enfatizam que, nos dois casos, há um dever jurídico preexistente, “uma relação jurídica criada pela vontade das partes” (ASSIS NETO; JESUS; MELO, 2013, p. 798), já que o surgimento da responsabilidade civil exige a violação de direito. A diferença entre essas duas espécies, para os dois autores, reside na origem desse dever. Assim, a responsabilidade contratual estabelece uma relação jurídica obrigacional – fruto de um negócio jurídico – entre o agente responsável e a vítima, e o dever de indenizar é gerado a partir da violação dos deveres decorrentes desse negócio.
Diferentemente, por não haver nenhuma relação jurídica preestabelecida entre o agente causador do dano e a vítima, a responsabilidade extracontratual exige a violação de norma própria (WALD; GIANCOLI, 2012, p. 168). Com base em Assis Neto, Jesus e Melo (2013, p. 798), embora não haja uma norma estatal que crie vínculo entre os cidadãos, há uma relação jurídica genérica de observância do conteúdo de leis.
Desse modo, tal responsabilidade resulta da prática de um ilícito que, em maior ou menor intensidade, viola a integridade das esferas jurídicas individuais legalmente garantidas.
1.4. EXCLUDENTES
Como explicado anteriormente, no direito brasileiro, o dever de indenizar surge necessariamente quando verificados o dano, a conduta e o nexo causal. Ocorre que, em determinados casos, o agente da conduta delituosa fica isento de arcar com o ônus decorrente dos danos sofridos pela vítima, tendo, como fundamento, as chamadas excludentes de responsabilidade civil, que são a legítima defesa, o estado de necessidade, o exercício regular de direito e o estrito cumprimento do dever legal, o caso fortuito e força maior, a culpa exclusiva da vítima, o fato de terceiro e a cláusula de não indenizar.
No que tange à primeira excludente, a legítima defesa é corolário do direito à segurança, ou seja, é resultado deste. Nesse ínterim, é assegurada a proteção jurídica a toda pessoa que, sob ameaça, deseja segurança a seus bens e a si própria. Em face de uma injusta agressão, a legítima defesa projeta-se como forma excepcional de tutela, não sendo antijurídico o ato perpetrado nesse sentido. O exercício desse direito, no entanto, deve ocorrer dentro de certos limites, observando-se, necessariamente, a razoabilidade e a proporcionalidade, além de ser executado apenas contra o agressor, não atingindo terceiros (FARIAS; ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2014, p. 197-198).
Desse modo, como leciona Venosa:
A legítima defesa constitui justificativa para a conduta. O conceito é o mesmo do Direito Penal. A sociedade organizada não admite a justiça de mão própria, mas reconhece situações nas quais o indivíduo pode usar dos meios necessários para repelir agressão injusta, atual ou iminente, contra si ou contra as pessoas caras ou contra seus bens. A doutrina sempre enfatizou que os meios de repulsa devem ser moderados. Nessa premissa, quem age em legítima defesa não pratica ato ilícito, não havendo dever de indenizar, na forma do art.188, I (2013, p. 62).
Já o estado de necessidade, de acordo com Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 172), trata da situação de agressão a um direito alheio, de valor jurídico igual ou inferior àquele que se pretende proteger, com o fito de evitar perigo iminente, quando existem circunstâncias que impedem outra forma de atuação. Há, então, uma “colisão de interesses jurídicos tutelados” (2012, p. 172) ou, ainda, “um conflito entre titulares de interesses lícitos, legítimos” (WALD; GIANCOLI, 2012, p. 306).
Apesar da necessidade de atuar dado o perigo inevitável, o agente causador de dano não fica isento de responsabilidade caso exceda os estritos limites de sua necessidade (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 172). Sobre isso, Gonçalves (2014, p. 517) afirma que, mesmo que o ato praticado não seja considerado ilícito com base em lei, o autor do prejuízo é obrigado a repará-lo.
Por fim, é válido afirmar que, na doutrina, há um consenso acerca dessa excludente. Autores como Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 171-172), Gonçalves (2012, p. 517, 2014, p. 636), Venosa (2013, p. 62) e Tartuce (2014, p. 408) veem, no inciso II do art. 188. do Código Civil, a previsão legal para o estado de necessidade:
Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo eminente.
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.
Quanto ao exercício regular de direito, o art. 188, inciso I, do Código Civil preconiza não haver ilicitude quando o ato é praticado no exercício regular de um direito reconhecido “segundo os padrões de razoabilidade social, à luz das legítimas expectativas sociais” (FARIAS; ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2014, p. 204-205).
A extrapolação dos limites racionais da prática de um direito caracteriza o abuso de direito, que é condenado pela ordem jurídica, sendo o inverso de seu exercício regular. O Código Civil trata desse tema de forma expressa no art. 187, relacionado ao abuso de direito: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Extrai-se desse dispositivo, então, não ser imprescindível a intenção do agente de querer prejudicar terceiro, bastando, para isso, o excesso da manifestação no que diz respeito aos limites impostos pela finalidade econômica ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 176-178).
Por fim, deve haver a presença do elemento subjetivo na tipificação do exercício regular de direito como excludente da responsabilidade civil, devendo o sujeito ter conhecimento de que realiza o ato por imposição legal (WALD; GIANCOLI, 2012, p. 307).
Já o estrito cumprimento do dever legal, seguindo os ensinamentos de Wald e Giancoli (2012, p. 307-308), refere-se à observância de um dever jurídico legalmente preestabelecido, podendo haver responsabilização do sujeito que atuar com excesso ou abuso de poder ou de autoridade e ultrapassar os limites fixados. Ressalta-se que, como regra, não se aplica essa excludente à responsabilidade civil do Estado, sendo aplicável apenas à responsabilidade subjetiva.
Conforme Farias, Rosenvald e Braga Netto (2014, p. 205-206), quem cumpre um dever imposto por lei não pode ser castigado, podendo ser a conduta, em estrito cumprimento de dever legal, realizada por agente público – regra geral – ou por particular. Não se pode admitir, no entanto, que essa excludente seja utilizada para o cometimento de abusos e arbitrariedades.
Em relação ao caso fortuito e à força maior, tomando de empréstimo as palavras de Assis Neto, Jesus e Melo (2013, p. 835), a lei entende como sinônimos os conceitos de caso fortuito e força maior, e isso é tópico já comentado por outros doutrinadores, a exemplo de Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 180-182). Tal fato se dá por, como afirmam Venosa (2013, p. 57-58) e Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 180-181), essa equivalência ter sido admitida pelo Código Civil de 1916 (art. 1058, parágrafo único) e mantida pelo Código Civil de 2002 em seu art. 393:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou de força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
De modo geral, contrapondo-se à sinonímia apresentada em lei, Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 182) e Gonçalves (2012, p. 533, 2014, p. 656) diferenciam os dois conceitos. Para esses autores, a força maior refere-se a ações oriundas de forças da natureza, como raios, inundações, terremotos, enquanto o caso fortuito diz respeito a fato ou ato alheio à vontade das partes, como greve, motim, assalto.
Finalizando os comentários acerca dessa excludente, cabe ressaltar que tanto Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 182) quanto Wald e Giancoli (2012, p. 308) destacam o caráter inevitável da força maior, bem como o cunho imprevisível do caso fortuito.
Sob diferente viés, a responsabilidade do agente é excluída também nos casos em que a culpa se torna exclusiva da vítima. Citando Venosa (2013, p. 56) e Farias, Rosenvald e Braga Netto (2014, p. 476), o nexo causal deixa de ocorrer ou, nas palavras de Gonçalves (2012, p. 523, 2014, p. 643), a relação de causa e efeito entre o ato do agente e o prejuízo sofrido pela vítima deixa de existir quando a vítima se coloca em condições de sofrer algum dano. Nessa perspectiva, como afirma Gonçalves (2012, p. 523, 2014, p. 643), o agente causador não passa de um instrumento do acidente.
Semelhantemente ao que ocorre no caso de culpa exclusiva da vítima, outra causa que exclui do agente a responsabilidade é o fato de terceiro, o qual, para Wald e Giancoli (2012, p. 310), “interrompe o curso causal que unia o agente ao dano”. Nesse sentido, como afirma Venosa (2013, p. 66), a questão é estabelecer se um terceiro livra o causador do dano da obrigação de indenizar, ou seja, “se o comportamento de um terceiro – que não seja o agente do dano ou a vítima – rompe o nexo causal, excluindo a responsabilidade civil” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 186).
O agente, nessa excludente, não exerce comportamento voluntário, sendo mero instrumento da atuação de terceiro (FARIAS; ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2014, p. 482). Logo, para Farias, Rosenvald e Braga Netto (2014, p. 482), somente há excludente de causalidade se o fato de terceiro for considerado causa única de explicação dos danos e refletir comportamento estranho ao aparente agente responsável.
Encerrando a apresentação das excludentes, Gonçalves (2012, p. 536) conceitua a cláusula de não indenizar como “o acordo de vontades que objetiva afastar as consequências da inexecução ou da execução inadequada do contrato”. Os riscos do negócio jurídico são transferidos, nesse caso, para a vítima.
Alguns requisitos devem ser verificados para que esse tipo de cláusula seja válido, como a bilateralidade de consentimento, a não colisão com preceito de ordem pública, a igualdade de posição das partes, a inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do estipulante e a ausência da intenção de afastar obrigação inerente à função (GONÇALVES, 2012, p. 536-539). Já para Assis Neto, Jesus e Melo (2013, p. 836-837), essa cláusula é válida se não atingir o núcleo da prestação contratada e não configurar hipótese de desequilíbrio na relação contratual e se não houver legislação contrária.
Por fim, é possível afirmar que as excludentes abordadas se revestem de extrema importância durante a análise e o julgamento de casos concretos, pois são capazes de descaracterizar a responsabilização e impedir a total ou parcial reparação de danos.
1.5. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Até o momento, a discussão aqui desenvolvida se voltou para a responsabilidade civil como um todo, abordando aspectos mais genéricos. Considerando os objetivos propostos, evidencia-se a necessidade de um afunilamento do tema, perpassando questões acerca da posição do Estado diante de situações que envolvem o Poder Público e o cidadão.
Desse modo, pensando na relação entre Estado e particular, para Tartuce (2014, p. 345-349), a responsabilidade objetiva recaiu sobre o Poder Público, uma vez que, devido à amplitude de sua atuação diante dos cidadãos, a prestação de serviços públicos pode criar riscos de eventuais prejuízos. O mesmo autor prossegue afirmando que tal condição representa um aspecto material do acesso à justiça, visto que existe uma conjuntura de desequilíbrio nas situações que abarcam Estado e cidadão, culminando em uma possível derrota do particular nas querelas judiciais contra o Poder Público.
É nesse cenário de instabilidade que a responsabilidade civil do Estado se alicerça, tendo como fundamento o §6º do art. 37 da Constituição Federal de 1988, in verbis:
As pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Já o art. 43 do Código Civil de 2002, de modo análogo, estabelece que:
As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos de seus agentes que, nessa qualidade, causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.
Também matéria de Direito Constitucional e de Direito Administrativo, a responsabilidade civil estatal é tratada, em maior extensão, no Título IX do referido Código, no entanto sua condição atual nem sempre existiu. Essa forma de responsabilidade passou por um processo de evolução e consagração, o que pode ser conferido na doutrina especializada sobre o tema.
Nesse tocante, posicionamentos doutrinários estabelecem um percurso que vai desde a irresponsabilidade absoluta até a objetivação dessa responsabilidade com destaque em teorias diversas. De modo breve, por o enfoque principal não ser a caracterização dessas teorias, inicialmente a teoria da irresponsabilidade partiu do pressuposto de que o Estado era absoluto e soberano, não admitindo a possibilidade de reparação decorrente de eventuais danos causados pela Administração (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 275-276).
Assim, nas palavras de Gonçalves (2014, p. 173), havia, nos primórdios, o princípio da irresponsabilidade absoluta do Estado, baseado na máxima The king can do no wrong 2. Os cidadãos apenas podiam mover ação contra funcionário causador do dano, já que havia uma separação entre funcionário e Estado, o qual se mantinha distante do problema (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 253).
Com a ruína do absolutismo e a influência do liberalismo, a condição estatal embasada na imunidade total passou a ser substituída pela possibilidade de responsabilização civil do Estado, fato que deu origem às teorias subjetivistas, as quais envolviam a comprovação da existência do elemento anímico. Nesse contexto, a teoria subjetivista da culpa civilística, segundo Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 277), calcava-se nas ações de agentes públicos que causavam prejuízo a terceiros. O Código Civil de 1916, dessa forma, passou a admitir a responsabilidade direta do Estado, não havendo prejuízo do direito de regresso contra o agente público (STOCO, 2013, p. 58), e essa fase era “fundada na culpa” (FARIAS; ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2014, p. 676), no chamado elemento subjetivo.
Considerando a dificuldade de se comprovar a existência do elemento anímico na atuação do Estado, a teoria da culpa civilista foi sendo abandonada, dando espaço à teoria da culpa administrativa. Essa segunda teoria, conhecida, nas palavras de Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 278), como teoria da culpa administrativa ou do acidente administrativo, encarava o agente público como parte da própria Administração, um instrumento dela, que, se causasse dano, o fazia em nome do Poder Público.
Apesar de já admitir uma “justa composição de danos” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 279), essa teoria se tornava insatisfatória perante a impossibilidade de identificação individual do agente danoso. Diante disso, a teoria da culpa anônima surgiu como a possibilidade de responsabilização do Estado, independentemente do reconhecimento do funcionário público, bastando apenas a prova de que determinada lesão decorreu de atividade pública (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 279).
Invertendo a ótica, surgiu a teoria da falta administrativa, a qual, descartando a necessidade de se investigar o elemento subjetivo do agente estatal, introduziu a ideia de que a culpa da Administração já se estabelecia pela simples ausência de determinado serviço público (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 280). Nesse viés, Di Pietro (1998, p. 411) considera a culpa do Estado em três situações específicas: não funcionamento do serviço público (inexistência), funcionamento atrasado (retardamento) e mau funcionamento.
Ainda sobre as teorias subjetivistas, é possível notar uma dissonância entre os autores. Por exemplo, Stoco (2013, p. 59) é econômico ao citar que, após a teoria civilista, houve a teoria da culpa administrativa como primeiro estágio entre as teorias subjetivistas e objetivistas. Para o autor, tal teoria levava em consideração a falta do serviço como pressuposto para a responsabilidade da Administração.
Já na visão de Cavalieri Filho (2012, p. 254-255), seguindo a concepção civilista, a teoria do órgão passou a tratar o Estado como um organismo vivo representado por seus agentes, os quais, dotados de individualidade fisiopsíquica, atuavam nos órgãos administrativos. Portanto, a relação entre a ação do Estado e dos seus agentes era de imputação direta. Além disso, o mesmo autor destaca a evolução da culpa individual para a culpa anônima ou impessoal, passando-se a falar em culpa do serviço ou falta do serviço, devendo o Estado indenizar independentemente da falta do servidor.
Mudando de perspectiva, surgiram as teorias objetivistas, que não desprezaram totalmente a relação entre a culpa e o dever de indenizar. Entre essas teorias, destacam-se, na doutrina, a do risco integral e a do risco administrativo. A primeira desprezava a existência de quaisquer excludentes de responsabilidade, justificando o dever da Administração Pública de indenizar até mesmo quando não existia o nexo causal (VENOSA, 2013, p. 17), bastando a ocorrência de lesão causada ao particular por ato administrativo (STOCO, 2013, p. 59).
A segunda teoria, para Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 281), referia-se à obrigação de indenizar pelo dano em virtude da simples ocorrência do fato lesivo, havendo ou não a falta do serviço ou a culpa do agente. Era preciso verificar, no entanto, como ressalta Cavalieri Filho (2012, p. 257), a existência da relação de causalidade entre o ato cometido pela Administração e o dano sofrido pelo administrado.
Diferentemente da teoria do risco integral, havia possibilidades, na teoria do risco administrativo, de a responsabilidade do Estado ser atenuada ou excluída, caso fosse provada a culpa total ou parcial da vítima. Nesse sentido, Meirelles (1998, p. 539) pontua que:
Para obter a indenização basta que o lesado acione a Fazenda Pública e demonstre o nexo causal entre o fato lesivo (comissivo ou omissivo) e o dano, bem como seu montante. Comprovados esses dois elementos, surge naturalmente a obrigação de indenizar. Para eximir-se dessa obrigação incumbirá à Fazenda Pública comprovar que a vítima concorreu com culpa ou dolo para o evento danoso. Enquanto não evidenciar a culpabilidade da vítima, subsiste a responsabilidade objetiva da Administração. Se total a culpa da vítima, fica excluída a responsabilidade da Fazenda Pública; se parcial, reparte-se o quantum da indenização.
Para considerável parte da doutrina, essa última teoria foi adotada pela Constituição Federal de 1988, de modo a ser essencialmente objetiva a responsabilidade civil do Estado por prescindir da ideia de culpa como pressuposto de indenização (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p. 284). Destarte, se constatada a culpa da vítima, a pretensão reparatória extingue-se em decorrência da quebra do nexo de causalidade e não em decorrência da ausência de elemento subjetivo (2012, p. 284).
Nesse cenário teórico, é pertinente ressaltar a posição de Bandeira de Mello (2010, p. 1030-1033). Para esse autor, por meio do comportamento comissivo, os danos são causados pelo Estado, sendo a causa o evento que produz certo resultado, pensamento construído com apoio no art. 37, §6º, da Carta Magna, o qual estabelece que o Estado responde pelos danos causados a terceiros por seus agentes. Em contrapartida, por meio do comportamento omissivo, os danos são causados pelo Estado, mas por evento alheio a ele. A omissão, na verdade, é condição do dano, propiciando a sua ocorrência.
Ainda nessa linha de pensamento, Bandeira de Mello (2010, p. 1030-1033) reconhece que dano por comportamento comissivo recai na responsabilidade civil do Estado considerada objetiva, enquanto dano por comportamento omissivo recai na responsabilidade civil do Estado considerada subjetiva.
É imprescindível também apresentar a relação entre a responsabilidade civil do Estado e as responsabilidades direta e indireta. Nessa perspectiva, parece mais adequado afirmar que a responsabilização do Poder Público deve ser direta, especialmente considerando o princípio da impessoalidade, expresso no caput 3 do art. 37. da Constituição, de modo que, quando algum agente pratica um ato danoso (ou deixa de praticá-lo), quem o faz é a própria Administração Pública, à qual ele pertence.
Sobre isso, Diniz (2013, p. 681) ressalta que o Estado, enquanto pessoa jurídica, não possui vontade nem ação próprias, manifestando-se, logicamente, por meio de pessoas naturais revestidas na qualidade de seus agentes. Tais agentes, altas autoridades a modestos trabalhadores, atuam pelo aparelho estatal, tomando decisões ou realizando atividades da alçada da Administração Pública. Existe, nessa situação, uma relação de imputação direta dos atos desses indivíduos ao Estado, sendo tal relação orgânica.
Desse modo, não se pode dizer que um ato praticado por agente público seria de terceiro, não cabendo, em casos de ação ou omissão, falar-se em dever de guarda, vigilância ou custódia, como ocorre com responsáveis por crianças menores e donos de animais, que liga o causador do ato ilícito à pessoa legalmente incumbida do ressarcimento dos prejuízos. Nesse ínterim, é pertinente destacar que tanto o §6º do art. 37. da Constituição quanto o art. 43. do Código Civil, supracitados, fazem menção a terceiros não como os agentes causadores de danos, já que eles pertencem ao Estado, mas como as próprias vítimas.
Por fim, percebe-se que a responsabilidade civil do Estado incide sobre aspectos diversos da vida em sociedade, merecendo especial atenção por adentrar questões mais complexas de cunho moral e jurídico, nas situações cotidianas que envolvem a relação entre indivíduo e Poder Público, como os eventos esportivos futebolísticos, que são regulados pelo Estatuto de Defesa do Torcedor, o que será mais bem explorado no capítulo posterior, que tratará da referida Lei e da sua associação com a responsabilidade civil estatal.