Como é do conhecimento de todos, o Direito Administrativo possui dois grandes importantes princípios que funcionam como “coluna de sustentação” de seu regime jurídico, quais sejam: supremacia do interesse público e indisponibilidade do interesse público.
A partir dessa premissa surge um poder-dever para a Administração Pública concretizar suas atividades na busca do bem comum. Vários instrumentos lhe são conferidos, dentre eles, tem-se o chamado poder normativo/regulamentar.
O chamado poder regulamentar está previsto no art. 84, IV, da Constituição Federal que autoriza o Presidente da República a expedir decretos e regulamentos para a fiel execução da lei. Referido decreto não pode inovar a ordem jurídica, criando direitos e obrigações, até mesmo porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, CF).
Noutras palavras, o Presidente da República pode editar um ato normativo (infralegal) que tenha por finalidade esclarecer e viabilizar o exato cumprimento de direitos previstos em lei, sem ultrapassar os horizontes da legalidade. Perceba que o decreto tem que se limitar ao estabelecimento de normas sobre a forma como a lei vai ser cumprida pela Administração Pública, visto que ele está hierarquicamente subordinado a uma lei prévia.
Caso o decreto ultrapasse os limites acima expostos, o Congresso Nacional dispõe de um poder de controle sobre os atos normativos do Poder Executivo, podendo sustar os que exorbitem do poder regulamentar, conforme previsto no art. 49, V, da Constituição Federal.
No episódio do chamado “Decreto das armas”, tem-se que o Presidente da República editou os decretos n.ºs 9.785 e 9.797, ambos de 2019, no intuito de regulamentar alguns pontos da Lei Federal n.º 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento).
Com efeito, com o placar de 47 votos favoráveis a 28 contrários, o Senado Federal votou pela derrubada do decreto presidencial por entender que o mesmo extrapolou os limites legais, exorbitando o poder regulamentar do Poder Executivo.
Alega-se, dentre outras coisas, que o decreto se excedeu ao estabelecer uma presunção de que mais de 20 categorias (p.ex.: advogados, jornalistas e caminhoneiros) cumpririam os requisitos básicos para possuírem armas. Além disto, o decreto aumentava de 50 (cinquenta) para 5 (cinco) mil o número de munições anuais para cada proprietário comprar.
Assim, tais medidas trazidas no decreto presidencial não se afigurariam razoáveis e proporcionais à regulamentação da Lei n.º 10.826/2003 que contempla um Estatuto do Desarmamento. Todavia, antes mesmo de serem analisados pela Câmara dos Deputados, o Presidente da República entendeu por bem revogar os decretos n.ºs 9.785 e 9.797, ambos de 2019.
Sem querer nos imiscuir no conteúdo de “mérito” das medidas trazidas no bojo dos referidos decretos, parece-nos mais correto – do ponto de vista técnico-jurídico – o novo caminho adotado pelo Governo Federal, ao revogar os decretos presidenciais e, ato contínuo, apresentar projeto de lei à Câmara dos Deputados para que a questão – caso se entenda necessário – seja revista e adaptada aos anseios sociais por intermédio de lei.