4 CRIMINALIDADE JUVENIL
A Segurança Pública é o mais antigo campo de atuação e principal responsabilidade do Estado, sendo condição “sine qua non” para o atendimento dos demais valores sociais. Diz respeito à manutenção do aspecto específico da ordem interna de um determinado território e preservação da convivência pacífica e harmônica entre as pessoas.
A sociedade brasileira é ciente do panorama crítico da Segurança Pública do país, intensificado, nos últimos anos, pelos altos índices de criminalidade e violência, pelo sentimento de insegurança social e pela impunidade, que atingem, sem distinção todas as classes sociais, não mais se restringindo às áreas territoriais urbanas das cidades.
Insta admitir que a gravidade desta problemática pode ser enfatizada, em especial, quando se remete aos indicadores de criminalidade juvenil. O estudo mais recente e específico deste assunto, promovido pelo Instituto Sangari, denominado de “Mapa da Violência 2011 – Os Jovens do Brasil”[1], apontou que as estatísticas relacionadas ao número de homicídios na população jovem tem caráter de epidemia, sendo que a a taxa de homicídios entre os jovens passou de 30 (em 100 mil jovens), em 1980, para 52,9 no ano de 2008.
Cabe mencionar que o conceito de criminalidade e violência é impreciso e polêmico. A violência não se restringe ao crime, ela é mais ampla. Não há violência, mas violências que devem ser entendidas em seus contextos e situações particulares (LOCHE, 1999, p. 104).
A visão técnico-jurídica, comumente adotada por operadores do Direito, considera o crime como uma “ação típica, antijurídica, culpável e punível”. Este conceito que tipifica as condutas humanas de forma restrita e isolada restringe o crime à lógica penal, sem considerar os fatores que envolvem o crime, seus agentes e próprio mister do sistema de segurança pública (SILVA, 2003, p. 48).
Sob outro prisma mais abrangente, a criminologia crítica contemporânea reconhece o crime como um fenômeno social, intrínseco à convivência social, conforme estudo precursor de Émile Durkheim. Nesta diretriz, o estudo da criminalidade não se baseia em determinismos biológicos ou psicológicos, mas a analisa através de uma vertente sócio-político-histórico-cultural.
Nesse sentido, os autores Muniz e Zacchi (2004, p. 9) afirmam que o problema da criminalidade deve ser avaliado a partir da associação com outras variáveis sociais, a exemplo dos processos de urbanização e das dinâmicas de distribuição e acesso aos bens e serviços urbanos que constituem indicadores importantes quando se analisa a ocorrência de crimes.
Vê-se, pois, que a preocupação do Poder Público deve ser direcionada principalmente à população infanto-juvenil, já que o envolvimento destes em atividades criminosas tem manifestado certo crescimento. O perfil de vítimas de homicídios também assinala maior ocorrência nessa faixa etária.
Tão importante quanto analisar os fatores que envolvem o crime é entendê-los não de forma isolada, mas como um conjunto de relações que se estendem e se relacionam entre si. A violência e a criminalidade tratam-se, inegavelmente, de fenômenos conhecidos e intrínsecos a toda e qualquer sociedade, entretanto o desconhecido por alguns é que a raiz deste problema pode ser a desestruturação da instituição familiar. Isso torna-se perceptível na seguinte citação:
A Folha de São Paulo de 01/02/1992 publica em sua página 22 que o The New York Times divulgou um estudo do Departamento de Justiça dos Estados Unidos sobre a criminalidade, afirmando que esta pode ter sua origem na família. [...] mais da metade de todos os delinqüentes juvenis presos nos reformatórios estaduais e mais de um terço dos criminosos adultos em prisões estaduais têm algum membro próximo da família que também já esteve encarcerado. Terrie Moffitt, professora de Psicologia da Universidade de Wiscosin, declara que as estatísticas contradizem a tese de que os jovens se tornam delinqüentes por influência de amigos. Para ela, os jovens aprendem a ser criminosos com suas próprias famílias (CERVENY, 2000, p. 37, grifo nosso).
Portanto, observa-se a relevância da análise realizada neste trabalho, porquanto traz a reflexão acerca da fragilidade dos laços afetivos, ausência das funções de pai e/ou mãe e dos fatores que envolvem a desestruturação familiar como possível fonte da tendência voltada para a criminalidade praticada por adolescentes.
5 DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR ENTRE A SOCIOLOGIA E PSICOLOGIA
5.1 A TEORIA DA ANOMIA SOCIAL DE ÉMILE DURKHEIM
Ao final do século XIX, Durkheim introduziu na história a corrente sociológica da teoria estrutural-funcionalista, mais tarde também estudada pelo sociólogo estadunidense Roberto Merton, que representou uma mudança profunda de paradigma na época, sendo a primeira alternativa clássica de superação à concepção biopsicológica na área da criminologia (BARATTA, 2002, p. 59).
Assim como outras teorias sociológicas, o funcionalismo menospreza por completo o componente biopsicológico individual em seu diagnóstico do problema criminal, apesar de que referido fator condiciona, ao menos, a transmissão de qualquer sistema de conduta. Como teoria macrossociológica, relaciona o crime com as estruturas sociais (MOLINA; GOMES, 2000, p. 286, grifo nosso).
Em oposição à ótica do indivíduo mórbido, Durkheim permitiu a reconceitualização da ideia como o resultado de um rompimento ou enfraquecimento de processos sociais que, de outra forma, produziriam conformidade aos padrões normais da sociedade. Certamente em toda sociedade, existem regras de convivência a serem seguidas, e por via de consequência, cada regra estabelece as condições necessárias para seu rompimento.
A respeito dos aspectos criminológicos, os juristas Luiz Flávio Gomes e Antônio García-Pablos de Molina (2000, p. 280) escrevem que os princípios da teoria estrutural-funcionalista são a normalidade e a funcionalidade do crime. Normal porque não teria sua origem em nenhuma patologia individual nem social, senão no normal e regular funcionamento de toda ordem social; e funcional, no sentido de que seria um fato necessário à estabilidade e mudança social.
Fica claro que Durkheim não minimiza a possível gravidade de um ato criminoso ou se solidariza com ele; ao contrário, é exatamente esse o ponto de inflexão da análise. Ao dizer que o crime é um fenômeno normal da sociedade, Durkheim reforça a ideia de que o crime não é algo que pode ser atribuído, enquanto fenômeno sociológico, a um indivíduo particular. O olhar sociológico durkheiniano aponta determinado estado da estrutura social como veículo preferencial para a facilitação da ocorrência de um crime: o estado de anomia social.
A palavra anomia tem origem etimológica do grego “anomos”, que representa ausência, inexistência, privação de; e “nomos”, lei, norma. Em sua estrita significação, portanto, anomia significa falta de lei, ou falta de norma de conduta (ROSA, 1993, p. 97). Vale elencar em face das diferentes acepções que a palavra “anomia” contempla, três diferentes ideias que são importantes para este estudo:
a) A situação existente de transgressão das normas por quem pratica ilegalidades – é o caso do delinqüente.
b) A existência de um conflito de normas claras, que tornam difícil a adequação do indivíduo aos padrões sociais.
c) A existência de um movimento contestatório que descortina a inexistência de normas que vinculem as pessoas num contexto social. É a chamada crise de valores, causadora das grandes mudanças comportamentais de nosso tempo (SHECAIRA, 2004, p. 215).
Importa observar que, seja qual for a acepção tomada, o foco da questão será a ausência de normas sociais de referência que acarreta uma ruptura dos padrões sociais de conduta, produzindo uma situação de pouca coesão social (SHECARIA, 2004, p. 216).
Portanto, um estado anômico refere-se à condição especial da sociedade que produz no indivíduo uma deficiência de controles normativos. Essa lacuna pode permitir, por meio do enfraquecimento da moralidade – isto é, os valores solidários da coletividade –, a escolha de um caminho seja desviante.
Outra questão relevante do assunto é a reflexão que Durkheim faz sobre os motivos que levam a sociedade ao estado anômico. É válido lembrar que, na realidade, a dinâmica da estrutura social constrói a coesão por intermédio da solidariedade, ou seja, da adequação individual e coletiva a determinadas regras e valores.
O doutor em Direito Penal, Sérgio Salomão Shecaria (2004, p. 216) explica que nas sociedades arcaicas ou primitivas a solidariedade está mais presente, pois a consciência coletiva abrange a maior parte das consciências individuais. Esta solidariedade foi então denominada por Durkheim de “solidariedade mecânica”.
Diferentemente, nas sociedades contemporâneas, a diferenciação das profissões e a multiplicação das atividades industriais exprimem as características sociais que Durkheim define como ensejadoras da “solidariedade orgânica”. Como característica, os indivíduos tem liberdade de crer, querer e agir, conforme suas preferências. Logo, nas sociedades em que há solidariedade orgânica ocorre uma redução da esfera da consciência coletiva, em razão do enfraquecimento das reações coletivas contra a violação das proibições e, sobretudo, uma margem mais ampla na interpretação individual dos imperativos sociais (SHECARIA, 2004, p. 217).
O ponto categórico deste debate é a constatação de que nas sociedades de solidariedade orgânica há também a dissolução progressiva dos laços sociais, o que introduz a noção de anomia, seja por ausência de regras, ou porque as que existem já não conseguem impor-se face a uma nova forma de organização social. Aliás, verifica-se ainda que prevalece uma menor indignação social do grupo perante os comportamentos desviantes (FERNAMBUCO, 2005).
De fato, o foco da Sociologia durkheimneana na explicação de todo esse processo recai sobre as instituições responsáveis pela socialização dos indivíduos, neste caso, a família, escola, religião, profissão, responsáveis pela transmissão dos valores e normas da sociedade.
Nesse sentido, Durkheim (apud AVELLAR, 2007, p. 35) ensina que
Se ao desempenharmos qualquer papel social cumprimos os compromissos que existiam antes de nós, definidos no direito e nos costumes, a interiorização dessas normas e valores se dá por meio do processo de socialização, desenvolvido pelas diversas instituições sociais, entre elas a família, a quem cabe o “esforço inicial e contínuo para impor à criança maneiras de ver, sentir e agir, às quais ela não chegaria espontaneamente (grifo nosso).
Desse modo, a investigação se concentra sobre em que sentido essas instituições falharam em sua missão de normatizar o que as pessoas querem de suas vidas e, principalmente, como se espera que elas se comportem para alcançar estes objetivos. Quanto à família, a dúvida é em que ponto houve falha no processo de socialização do indivíduo, quais foram as deficiências no desenvolvimento físico e psíquico da pessoa, pois são estes que fundamentam as atitudes, emoções e decisões humanas.
Pela exposição até aqui apresentada, fica clara a importância da análise da teoria da anomia proposta por Durkheim, haja vista que o estado anômico surge quando o indivíduo perde as referências sociais, que orientam seu contato com os demais membros da sociedade. Em sendo a família instituição primordial no processo de socialização, no qual o indivíduo aprende o modo de vida da sociedade e forma a base de suas convicções e equilíbrio emocional, a desestruturação familiar se materializaria como o estado de anomia desta instituição, já que os elementos daí advindos resumem-se ao rompimento dos vínculos afetivos e abalo na assimilação de normas, estabilidade psíquica e formação da personalidade de seus membros.
Conforme já demonstrado, Durkheim atribui à falha do controle normativo do indivíduo e de valores de solidariedade coletiva, que significa o estado anômico, a fonte do surgimento de condutas desviantes e criminosas. Eis, pois, o mérito do pensamento de Durkheim que vai ao encontro da hipótese levantada pela pesquisa: a desestruturação familiar afeta de tal forma o processo de desenvolvimento emocional dos indivíduos, em especial das crianças e dos adolescentes, que o desequilíbrio e a destituição dos vínculos sociais podem favorecer a tendência destes a prática de atos ilegais.
5.2 ABORDAGEM PSICOLÓGICA: A AFETIVIDADE NOS COMPLEXOS FAMILIARES
Jean Piaget, biólogo por formação, dedicou sua vida profissional a investigar a origem e desenvolvimento do conhecimento humano. O seu estudo especificou quatro fatores responsáveis pela psicogênese (formação dos processos mentais) do intelecto infantil: o fator biológico, o exercício e experiência física, as interações e transmissões sociais e o fator de equilibração (sic) das ações (PALANGANA, 1998, p. 22).
Na linguagem de Piaget, a criança nasce provida de um aparato biológico que lhe mantém a sobrevivência e, a partir da interação dos reflexos inatos com o meio, é que se desenvolvem os elementos centrais na constituição da estrutura cognitiva do indivíduo. Sendo assim, “[...] o indivíduo não é um ser social ao nascer, mas torna-se progressivamente social” e “o comportamento do bebê é condicionado desde o início por fatores sociais” (PIAGET, apud WADSWORTH, 1997, p. 74).
A influência do meio social surte efeitos na formação da personalidade do homem, pois como D’ANDREA (2003, p. 10) disserta, neste processo devem ser considerados os aspectos biopsicológicos herdados, o meio (condições ambientais, sociais e culturais nas quais o indivíduo se desenvolve) e as características e condições de funcionamento do indivíduo nessa interação.
Personalidade é a resultante psicofísica da interação da hereditariedade com o meio, manifestada através do comportamento. A personalidade, obviamente, existe em função de um meio no qual procura adaptar-se e, pertencendo a um ser vivo, tem que sofrer um processo de desenvolvimento (D’ANDREA, 2003, p. 10, grifo nosso).
Notadamente, Piaget (WADSWORTH, 1997, p. 12), reconheceu a função dos fatores sociais no desenvolvimento intelectual. Nesta visão, as interações sociais são consideradas como uma fonte do conflito cognitivo, portanto, de desequilibração (sic) e, consequentemente, de desenvolvimento. O meio social é então primordial à construção do conhecimento social.
Em paralelo ao desenvolvimento cognitivo, intelectual e da formação da personalidade do indivíduo está o desenvolvimento afetivo. O afeto, neste caso, engloba sentimentos, interesses, desejos, tendências, valores e emoções. É válido dizer que o aspecto afetivo tem uma profunda influência sobre o desenvolvimento intelectual, podendo acelerar ou diminuir o ritmo deste processo (WADSWORTH, 1997, p. 37).
Piaget (WADSWORTH, 1997, p. 97) aprofunda a análise ao corroborar que à medida que a criança interage com os pais, molda-se o conhecimento social, bem como favorece o seu desenvolvimento cognitivo e afetivo. O estudioso percebe que
[...] é nas vivências que a criança realiza com outras pessoas que ela supera a fase do egocentrismo, constrói a noção do eu e do outro como referência. A afetividade é considerada a energia que move as ações humanas, ou seja, sem afetividade não há interesse nem motivação (PIAGET, apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 83, grifo nosso).
Neste ponto, ao saber que a afetividade é um composto essencial às relações interpessoais e fundamental ao processo de desenvolvimento psíquico da criança, as assertivas de Piaget muito contribuem para a essência deste trabalho e acrescenta à defesa de que o bem-estar e a completa formação do indivíduo estão diretamente atreladas ao convívio familiar sadio.
Para Piaget (apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 84), o desenvolvimento afetivo está relacionado e ocorre concomitantemente ao desenvolvimento moral. Ao perceber a importância que existe as interações com as outras pessoas, a criança consegue através da afetividade superar uma fase egocêntrica.
Também preocupado com esta temática, o psicólogo russo Lev Vygotsky (apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 83), classificou os afetos em positivos, quando se referem a emoções positivas de alta energia, como o entusiasmo e a excitação, e de baixa energia, como a calma e a tranqüilidade; e, negativos, ligados às emoções negativas, como a ansiedade, raiva, culpa e tristeza.
Pode-se entender com Piaget (apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 85) que a transmissão de afetos positivos ou negativos e a própria formação da consciência e dos sentimentos morais infantis são fruto da relação afetiva da criança com os pais, o que enaltece nesta discussão a importância das interações afetivas no convívio familiar.
Sabe-se que a família é a instância de solicialização de primeira grandeza, fonte vital de proteção, educação e apoio ao desenvolvimento completo do indivíduo, onde a criança estabelece seus primeiros convívios e orienta suas relações com o meio social. Nas palavras de Piaget (apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 85), a afetividade é a princípio centrada nos complexos familiais e se amplia com a multiplicação de relações sociais.
Em consonância com o entendimento de Piaget (apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 85) percebe-se que é por meio das relações familiares que a criança “forma seus primeiros juízos morais e de valor”, podendo então a depender do grau e qualidade desta interação, receber e interiorizar afetos positivos e negativos. De acordo com a abordagem piagetiana, a afetividade tem sua importância selada em cada etapa do desenvolvimento cognitivo e afetivo infantil, como se observa:
a) Estágio sensório-motor (0-2 anos): a criança passa por um momento de transição do eu para o social. Nessa fase de desenvolvimento, sobressaem as trocas afetivas e contágios com a criança em detrimento da diferenciação das pessoas e coisas.
b) Estágio pré-operatório (2-7 anos): marca a etapa da mobilidade mental da evolução afetivo-social da criança, período que prevalece o jogo simbólico e linguagem, valorização pessoal e independência em relação ao objeto afetivo da criança.
c) Operações concretas (7-11 anos): a criança passa a ter uma personalidade individualizada que constitui novas relações interindividuais que promovem novas trocas afetivas e cognitivas equilibradas.
d) Operações formais (11-15 anos): último estágio de desenvolvimento, que corresponde à adolescência, o pensamento já está formado e se amplia com as interações afetivas, a mudança social e a construção de novos valores, entre outros (PIAGET, apud SILVA; SCHNEIDER, 2007, p. 85).
Vê-se, dessa forma, que as relações familiares influenciam demasiadamente o desenvolvimento cognitivo, intelectual e afetivo da criança e do adolescente, de tal maneira que a transmissão de valores, emoções e normas determinam suas interações com outras pessoas. Pode-se pressupor que, do contrário, o desequilíbrio afetivo no convívio familiar compromete o processo de formação humana deste público.