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Investigar, acusar e julgar: por um necessário reequilíbrio de forças

Agenda 19/03/2019 às 14:05

Quando há uma clara separação das funções investigativa, acusatória e julgadora, o sistema de justiça fica menos frágil, pois as três instâncias trabalham como revisoras umas das outras.

Vivemos tempos difíceis! O processo civilizatório tupiniquim, em pleno século XXI, ainda estrebucha no efeito pendular, buscando compreender os limites institucionais de cada órgão no sistema persecutório penal.

 Assistimos, pasmos, um embate entre o Judiciário e o MP. Isso mesmo. Judiciário e Ministério Público buscam fixar, “na base da cotovelada”, as suas atribuições. Nessa semana, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli, determinou[1] a instauração de investigação criminal para apuração de fake new sobre a corte e seus integrantes.

Espantosamente, a Procuradoria Geral da República questionou essa iniciativa. Indagou-se sobre a competência do órgão julgador em imiscuir-se na investigação e, portanto, concentrar na mesma pessoa funções distintas, ou seja, aquele que deveria ser imparcial, passaria a contaminar-se com a investigação.

Veja bem a manifestação do procurador Bruno Calabrich, que já atuou na Lava Jato na Procuradoria-Geral da República, sobre a celeuma:

Quem julga não pode investigar. Quem investiga é Ministério Público, é polícia. Aquele que julga é aquele que vai fazer o controle da legalidade da investigação. É que vai identificar eventuais excessos, eventuais abusos. Nesse caso, quem julga está sendo juiz de si mesmo. Me parece que esse é o principal equívoco”.

Essa manifestação revela a contradição da narrativa ministerial e, resume a ideia central desse texto. Afinal, por lealdade argumentativa, devemos perguntar ao Parquet o motivo dessa argumentação valer pro Judiciário, mas não para eles mesmos.

Como se sabe, o processo evolutivo dos sistemas de justiça criminal passou por diversas fases, desde sua gênese inquisitorial até o presente modelo acusatório. Nessa dinâmica histórica, surgiu a necessidade de separação das três funções existentes na persecução penal, quais sejam, investigar, acusar e julgar.

Essa concepção surgiu em decorrência da necessidade de manutenção de imparcialidade. Vale dizer: a concentração desses três poderes em um único órgão gera a contaminação do observador, retirando a neutralidade do sistema e, consequentemente, esvaziando a possibilidade de Justiça.

A história demonstrou que a concentração dessas funções numa única entidade impossibilita o exercício de um contraditório eficaz e também compromete a ampla defesa. Isto porque, para que o modelo inquisitorial funcione, é necessário uma utópica carga de autoavaliação e senso de humildade. Afinal, acatar os argumentos contraditos pelo réu é aceitar o próprio equívoco. Como bem dito por Aury Lopes[2], é um erro psicológico crer que uma mesma pessoa possa exercer funções tão antagônicas como investigar, acusar, defender e julgar.

Por sua vez, quando há uma clara separação dessas funções, o sistema fica menos frágil, pois as três instâncias (investigativa, acusatória e julgadora) trabalham como revisoras umas das outras. De forma geral, o modelo acusatório trabalha em três etapas. Primeiro, a investigação levanta uma hipótese criminal e a confirma por meio de indícios (suspeito). Depois, o órgão acusador faz seu juízo de valor sobre essas conclusões e deflagra o processo por meio da denúncia (réu). Ao final, os indícios, passando pelo crivo do due process of law, tornam-se provas, autorizando o Julgador a chancelar as duas fases anteriores, condenando o indivíduo que passa a ser culpado. Percebe-se, portanto, que o sistema acusatório puro trabalha numa lógica de triplo cheque de segurança.

Estabelecidas essas premissas, percebe-se que o embate entre o STF e o MPF é um sintoma de um modelo ainda disfuncional. Pra além da necessidade de separação entre acusação e julgamento, deve-se também relembrar a imperiosa necessidade de separação entre investigação e acusação.

No modelo ideal, quem deve investigar, portanto, é  tão somente a Polícia Judiciária e não o Ministério Público. De fato, doutra forma criam-se suscetibilidades à já citada armadilha psicológica

Nesse sentido, um modelo acusatório “puro sangue” demanda o estabelecimento rígido das funções, afastando o órgão acusador da investigação, impedindo, assim, a sua contaminação. Quando o órgão acusador investiga, em regra, o processo fica comprometido, pois passa-se a procurar fatos legitimadores da hipótese formulada, abandonando-se a neutralidade da apuração.  

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A Polícia Judiciária, muito longe da infalibilidade, não raras vezes, acaba engendrada nesse mesmo erro. Ao investigar determinado fato, passa a procurar indícios que comprovem a hipótese criminal inicialmente levantada. No lugar de esclarecer um fato, passa a buscar indícios que comprovem aquilo que se considerou acontecido. No lugar da verdade real, criam-se artificialmente narrativas auto validadoras.

Todavia, no modelo acusatório puro, esse eventual equívoco pode ser retificado na fase posterior, quando da análise das conclusões alcançadas no inquérito policial pelo Parquet. Quando há concentração da investigação e acusação num único órgão, queima-se essa primeira instância de controle.

Alguns podem argumentar que a perda de uma instância de verificação não seria significativo, visto que a situação ainda poderá ser corrigida na fase processual pelo Julgador. Contudo, sabe-se que o só processamento penal já representa uma pena. Trata-se do chamado strepitus processos. É a violação da dignidade do cidadão pela imposição da vexatória condição de réu. Principalmente na presente era da espetacularização midiática, essa situação já representa um fardo muito pesado, às vezes, pior do que a própria pena stricto sensu.

Esse debate é antigo e remonta o período da PEC 37 e da apreciação do  RE 593.727 pelo STF. Naquela época, se entendeu pela possibilidade de investigação criminal autônoma pelo Ministério Público. Contudo, essa possibilidade não foi unânime e diversas vozes foram contra. O Ministro Marco Aurélio vislumbrou bem as eventuais consequências dessa possibilidade, em seu voto[3] disse:

O que se mostra inconcebível é um membro do Ministério Público colocar uma estrela no peito, armar-se e investigar. Sendo o titular da ação penal, terá a tendência de utilizar apenas as provas que lhe servem, desprezando as demais e, por óbvio, prejudicando o contraditório e inobservando o princípio da paridade de armas. A função constitucional de titular da ação penal e fiscal da lei não se compatibiliza com a figura do promotor inquisitor. O direito alienígena também não auxilia na solução da questão, pois os órgãos e atividades envolvidas possuem regras constitucionais próprias, bem estabelecidas, que não deixam margens a interpretações evolutivas. (grifo nosso)

Ainda sobre esse julgamento paradigmático, é bom registrar que o STF entendeu pela possibilidade regrada dessa atuação autônoma. Contudo, essa “possibilidade” foi interpretada como autorização irrestrita e, na prática, já começamos a perceber as consequências desse modelo.

Em verdade, como geralmente acontece, as hipóteses teoricamente perfeitas acabam se desnaturando na prática. Isto porque é comum desconsiderar-se uma variável incontrolável: o homem.

Veja por exemplo o construto teórico acerca dos atributos da unidade e indivisibilidade do Ministério Público. Conhecida a doutrina sobre o tema, é curioso perceber a atuação do MPF contra o próprio MPF ao questionar no sistema concentrado de constitucionalidade por meio de ADPF a tentativa de construção de um fundo privado. Esse fato demonstra que na prática não existe unidade e indivisibilidade. Na realidade mesmo o que existem são homens e pretensões. E a realidade não se conforma por teorias.

Outro caso que exemplifica bem essa distorção, como já mencionado, foi a permissão para que o MP pudesse conduzir investigações autônomas. Novamente, em que pese essa possibilidade fosse teoricamente sedutora em determinados casos (e reconheço que este próprio subscritor entendia assim), não se considerou o efeito colateral prático.

Passados poucos anos da abertura dessa possibilidade, já se instalou no Brasil um modelo de justiçamento. Como bem previsto pelo ministro Marco Aurélio, alguns colocaram a estrela no peito e, quase onipotentes (pois podem investigar e acusar), tentam à fórceps conformar a República ao seu paradigma de “retidão”.

Lênio Streck[4], há muito, tem se manifestado criticamente quanto à necessidade do Ministério Público ser um ente imparcial, nesse sentido:

O Ministério Público, segundo a Constituição, deve ser imparcial e não se transformar em militante (tanto é que pode ser considerado suspeito ou impedido em processos). Não deve assumir um viés punitivista, colocando, como os signatários fizeram no referido manifesto, posição prévia contra qualquer garantia — eis que, para eles, garantias constitucionais são vistas como coisas de esquerdistas e bandidólotras (nas exatas palavras do manifesto, trata-se de um processo penal democida — aquele que extermina o povo — sic). A pergunta, que já fiz outras vezes, é: por que o Ministério Público precisa de garantias iguais às da magistratura se se comporta, não como um magistrado, mas como parte, fazendo meramente um agir estratégico? (grifo nosso).

Já em outros artigos[5][6] o mesmo jurista afirma:

(...) Por que estou dizendo tudo isso? Porque quem sai na chuva é para se molhar. Ou corre o risco de se molhar (isso seria uma inferência? Ou uma abdução? Ou dedução?). Estamos falando de um agente do Estado que possui responsabilidade política (no sentido de que fala Dworkin). O agente do MPF nos deve accountability. Deve ser imparcial. Não pode dizer o que quer. Há uma estrutura externa que deve constranger a sua subjetividade. Essa estrutura é formada pela Constituição, as leis, as teorias da prova, as teorias sobre a verdade, enfim, há uma tradição acerca do que são garantias processuais. E do(s) agentes(s) estatais podemos questionar o uso de “teorias” sobre a prova que o próprio CNMP poderia — se indagadas em concurso público — chumbá-las, porque exóticas. Comparando com a medicina, é como se alguém defendesse a tese de que é possível fazer operação a partir da força da mente. Ou algo exótico desse jaez.(...) (grifo nosso).

(...)Portanto, na democracia juízes e membros do ministério público devem conter seus anseios, suas paixões, suas subjetividades. A sociedade não os paga para opinarem sobre política ou moral. A sociedade não os paga para dizer se a política conduzida por um governante é boa ou ruim. Tampouco os remunera para tecerem considerações morais. Um ato é criminoso ou não. Simples assim. Se a acusação vier acompanhada de adjetivos, já fica claro que a imparcialidade está viciada. Bingo, pois não? (...) (grifo nosso).

O Ministro Gilmar Mendes, nessa linha, teceu duros comentários a essa parcela do Ministério Público. Em recente decisão acerca da possibilidade de criação de um fundo para gerir recursos oriundos da Petrobrás no âmbito da Lava-Jato, o Ministro foi bem contundente ao afirmar:

O que é inusitado? Esses ataques feitos por membros do Ministério Público a julgadores. Como se estivessem participando de uma corrida do ouro. E até se descobriu que de fato estavam participando de uma corrida do ouro, com a fundação que se criou em Curitiba. De fato, o combate à corrupção passou a dar lucro. O que se trava aqui é uma disputa de poder. Querem constranger, amedrontar. Isso não é método de instituição, é método de gângster. Isso é uma disputa de poder em que se quer amedrontar as pessoas. Fantasmas e assombração aparecem para quem neles acredita(...)

Estabelecido esse contexto, fica claro que a demasiada concentração de poder em um único órgão acaba por gerar instabilidade institucional, pois compromete o princípio básico do checks and balances. Quando um determinado órgão se agiganta demais, tornando-se uma superestrutura acoplada ao Estado, mas que se pretende absoluta e autônoma, os choques institucionais se tornam inevitáveis e quem sofre as consequências é a própria democracia.

Não se nega que o agigantamento do Ministério Público possibilitou a quebra de paradigmas culturais, pois, pela primeira vez, o rule of law chegou à Casa Grande. Contudo, indago se o mesmo resultado não poderia ter sido obtido sem o pagamento de um preço tão alto. Afinal, a bem da verdade, a Lava-Jato se iniciou pela competência da Polícia Judiciária e obteve os melhores resultados quando a condução se encontrava sob a sua tutela.

Nesse contexto, e aproveitando a efervescência atual do tema, mais uma vez se torna imprescindível o pensamento acerca da restruturação do modelo pela fixação clara das fronteiras das atribuições de investigar, acusar e julgar. Esses ajustes passam pelo redirecionamento de forças à Polícia Judiciária, de forma que se possa manter essasfunções bem distintas, estabelecendo um verdadeiro modelo acusatório puro e o consequente reequilíbrio de forças.       


Notas

[1] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/03/15/dodge-questiona-legalidade-de-inquerito-sobre-insultos-ao-supremo.ghtml

[2] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 158.

[3] http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE593727.pdf

[4] https://www.conjur.com.br/2017-ago-10/senso-incomum-isto-assustador-manifesto-bandidolatria

[5] https://www.conjur.com.br/2016-set-16/streck-nao-papel-mp-adjetivar-moralmente-acusacao-faz

[6] https://www.conjur.com.br/2017-jun-22/senso-incomum-exoticas-teorias-usadas-mpf-seriam-chumbadas-cnmp2

Sobre o autor
Erick da Rocha Spiegel Sallum

Delegado de Polícia do DF. Bacharel em Direito e Administração de Empresas. Pós-graduado em Direito Constitucional, Penal e Processual Penal. Diretor da DIRAD/CORPATRI/PCDF. Ex-Agente de Polícia Federal classe especial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALLUM, Erick Rocha Spiegel. Investigar, acusar e julgar: por um necessário reequilíbrio de forças. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5739, 19 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72769. Acesso em: 22 nov. 2024.

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