2. 'O ABORTO JÁ É LIVRE NO BRASIL, PROIBIR É PUNIR QUEM NÃO TEM DINHEIRO', E O DIREITO À PRIVACIDADE
Não se olvide que o Uruguai, ao legalizar o aborto não trouxe com a medida o aumento de abortos e sim a redução, mormente porque o Estado assumiu políticas públicas afetas à matéria. 21 Portugal, depois de dez anos após legalizar o aborto, constatou que é o país europeu com menos abortos por cada mil nascimentos vivos, e de acordo com a entrevista concedida pelo diretor-geral da Saúde daquele país, Francisco George, ao site O Público em setembro de 2017, mencionou que “deixaram de chegar às urgências casos de mulheres com ruptura de órgãos, como vagina e útero, decorrentes de manobras realizadas em abortos mal feitos. Temos aqui um programa de sucesso”22. A ONG portuguesa Associação para o Planejamento da Família, também em análise dos dez primeiros anos da legalização, dá conta que embora nos primeiros meses da legalização o número de aborto tenha ligeiramente aumentado, a partir de 2013 está em queda constante, e o balanço com os números relacionados com o aborto apresentado pela ONG, indicou que a legalização fez com que o número de aborto caísse e praticamente zerou o número de mortes decorrentes do procedimento23.
Drauzio VARELLA, médico brasileiro atuante e conhecido por todos nós, afirma constantemente na mídia que o 'aborto já é livre no Brasil, proibir é punir quem não tem dinheiro', e de pronto se percebe que é a classe pobre mesmo que sofre com a criminalização do aborto.
O que se deve ter firme em mente é que o aborto sempre foi praticado pelas mulheres em todos os tempos e sempre será! Infelizmente essa triste e traumatizante experiência, se decidida pela mulher, não haverá motivo que a remova da decisão, ou seja, será muito difícil que algum fator a impeça da empreitada então definida e ela fará o aborto. Nada a deterá de fazer o aborto depois da decisão tomada. E assim será, como sempre foi.
Em seu portal da internet, novamente Drauzio VARELLA comenta que, segundo o IAG, Instituto Alan Guttmacher, entidade americana que estuda a questão do aborto no mundo, “cerca de 1 milhão de mulheres abortam no Brasil todos os anos”. E frisa:
As católicas e as evangélicas abortam; as loiras, as morenas, as afrodescendentes, as pobres, as ricas, as adolescentes, as casadas, as que saem com vários parceiros, as que tiveram apenas uma relação sexual na vida e as que são mães, também. E vão continuar abortando, pois a decisão de interromper uma gravidez é pessoal e envolve várias questões que não podemos controlar. 24
Com muita lucidez, a jornalista Maria Rita KEHL (2010), em seu texto 'Repulsa ao sexo', publicado no O Estado de S. Paulo, em 18/9/2010, sob o argumento de que ninguém pode ser, de fato, a favor do aborto, salienta que:
O aborto é sempre a última saída para uma gravidez indesejada. Não é política de controle de natalidade. (...)
É uma escolha dramática para a mulher que engravida e se vê sem condições, psíquicas ou materiais, de assumir a maternidade. Se nenhuma mulher passa impune por uma decisão dessas, a culpa e a dor que ela sente com certeza são agravadas pela criminalização do procedimento. O tom acusador dos que se opõem à legalização impede que a sociedade brasileira crie alternativas éticas para que os casais possam ponderar melhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper uma gestação indesejada ou impossível de ser levada a termo. Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente, além do luto inevitável, as jovens grávidas que pensam em abortar são levadas a arcar com a pesada acusação de assassinato. O drama da gravidez indesejada é agravado pela ilegalidade, a maldade dos moralistas e a incompreensão geral." 25
Impõe-se uma postura de respeito, de respeito ao direito da mulher! De respeitar o direito de optar, de escolher, de zelar pela autonomia da vontade da mulher (direito à privacidade), como se vem respeitando a religião de cada uma (ou de cada um dos cidadãos), respeitando os preceitos morais adotados e vividos por elas (e por todos), mas aquela que optar em realizar o aborto que o faça sem criminalização de seu ato.
E, nessa oportunidade, é importante deixar bastante claro (e realmente repetir) que a intenção maior não é defender perante a sociedade o favoritismo ao aborto. Ninguém pode ser favorável ao aborto! É ser, de forma contundente, contra sua criminalização, em prol de respeitar o desejo da mulher, de respeitar a sua livre escolha, e de zelar pela vida da mulher que está em jogo.
Entende-se, nesse passo, que o discurso a ser divulgado pelas mulheres que buscam a descriminalização do aborto e aos interessados na causa, há de ser no sentido de que descriminalizar não significa que será feita uma campanha em prol da prática de tal conduta, mas sim valorizar o 'querer' de cada cidadã, cuja Constituição da República lhe garante um Estado laico, o direito de escolha, o direito à igualdade, o direito de dar conta da própria vida. E, como já se disse acima, quem deseja praticá-lo o fará de qualquer jeito, devendo se impor o respeito à vontade da mulher, garantindo seu direito constitucional à privacidade.
A Suprema Corte dos Estados Unidos, no ano de 1973, invocando justamente o direito à privacidade, definiu que a mulher pode decidir sobre a realização do aborto, no conhecido caso Roe v. Wade, 410 U.S. 113, o qual envolvia a gestante Jane Roe e Henry Wade, representante do Estado do Texas, que era, pois, contrário ao aborto26. Aliás, na grande obra "Direito ao aborto, democracia e Constituição"27, da promotora de justiça Teresinha Inês Teles PIRES, após profunda análise acerca de decisões tomadas pela Suprema Corte dos Estados Unidos e também do nosso Supremo Tribunal Federal, conclui seu trabalho indicando meios a justificar a legalização do direito ao aborto, não sem antes frisar a relevância da autonomia procriativa da mulher e, portanto, adentra nas teorias preconizadas por Ronald Dworkin (que participou dos estudos para os julgamentos sobre aborto nos EUA) e John Rawls (defensor das "teorias da democracia").
3. A NECESSIDADE URGENTE DE DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO
Juristas brasileiros defendem teses no sentido da inconstitucionalidade da criminalização primária do autoaborto e do aborto com o consentimento da gestante, seja sob o enfoque da incompatibilidade da criminalização do aborto com os princípios democráticos limitadores da criminalização ou com os critérios principiológicos de criminalização nos estados democráticos. É nessa seara que adentrou o Juiz de Direito José Henrique Rodrigues TORRES (2015) 28 quando escreveu a obra "Aborto e Constituição"29, pois estudioso do assunto, e cujas conclusões partiram, como não podia deixar de ser, da cruel realidade vista por aqueles que querem enxergá-la, no sentido de que a criminalização dos abortos realizados no país não os tem impedido, e ademais, o quadro que se apresenta é que cada vez mais piora as condições em que são realizados.
Dentro do estudo apresentado no contexto constitucional, há conclusões baseadas, por ex., nos princípios da racionalidade e da subsidiariedade a ensejar a incompatibilidade da criminalização do aborto, no sentido de que, respectivamente, "não se pode manter a criminalização de um conduta quando os custos sociais decorrentes da adoção dessa medida proibicionista são maiores que aqueles causados pelo 'problema' que se pretendeu com ela arrostar", e que "a criminalização somente se justifica quando não houver outros meios ou alternativas para o enfrentamento do 'problema social' a ser debelado".
E ainda sobre a resolução do problema social, Drauzio VARELLA (2011) comenta sobre o aborto e diz que a maior violência do país é praticada contra a mulher pobre, pois não lhe é dado acesso ao planejamento familiar, e comenta que a ‘Igreja’ é o maior obstáculo ao planejamento. O médico faz essas considerações em entrevista televisa (Roda Viva da TV Cultura30) salientado sobre a necessidade de efetivação de programas de planejamento familiar. Aliás, sobre o tema a literatura indica que se exige a mantença de estruturas sanitárias e profissionais capacitados para garantir os direitos à saúde física e psicológica; informações – educação - a respeito da sexualidade e do uso dos meios de anticoncepção; e acesso a esses meios anticonceptivos. Sem que o aborto seja enfrentado, pois, por políticas repressivas. 31
Ponto de relevância dentro do Direito Penal e Constitucional é que na questão da criminalização do aborto há um indevido adentrar violento e efusivo no querer feminino, porque "o papel do Direito Penal não é realizar a educação moral das pessoas adultas. Não compete ao Estado fiscalizar a moralidade privada, para exercer em face dos cidadãos o papel de polícia dos costumes, de sentinela da virtude", como muito bem foi dito pelo doutrinador Cristiano Avila Marona, citado na obra do magistrado José Henrique Rodrigues TORRES (2015, apud Marona, p. 66). Aliás, dentro desse tema, o magistrado concluiu que a ordem jurídica de um Estado Democrático de Direito deve manter-se laica e secular, não podendo ser convertida na voz exclusiva da moral e, muito menos, da moral de nenhuma religião.32
Confirmando, aliás, a inutilidade da criminalização no sistema penal, no artigo "Sobre as mulheres e o aborto: notas sobre as leis, medicina e práticas femininas", de autoria da professora pontagrossense Georgine Garabely Heil VÁZQUEZ33, são trazidos dados do Poder Judiciário que, na verdade, retratam o que ocorre no país todo, pois o trabalho analisa em uma perspectiva histórica, os processos - crimes de aborto disponíveis nas comarcas de Castro e Ponta Grossa (PR) num período que compreende o fim do século XIX até meados do século XX. E assevera a historiadora:
É necessário salientar que entre inquérito e processo o número total de casos de abortos registrados pelo Poder Judiciário é de apenas cinco casos. Tal número aponta para o fato de que práticas de impunidade são bastante comuns para os casos de abortamentos, pois se acredita que o número de abortos acorridos nas cidades de Castro e Ponta Grossa (PR) entre o século XIX e meados do século XX foi superior a cinco. Todavia, ficaram registrados nos arquivos do Poder Judiciário apenas cinco casos. Segundo o levantamento feito desses casos, quando estes chegam ao Poder Judiciário trazem à tona mulheres pobres e geralmente solteiras. Porém, a pena de prisão para mulheres que abortam é rara. E esta sempre foi uma das questões centrais para a discussão do aborto nos meandros da justiça brasileira.
Por certo, e sem o intuito de esgotar tema tão vasto, questões bem mais intrínsecas estão envolvidas, pois trazendo à tona mais uma vez o aspecto psicanalítico, e buscando a palavra de Maria Rita KEHL no texto "Repulsa ao sexo"34, tem-se o dramático comentário da psicanalista: "em mais de um debate público escutou argumento de conservadores linha-dura, de que a mulher que faz sexo sem planejar filhos tem que aguentar as consequências”.
E complementa:
Eis a face cruel da criminalização do aborto: trata-se de fazer, do filho, o castigo da mãe pecadora.
Cai a máscara que escondia a repulsa ao sexo: não se está brigando em defesa da vida, ou da criança (que, em caso de fetos com malformações graves, não chegarão a viver poucas semanas).
A obrigação de levar a termo a gravidez indesejada não é mais que um modo de castigar a mulher que desnaturalizou o sexo, ao separar seu prazer sexual da missão de procriar.
Não por acaso o colega José Henrique TORRES tem a percepção de que "na verdade, o abortamento mantém a sua criminalização como instrumento de controle da sexualidade das mulheres. E nesse particular ela (criminalização) é eficaz". Profundamente triste isso.
4. A ESPERANÇA NA FUTURA DECISÃO DO STJ ACERCA DA ADPF Nº 442
Esperança nova surge na instituição responsável pelo cumprimento dos valores previstos no texto constitucional, e aguarda-se a tomada de decisão do Supremo Tribunal de Justiça acerca da ADPF nº 442, sopesando os valores como o direito à vida de acordo com a realidade nua e crua (mortes constante de mulheres), e levando em consideração o direito à privacidade a fim de se respeitar o desejo feminino, mormente porque vivemos num país que nos garante uma nação neutra no campo religioso, e esse estado secular impede a interferência de ideais religiosos em questões sociopolíticas e culturais. No quadro total da realidade e visto neste artigo, salta aos olhos a importância imperiosa da chamada judicialização da política para a efetiva garantia e concretização de direitos constitucionais na forma como deve ser feita.
Como vimos, de acordo com a nova composição do Supremo Tribunal de Justiça35, dos onze ministros, tem-se que os ministros Alexandre de Moraes e Dias Toffoli ainda não votaram nenhuma questão acerca do tema, mas Toffoli, quando advogado-geral da União, deu parecer favorável ao aborto de anencéfalo, e ainda antes do cargo no STF, se declarou favorável à descriminalização do aborto até três meses. Lewandowski entendeu que o STF não pode “usurpar” o poder legislativo, mas votou a favor do uso de células-tronco.
A relatora da ADPF nº 442, Rosa Weber, já proferiu voto a favor de aborto de anencéfalo e também proferiu voto em habeas corpus, defendendo o fim da criminalização do aborto nos três primeiros meses. O ministro Luís Roberto Barroso, quando era advogado, fez a sustentação oral da ação impetrada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, para permitir aborto de feto anencéfalo. Em dezembro de 2016, em seu voto em pedido de habeas corpus para soltura de acusados de praticar aborto, na Primeira Turma do Supremo, afirmou que a criminalização viola direitos fundamentais. Edson Fachin votou a favor do habeas corpus, acompanhando na íntegra o voto de Barroso.
Celso de Melo e Marco Aurélio, ambos votaram a favor do aborto de anencéfalo, e em entrevistas, esse último alertou sobre a necessidade de discutir a questão de forma mais ampla, e o primeiro, afirmou que era necessário ampliar as opções nas quais as mulheres poderiam abortar, sem serem criminalizadas. Citou na época, saúde da mulher e má-formação do feto.
Ainda, dois que votaram favoravelmente em duas ações envolvendo o assunto (v.g. anencéfalo e favor da pesquisa com células-tronco de embriões), foram Carmen Lúcia e Gilmar Mendes. Ele, contudo, criticou Barroso quando este afirmou que a criminalização do aborto até os três meses fere direitos fundamentais. E ela, quando desses julgamentos, deixou claro que a questão do aborto não estava sendo avaliada.
Enfim, Luiz Fux, ministro que votou a favor de aborto de anencéfalo, e em entrevistas, diz considerar o assunto do Legislativo, mas acredita que é uma questão de saúde pública.