Síntese do caso concreto.
O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), no dia 31 de março de 2020, ajuizou, no Supremo Tribunal Federal (STF), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 671), requerendo que o poder público passe a regular a utilização dos leitos de unidades de tratamento intensivo (UTIs), mesmo na rede privada, enquanto durar a pandemia do novo coronavírus.
A argumentação do partido é de que cabe ao Sistema Único de Saúde (SUS) assumir integralmente a gestão de hospitais e profissionais de saúde públicos e privados, a fim de garantir o acesso igualitário aos serviços por meio de uma fila única de acesso.
Para tanto, o partido alega que “em relação à requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, a União quedou-se inerte em adotar providências efetivas para assegurar, concomitantemente ao avanço exponencial da pandemia, a ampliação dos leitos qualificados como de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Apenas foram adotadas iniciativas isoladas nesse sentido”.
Além do mais, para expressar a necessidade da prestação jurisdicional, argumenta que “inexiste qualquer outra medida processual objetiva apta a sanar a lesividade aos preceitos fundamentais, tendo-se em vista, por um lado, a magnitude dos preceitos constitucionais violados e, por outro, a extrema urgência de uma decisão que, de maneira ampla e definitiva, sane a violação aos preceitos fundamentais e determine atuação concertada dos Poderes Públicos”.
A separação dos poderes.
O nosso Estado Democrático de Direito tem como um dos seus pilares a separação dos poderes. Isto é, Executivo, Legislativo e Judiciário são independentes e ao mesmo tempo harmônicos entre si, na forma do art. 2º da CF.
Para analisar o caso concreto, é importante sabermos que no direito brasileiro as funções políticas repartem-se entre Executivo e Legislativo, com acentuada predominância do primeiro.
Melhor dizendo, diferentemente dos Estados Unidos da América, onde o Poder Judiciário desempenha papel político relevante, chegando-se a se falar em governo dos juízes, aqui no Brasil a sua atuação deve se restringe a atividade jurisdicional.
Mas é latente que vivemos a era da interpretação neoconstitucionalista do Direito, essa que Prieto Sanchís, estimulado pelas teorizações de Robert Alexy, identifica como postura teórica que possui “mais princípios que regras; mais ponderação que subsunção; mais Constituição que lei; mais juiz que legislador; e pela coexistência de uma constelação plural de valores, por vezes contraditórios [...]” (WOLKMER e MELO, 2013)[1].
Contudo, cuidados devem ser tomados, sob pena da decapitação do Estado Democrático de Direito. Vejamos.
Requerendo o Ativismo Judicial
No caso em análise, o PSOL requer que o STF determine que o poder público passe a regular a utilização dos leitos de unidades de tratamento intensivo (UTIs), mesmo na rede privada, enquanto durar a pandemia do novo coronavírus.
Isto é, o partido requer que o Judiciário determine ao Executivo que requisite bens e serviços de um particular, a fim de concretizar o direito fundamental à saúde, à vida, à igualdade e à dignidade humana.
Claro pedido para que o Judiciário faça política. Explico.
O inciso XXV, do artigo 5°, da Constituição combinado com o artigo 15, XIII, da Lei Federal n° 8.080/90, permite a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a requisição administrativa de leitos e serviços hospitalares, “para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias”[2].
A requisição administrativa “é um ato administrativo unilateral e auto-executório que consiste na utilização de bens ou de serviços particulares pela Administração, para atender necessidades coletivas em tempo de guerra ou em caso de perigo público iminente, mediante pagamento de indenização a posteriori”[3].
Melhor dizendo, para atender as necessidades decorrentes da pandemia do coronavírus, o Estado pode, através de requisição administrativa, utilizar-se de bens ou serviços dos particulares, como por exemplo, leitos de UTI e serviços hospitalares.
Vejamos então que, ao ajuizar a ADPF, o partido está requerendo que o Judiciário determine a requisição administrativa de bens e serviços, ato administrativo revestido de autoexecutoriedade e unilateralidade, isto é, não dependente da aquiescência de quem for requisitado.
Sociedade: atente-se!
Percebendo-se, portanto, que já temos o instrumento hábil para consecução do objetivo do partido, qual seja a requisição administrativa para a utilização de leitos de UTI particulares para atender demandas do COVID-19, não há que se falar em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF.
Aliás, a própria Lei n.º 9.882/1999, que disciplina a ADPF, no art. 4º, § 1º, dispõe que não será admitida a ação “quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”. Ou seja, a ação deve ser indeferida liminarmente.
Desse modo, podemos concluir que não podemos permitir o governo dos juízes, não podemos permitir que o Poder Judiciário seja a camuflagem do Poder Moderador e, sendo assim, parece-nos cabível que o STF realize o Inativismo Judicial, reconhecendo a sua incompetência para consecução da requisição administrativa de leitos de UTI para combate ao coronavírus, pois isto é ato administrativo do Poder Executivo e, por conseguinte, deve-se socorrer-se nele.
Lembremos: onde tudo se pode, alguém nada vai poder.
Notas
[1] SANTANA, Jamil Pereira de. A desincorporação do militar temporário do Exército devido a moléstia que o afaste do serviço por 90 dias: da legalidade à juridicidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6095, 9 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78138. Acesso em: 1 abr. 2020.
[2] https://jus.com.br/artigos/80652/covid-19-possibilidade-de-requisicao-administrativa-de-bens-e-servicos-de-ente-federativo
[3] http://raquelcarvalho.com.br/2019/03/29/requisicao-administrativa-aspectos-basicos-do-regime-juridico/