RESUMO: O presente ensaio tem por escopo precípuo analisar a aplicação do direito penal interespacial, notadamente, com incursões nos aspectos legais em torno dos fatos supostamente envolvendo um jogador de futebol brasileiro, no dia 15 de maio de 2019, no interior de um hotel na França, onde teria ocorrido a prática de crime de estupro, fazendo mister o estudo do princípio da extraterritorialidade penal condicionada, a teor do artigo 7º, inciso II, alínea b) do Código Penal Brasileiro. Visa ainda analisar sem caráter exauriente possível conduta criminosa prevista no artigo 218-C, em face do vazamento de imagens e fotos íntimas da vítima, divulgadas em redes sociais.
Palavras-Chave: Direito penal. Crime de Estupro. Imagens. Vazamento. Dignidade Sexual. Direito interespacial. Territorialidade. Extraterritorialidade.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DO PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE DA LEI PENAL. 3. DA EXTRATERRITORIALIDADE DA LEI PENAL BRASILEIRA. 3.1. Princípio da extraterritorialidade incondicionada. 3.2. Princípio da defesa. 3.3. Princípio da extraterritorialidade condicionada. 3.3.1. Princípio da justiça universal. 3.3.2. Princípio da nacionalidade. 3.3.3. Princípio da representação. 4. PRINCÍPIOS ADOTADOS PELO CÓDIGO PENAL NA EFICÁCIA ESPACIAL DA LEI PENAL. 5. O CASO SUPOSTAMENTE CRIMINOSO DO JOGADOR DE FUTEBOL REGISTRADO NO BRASIL E A APLICAÇÃO DA LEI PENAL BRASILEIRA. 6. O CRIME DE VAZAMENTO DE IMAGENS E FOTOS ÍNTIMAS. 7. DAS CONSIDERAÇÕES PENAIS. DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO
A grande mídia mundial noticia o suposto caso de estupro envolvendo um jogador de futebol brasileiro, fato que teria ocorrido no dia 15 de maio de 2019, no interior de um hotel na França.
Jornais brasileiros divulgaram o teor do boletim de ocorrência registrado em São Paulo, in verbis:
“Comparece nesta Especializada a vítima qualificada sob o provimento CG 32/2000, noticiando que conheceu Neymar da Silva Santos Junior através das redes sociais (Instagram) e passaram a trocar mensagens. A vítima afirma que Neymar lhe convidou para encontrá-lo em Paris e seu assessor “Gallo” entrou em contato com a mesma na data de 12/05/2019 e forneceu as passagens e hospedagem. A vítima afirma que embarcou na data de 14/05/2019, chegando em Paris na data de 15/05/2019, hospedando-se no Hotel Sofitel Paris Arc Du Triomphe. A vítima afirma que na mesma data, Neymar chegou por volta das 20:00 no hotel, aparentemente embriagado, começaram a conversar, trocaram “carícias”, porém em determinado momento, Neymar se tornou agressivo, e mediante violência, praticou relação sexual contra a vontade da vítima. A vítima afirma que foi embora de Paris na data de 17/05/2019 retornando ao Brasil. A vítima afirma que estava abalada emocionalmente e com medo de registrar os fatos em outro país, decidindo registra-los nesta Especializada em razão de seu endereço residencial. Com base no Princípio da Extraterritorialidade, bem como as partes serem brasileiras, o presente Boletim de Ocorrência foi registrado nesta Especializada, inclusive para fins de encaminhamento aos exames que se fizerem necessários. Informo, por fim, que demais informações a respeito dos fatos foram colhidas em termos próprios, bem como documentos pertinentes. Nada Mais. ”
O crime de estupro é previsto no artigo 213 do Código Penal, com nova redação determinada pela Lei nº 12.015/2009, consistente em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, com pena de reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Trata-se de crime bicomum, onde qualquer pessoa pode praticar ou sofrer as consequências deletérias da infração penal, é rotulado como crime hediondo, consoante artigo 1º, inciso V, da Lei nº 8.072, de 1990.
Após o registro do fato e ampla divulgação midiática, teria havido vazamento de mensagens e fotos íntimas da noticiante dos fatos, conduta punível pela legislação penal no artigo 218-C, tipo acrescido pela Lei nº 13.718, de 2018, consistente em oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia, com previsão de pena de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.
A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.
A Secretaria de Segurança Pública confirmou que o fato foi registrado pela vítima na 6ª Delegacia da Mulher, na capital paulista, e informou que o inquérito segue sob sigilo.
2. DO PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE DA LEI PENAL
Sem a pretensão de querer analisar o mérito dos fatos, que certamente ficará sob responsabilidade da competente Polícia Investigativa, por sinal acusação muito grave, mister se faz compreender acerca da aplicação da lei penal no espaço, cuidadosamente, previsto no Código Penal Brasileiro, em sua parte geral.
Logo, é possível afirmar que a legislação brasileira previu normas sobre o direito espacial, com fato em dois grandes princípios, o da territorialidade e da extraterritorialidade.
Assim, pelo princípio da territorialidade, aplica-se a lei penal brasileira, artigo 5º, §§ 1º e 2º, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional.
Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar.
É também aplicável a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em voo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil.
Percebe-se, que via de regra, que se aplica a lei penal brasileira ao crime cometido no território brasileiro, com as exceções acima, a que se chama princípio da territorialidade temperada ou mitigada.
3. DA EXTRATERRITORIALIDADE DA LEI PENAL BRASILEIRA
Casos existem que mesmo o fato criminoso sendo cometido fora do Brasil, é possível que a lei penal brasileira é aplicada, com ou sem condições, aquilo que se chama de princípio da extraterritorialidade condicionada ou princípio da extraterritorialidade incondicionada.
3.1. Princípio da extraterritorialidade incondicionada
Pelo princípio da extraterritorialidade incondicionada, a lei penal brasileira é aplicada a fatos criminosos praticados fora do território brasileiro, independentemente do preenchimento de condições, ela é, pois, incondicionada.
Os casos taxativos de extraterritorialidade incondicionada estão previstos no artigo 7º do Código Penal Brasileiro, a saber:
Art. 7º - Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:
I - os crimes:
a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República;
b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público;
c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço;
d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil;
Aqui pode-se elencar os crimes contra a vida ou liberdade do Presidente da República, art. 7º, I, alínea a), do Código Penal.
Neste caso, os crimes contra a vida são o homicídio, induzimento ao suicídio, infanticídio e as diversas modalidades de aborto, previstos nos artigos 121 a 126 do Código Penal.
Já os crimes contra a liberdade do Presidente da República são aqueles elencados nos artigos 146 a 154-A do Código Penal, abrangendo a meu sentir, a sua liberdade individual e não somente a sua liberdade pessoal, a saber:
I – Constrangimento ilegal
II – Ameaça
III – Sequestro e Cárcere Privado
IV – Redução à condição análoga a de escravo
V – Tráfico de Pessoas
VI – Violação de domicílio
VII – Violação de correspondência
VIII – Correspondência comercial
IX – Divulgação de segredo
X – Violação de segredo profissional
XI – Invasão de dispositivo informático.
Também estão no rol dos crimes abrangidos pelo princípio da extraterritorialidade incondicionada, art. 7º, I, alínea b), aqueles cometidos contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público.
Os crimes contra o patrimônio estão previstos nos artigos 155 a 180 do Código Penal Brasileiro. São os seguintes os crimes contra o patrimônio:
I – Furto
II – Roubo
III – Extorsão
IV – Extorsão mediante sequestro
V – Extorsão indireta
VI – Alteração de limites
VII – Supressão ou alteração de marcas em animais
VIII – Dano
IX - Introdução ou abandono de animais em propriedade alheia
X - Dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico
XI - Alteração de local especialmente protegido
XII - Apropriação indébita
XIII - Apropriação indébita previdenciária
XIV - Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza
XV – Estelionato
XVI - Duplicata simulada
XVII - Abuso de incapazes
XVIII - Induzimento à especulação
XIX - Fraude no comércio
XX - Outras fraudes
XXI - Fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações
XXII - Emissão irregular de conhecimento de depósito ou "warrant"
XXIII - Fraude à execução
XXIV – Receptação
XXV - Receptação de animal.
Por sua vez, os crimes contra a Fé Pública estão elencados nos artigos 289 a 311-A, do Código Penal Brasileiro, indo desde a moeda falsa até fraude em certame de interesse público, este introduzido pela Lei n°
O artigo 7º, inciso I, alínea c), prevê os crimes contra a administração pública, por quem está a seu serviço.
Os crimes contra a administração pública começam do peculato, artigo 312 e se estende até ao artigo 359-H, a saber:
1. Art. 312 - Peculato
2. Art. 313 - Peculato mediante erro de outrem
3. Art. 313-A - Inserção de dados falsos em sistema de informações
4. Art. 313-B -Modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações
5. Art. 314 - Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento
6. Art. 315 - Emprego irregular de verbas ou rendas públicas
7. Art. 316 -Concussão
8. Art. 317 - Corrupção passiva
9. Art. 318 - Facilitação de contrabando ou descaminho
11. Art. 319 - Prevaricação
12. Art. 320 - Condescendência criminosa
13. Art. 321 - Advocacia administrativa
14. Art. 322 - Violência arbitrária
15. Art. 323 - Abandono de função
16. Art. 324 - Exercício funcional ilegalmente antecipado ou prolongado
17. Art. 325 - Violação de sigilo funcional
18. Art. 326 - Violação do sigilo de proposta de concorrência
19. Art. 328: Usurpação de função pública (TCO)
20. Art. 329: Resistência (TCO)
21. Art. 330: Desobediência (TCO)
22. Art. 331: Desacato (TCO)
23. Art. 332: Tráfico de influência (IP)
24. Art. 333: Corrupção ativa (IP)
25. Art. 334: Descaminho (IP)
26. Art. 334-A: Contrabando.
27. Art. 335: Impedimento, perturbação ou fraude de concorrência (TCO)
28. Art. 336: Inutilização de edital ou de sinal (TCO)
29. Art. 337: Subtração ou inutilização de livro ou documento (IP)
30. Art. 337A: (IP)
31. Art. 338: Reingresso de estrangeiro expulso (IP);
32. Art. 339: Denunciação caluniosa (IP);
33. Art. 340: Comunicação falsa de crime ou de contravenção (TCO);
34. Art. 341: Autoacusação falsa (TCO);
35. Art. 342: Falso testemunho ou falsa perícia (IP);
36. Art. 343: ... (IP);
37. Art. 344: Coação no curso do processo (IP);
38. Art. 345: Exercício arbitrário das próprias razões (TCO);
39. Art. 346: ... (TCO);
40. Art. 347: Fraude processual (TCO);
41. Art. 348: Favorecimento pessoal (TCO);
42. Art. 349: Favorecimento real (TCO);
43. Art. 349-A: Favorecimento prisional (TCO)
44. Art. 350: Exercício arbitrário ou abuso de poder (TCO);
45. Art. 351: Fuga de pessoa presa ou submetida a medida de segurança (TCO);
46. Art. 352: Evasão mediante violência contra pessoa (TCO);
47. Art. 353: Arrebatamento de preso (IP);
48. Art. 354: Motim de presos (TCO);
49. Art. 355: Patrocínio infiel;
50. Art. 355, parágrafo único: Patrocínio simultâneo ou tergiversação (IP);
51. Art. 356: Sonegação de papel ou objeto de valor probatório (IP);
52. Art. 357: Exploração de prestígio (IP);
53. Art. 358: Violência ou fraude em arrematação judicial (TCO);
54. Art. 359: Desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito (TCO);
55. Art. 359-A: Contratação de operação de crédito
56. Art. 359-B: Inscrição de despesas não empenhadas em restos a pagar
57. Art. 359-C: Assunção de obrigação no último ano do mandato ou legislatura
58. Art. 359-D: Ordenação de despesa não autorizada
59. Art. 359-E: Prestação de garantia graciosa
60. Art. 359-F: Não cancelamento de restos a pagar
61. Art. 359-G: Aumento de despesa total com pessoal no último ano do mandato ou legislatura
62. Art. 359-H: Oferta pública ou colocação de títulos no mercado
Para todos esses casos, o agente é punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro.
3.2. Princípio da defesa.
O princípio da defesa, também chamado de princípio real ou da proteção leva em conta para a aplicação da lei penal brasileira o bem jurídico lesado, independentemente do local ou da nacionalidade do agente.
3.3. Princípio da extraterritorialidade condicionada
Pelo princípio da extraterritorialidade condicionada, como o próprio nome sugere, para a aplicação da lei penal brasileira é necessário que algumas condições sejam observadas, sendo os casos previstos no artigo 7º, inciso II, do Código Penal Brasileiro, a saber:
Destarte, nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições:
a) entrar o agente no território nacional;
b) ser o fato punível também no país em que foi praticado;
c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição;
d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena;
e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.
Desta feita, o Código Penal Brasileiro elencou os casos de extraterritorialidade condicionada, artigo 7º, II, do Código Penal, a saber:
a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir;
b) praticados por brasileiro;
c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados.
3.3.1 Princípio da justiça universal
Também chamado de princípio cosmopolita, segundo o qual, o criminoso deve ser julgado e punido onde for praticado o delito, segundo as leis desse país, não se levando em conta o lugar do crime, a nacionalidade do autor ou o bem jurídico lesado.
3.3.2. Princípio da nacionalidade
O princípio da nacionalidade também é conhecido por princípio da personalidade, e cogita-se a aplicação da lei do país de origem do agente, pouco importando o local onde o crime foi cometido.
Esse princípio subdivide-se em duas subespécies:
I - Nacionalidade ativa: somente se considera se o autor do delito é nacional, sem se cogitar da vítima.
II - Nacionalidade passiva: exige, para a aplicação da lei penal, sejam nacionais o autor e o ofendido do ilícito penal.
3.3.3. Princípio da representação.
Conhecido também por princípio da bandeira ou do pavilhão. Determina a aplicação da lei do país quando, por deficiência legislativa ou desinteresse de outro que deveria reprimir o crime, este não o faz, e diz respeito aos delitos cometidos em aeronaves ou embarcações.