IV. POSSIBILIDADE DO C.F.M. PODER ALTERAR A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE
O Conselho Federal de Medicina (CFM) ampara-se no disposto no § 1º do art. 37 do CEM para regulamentar a telemedicina. Eis o que este paragrafo dispõe:
Art. 37.-(...)
§ 1º O atendimento médico a distância, nos moldes da telemedicina ou de outro método, dar-se-á sob regulamentação do Conselho Federal de Medicina.
Com esse dispositivo, pretende-se dar sustento a ampliar o escopo da exceção criada pelo caput do art. 37 do CEM, que apenas permite a consulta remota sem exame direto e presencial do paciente em caráter de urgência e emergência, criando as teleconsultas e telecirurgias eletivas.
Entretanto, com base no “PRINCÍPIO DO MÁXIMO ZELO” consubstanciado no art. 2º da Lei Federal nº 3.268/1957, art. 2º da Lei 12.842/2103 e II Princípio Fundamental do atual Código de Ética Médica; o caput do artigo 37 desse mesmo Código de Ética Médica tornar-se-ia uma regra que não admitiria exceções além da criada pelo próprio caput do artigo.
Nesse escopo, qualquer Resolução que venha a cumprir o disposto no parágrafo 1º do supracitado artigo 37, regulamentando a telemedicina, poderá apenas definir a teleconsulta nos exatos termos da exceção criada pelo caput do art. 37 do CEM, esclarecendo conceitos como os de urgência e emergência e ainda questões logísticas e operacionais. Poderá ainda fixar outras modalidades de telemedicina (teleradiologia, teleinterconsulta, teleconferência, etc.), que não atropelem sob qualquer modalidade o modelo de relação médico-paciente humanizada presencial e com exame direto.
Veja-se o que a “DECLARAÇÃO DE TEL AVIV SOBRE RESPONSABILIDADES E NORMAS ÉTICAS NA UTILIZAÇÃO DA TELEMEDICINA (Adotada pela 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial em Tel Aviv, Israel, outubro de 1999) citada como um dos fundamentos da regulamentação, tece uma serie de orientações e recomendações das quais podem se destacar:
3. A Associação Médica Mundial reconhece que, a despeito das consequências positivas da Telemedicina, existem muitos problemas éticos e legais que se apresentam com sua utilização. Em especial, ao eliminar uma consulta em um lugar comum e o intercâmbio pessoal, a Telemedicina altera alguns princípios tradicionais que regulam a relação médico-paciente. Portanto, há certas normas e princípios éticos que devem aplicar os médicos que utilizam a Telemedicina.
(...)
5. A possibilidade de que os médicos utilizem a Telemedicina depende do acesso à tecnologia e este não é o mesmo em todas as partes do mundo.
(...)
5.1 - Uma interação entre o médico e o paciente geograficamente isolado ou que se encontre em um meio que não tem acesso a um médico local. Chamada às vezes teleassistência, este tipo está em geral restrito a circunstâncias muito específicas (por exemplo, emergências).
5.3 - Uma interação onde o paciente consulta diretamente o médico, utilizando qualquer forma de telecomunicação, incluindo a Internet. A teleconsulta ou consulta em conexão direta, onde não há uma presente relação médico-paciente nem exames clínicos, e onde não há um segundo médico no mesmo lugar, cria certos riscos. Por exemplo, incerteza relativa à confiança, confidencialidade e segurança da informação intercambiada, assim como a identidade e credenciais do médico.
7. A Telemedicina não deve afetar adversamente a relação individual médico-paciente. Quando é utilizada de maneira correta, a Telemedicina tem o potencial de melhorar esta relação através de mais oportunidades para comunicar-se e um acesso mais fácil de ambas as partes. Como em todos os campos da Medicina, a relação médico-paciente deve basear-se no respeito mútuo, na independência de opinião do médico, na autonomia do paciente e na confidencialidade profissional. É essencial que o médico e o paciente possam se identificar com confiança quando se utiliza a Telemedicina.
Estas orientações e recomendações já foram objeto de apreciação por parte do CFM em Parecer nº 36/2002, da lavra do ilustre Cons. Roberto Luiz d’Ávila, cuja ementa assim está redigida:
O documento “Responsabilidades e Normas Éticas na Utilização da Telemedicina”, aprovado em assembleia da Associação Médica Mundial, deve ser adaptado à realidade nacional mediante resolução em definitivo. Além disso, toda empresa voltada para atividades na área da Telemedicina deverá inscrever-se no Cadastro de Pessoa Jurídica do Conselho Regional de Medicina, com indicação de seu respectivo responsável técnico.
Resta claro que as recomendações emanadas da Declaração de Tel Aviv, esclarecem inequivocamente que a teleconsulta ou consulta em conexão direta, onde não há uma presente relação médico-paciente nem exames clínicos, e onde não há um segundo médico no mesmo lugar, altera alguns princípios tradicionais que regulam a relação médico-paciente e cria certos riscos, o que fere frontalmente a legislação ética em vigor que sustenta o princípio do máximo zelo e a boa prática médica, e a própria CF cujo art. 196 exige garantia de redução - e não aumento de riscos - nas políticas de saúde.
Nesse escopo, o CFM não poderia criar modalidades de telemedicina que aumentem os riscos de agravo à saúde.
V. A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE E A TECNOLOGIA
Vivemos tempos de grande avanço na telecomunicação e na inteligência artificial. Sistemas informatizados e a robótica vão ocupando espaço em todas as áreas e, muito embora tragam uma melhora no atendimento à população, o seu uso desmedido e mal direcionado, infelizmente vem gerando distanciamento entre seres humanos.
O campo da medicina lamentavelmente não escapa a essa tendência. Inquestionável que a telemedicina como parte desse avanço tecnológico trouxe modernização e aprimoramento neste campo, auxiliando o médico na realização de um diagnóstico e tratamento mais acurado, cumprindo seu dever de aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade como estabelece o III Princípio Fundamental do nosso Código de Ética Médica.
Entretanto, hoje vemos como o atendimento humano presencial com exame direto do paciente, baseado em técnicas clássicas e consagradas de semiologia médica, como inspeção, palpação, ausculta e percussão, vem sendo equivocadamente substituído pelo uso excessivo de exames laboratoriais e de imagem e, hodiernamente, até pelo uso excessivo da telemedicina através da denominada consulta à distância, sem exame presencial e direto do paciente (teleconsulta), conduzindo a uma progressiva desumanização do atendimento médico e da relação médico-paciente.
Já em 1993, o ilustre médico cardiologista José Eberienos Assad, na sua conhecida obra titulada “Relação Médico-Paciente no Final do Século XX” manifestava:
“Contudo, é neste século que surgem alguns complicadores da relação médico-paciente, entre eles a tecnologia, a superespecialização, a interposição institucional e o papel dos meios de comunicação. A tecnologia tirou o médico da cabeceira de seu paciente, fazendo com que a mão que sentia, tocava, percutia e acariciava fosse substituída por visores luminosos e sonoros, por aparelhagem cada vez mais sofisticada. O calor humano do profissional, várias vezes, tornou-se mais distante, e a cibernética desprezou o contato mais íntimo e carinhoso do médico. (...). Havemos de volitar que o desenvolvimento tecnológico e científico seja colocado à disposição da saúde do homem e que tenha como consectário imediato e direto seu bem-estar e melhoria de sua qualidade de vida. O que não podemos aceitar é que este avanço sirva para afastar o médico de seu paciente e vice-versa. (...). Não há computador, não existe software, não se dispõe de hardware capaz de substituir o médico, que desfila atenção, que abastece seu paciente de esperança, que dá seu carinho e seu consolo, porque esta é uma profissão que cura algumas vezes, salva outras, mas consola sempre, tornando-a sem dúvida incomparável, porque todo o paciente tem no médico a escora em que se apela para superar suas dificuldades. Evidentemente que não se pode desprezar os benefícios que os científicos e tecnológicos trouxeram à ciência médica, mas também não podemos negar que eles tornaram o médico mais afastado do seu paciente”[14].
Na opinião do coloproctologista e curador do Centro de Memória da Faculdade Ciências Médicas Geraldo Magela Gomes da Cruz, autor do livro “Câncer no reto: meu paciente e eu”, quando perguntado se as redes sociais podem ajudar na humanização do atendimento médico, assim ele responde:
“Nunca! As redes sociais podem é facilitar, tornar o atendimento não presencial mais rápido, substituir a relação direta médico-paciente. Mas, não melhorar e humanizar. Humanizar inclui estar presente, é o paciente sentir a mão do médico em seu ombro, sentir o apoio. Todos os sentidos têm que estar envolvidos na presença do paciente: o olhar, a escuta o contato físico. Até os jeitos e trejeitos do paciente podem ser úteis na relação médico-paciente. A relação médico-paciente é um ato de amor: não pode ser virtual. Tem que ser presencial. Um vídeo, um áudio ou mensagens do google não podem substituir a presença dos dois”[15].
Daniel Chaves, médico clínico e titular da disciplina de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional da Patagônia, San Juan Bosco, referência em questões como o vínculo médico-paciente, morte digna, medicina e religião, lamenta a mercantilização da medicina e, nesse contexto, observa a crise na relação entre profissionais da saúde e usuários dos serviços na era tecnológica. Ele pondera que:
“a relação médico-paciente é uma relação humana que, como tal, está sujeita a mudanças históricas. Nos últimos 30 anos, com o avanço tecnológico, há uma ruptura dos laços sociais que também afeta a relação médico-paciente. A partir da tecnologia surgiu o chamado "modelo médico hegemônico". Este modelo, que havia aparecido nos países desenvolvidos, se globalizou e chegou a todos nós. Em muitos aspectos, a tecnologia médica significou um grande avanço para a humanidade: o prolongamento da vida, novas formas de nascimento, melhoria na qualidade de vida relacionada à saúde, etc. Ao mesmo tempo, a tecnologia médica afastou o médico do paciente e da sua subjetividade. Como resultado, cada vez examina-se menos, observa-se menos, pergunta-se menos e o tempo, por diversas razões, econômicas, entre outras, fica limitado. Algumas das características deste modelo são a indução ao consumo, o mercantilismo, o individualismo e a falta de solidariedade. O império das imagens e a deterioração de escuta e da palavra, que afetam todos os vínculos, são especialmente notáveis na medicina. Vemos ressonâncias, mas não dialogamos com os nossos pacientes; que, por sua vez, comparecem a consultas solicitando exames muitas vezes inúteis e fármacos de indicação duvidosa. A medicina se mercantilizou. A sociedade se medicalizou. Medicam-se emoções; medica-se a dor. Criaram-se novas doenças que favoreceram a farmacologização indevida. Ao mesmo tempo, já não são os médicos que guiam os rumos da medicina, mas os administradores, gerentes, que lideram empresas médicas e as instituições. É claro que a tecnologia arrasou com a relação médico-paciente. No entanto, os métodos complementares de diagnóstico são isso: métodos complementares. A conversa, a escuta, a análise, são insubstituíveis”[16].