Resumo: O artigo levanta possíveis impactos sociais, econômicos, culturais e orçamentários da concessão ou não do salário-maternidade às mulheres indígenas menores de 16 (dezesseis) anos da etnia Guarani em ações coletivas. O trabalho usa os contornos da Ação Civil Pública n.º 5009160-45.2018.4.03.6100 para conscientizar o leitor acerca de efeitos hipotéticos advindos da judicialização deste tema previdenciário.
Palavras-Chave: Salário-Maternidade; Consequencialismo; Judicialização.
Sumário: 1. Nhepyrungá (Para iniciar); 2. Limites da Pesquisa; 3. Contingências colaterais das alternativas; 4. Estudo de projeções das consequências mapeadas e pontos comuns; Pahapê (considerações finais); Kuatiá Nhe'e (Referências).
A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo. [...]
Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos. Tomara que estes encontros criativos que ainda estamos tendo a oportunidade de manter animem a nossa prática, a nossa ação, e nos deem coragem para sair de uma atitude de negação da vida para um compromisso com a vida, em qualquer lugar, superando as nossas incapacidades de estender a visão a lugares para além daqueles a que estamos apegados e onde vivemos, assim como às formas de sociabilidade e de organização de que uma grande parte dessa comunidade humana está excluída [...].[2]
Nhepyrungá[3] (Para iniciar)
O povo Guarani se subdivide em três troncos: (i) os Kaiowá; (ii) os Ñandeva; e, (iii) o Mbya. Precisamente nessas culturas que se abre o tema da “concessão de salário-maternidade às mulheres indígenas: o caso Guarani”.
Trata-se do estudo dos autos da Ação Civil Pública (ACP) nº 5009160-45.2018.4.03.6100/SP ajuizada pelo Ministério Público Federal e pela Fundação Nacional do Índio na 2ª Vara Previdenciária Federal de São Paulo em face do Instituto Nacional do Seguro Social no âmbito do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Sabendo-se que a Instrução Normativa INSS/PRES n.º 45/10, alterada pela IN INSS/PRES n.º 61/12, já enquadra o indígena como segurado especial do Regime Geral da Previdência Social (RGPS).
Debate-se se as mulheres indígenas menores de 16 anos podem ser cadastradas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como seguradas especiais, em que pese o limite etário preconizado nos artigos 18, § 2º do Decreto n.º 3.048/99, 11, VII, c, da Lei n.º 8.213/91 e 7º, XXXIII, da Constituição Federal.
Tal discussão jurídica toma por pilares a Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho, a Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas, a Convenção OIT n.º 103 de proteção da maternidade, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, o Estatuto do Índio e o princípio do efeito integrador também contido no artigo 231 da Constituição.
A partir disso, o objeto de estudo se circunscreve aos argumentos consequencialistas levantados nos autos citados, como um suposto impacto orçamentário da extensão de um benefício previdenciário pela via judicial.
Assim, estudaremos se tais afirmações são baseadas em dados estatísticos confiáveis ou se veiculam ilações especulativas, assim como se tais alegações podem (ou devem) ser consideradas pelas decisões judiciais no contexto de ações civis públicas. Também, importa aferir o peso argumentativo dado pelo Judiciário a esses impactos.
Importante explicar como se deu o início dessa agenda no cenário judicial da Terceira Região.
Primeiramente, a Funai informou ao Ministério Público Federal (MPF) o indeferimento de vários pedidos administrativos de concessão de salário-maternidade feito por mães da etnia guarani e menores de 16 anos, com base no artigo 7º, XXXIII, da Constituição Federal.
É justamente nesse contexto que o jurista se vê diante de um desafio normativo, qual seja: poderia o direito à igualdade – em sua faceta de reconhecimento multicultural – embasar o embate entre a necessidade de tutela da infância e da maternidade na cultura Guarani e os padrões normativos dominantes da República Federativa Brasileira acima citados?
Feito esse questionamento, cumpre-nos destacar que as mulheres indígenas Guarani costumam ser mães antes dos 16 anos; e, embora muitas preencham os demais requisitos da categoria como seguradas especiais, seus pedidos de concessão do salário-maternidade têm sido negados pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) com base no critério “idade”.
Detalhando: as crianças Guarani[4] são, desde cedo, inseridas no processo de sociabilidade econômica. Em outras palavras, as crianças Guarani participam das atividades produtivas de suas comunidades, o que não pode ser considerado exploração infantil.
Nessa esteira, o laudo antropológico produzido na Ação sob estudo indicou que o povo Guarani utiliza marcos de divisão etária entre infância e juventude (como o da menarca) diferentes daqueles praticados por nossa sociedade.
Ainda que disso tivesse ciência, o INSS manteve seu entendimento de que a concessão do benefício previdenciário a menores de 16 anos – Guarani ou não – não encontra respaldo na legislação previdenciária.
Com efeito, a Autarquia previdenciária deixou claro que as mulheres Guarani, abaixo de 16 (dezesseis) anos, não poderiam ser reconhecidas como seguradas especiais para fins de concessão do salário-maternidade.
Em vista dessa posição institucional, ocorreu a proliferação de ações coletivas ajuizadas nas cinco regiões da Justiça Federal.
Inclusive, em pesquisa na base de jurisprudência dos Tribunais Federais, notamos que o TRF1 e o TRF3 possuem 2 (dois) processos cada, ao passo que não se localizaram ações dessa espécie no TRF2 e no TRF5. Ainda, o catálogo jurisprudencial do TRF4 mostrou a existência de 11 (onze) processos envolvendo outras tribos, isto é, indígenas de etnia diversa da Guarani.
Ocorre que algumas ações coletivas foram julgadas procedentes, estendendo o salário-maternidade para outras tribos sem alcance nacional, o que dificultou o tratamento uniforme, homogêneo e coerente da questão indígena na seara previdenciária.
Sem perder o foco da ACP escolhida, a maior parte das decisões espalhadas por nossa Justiça Federal lançaram mão de argumentos consequencialistas – independentemente do viés decisivo final favorável ou desfavorável ao pleito da população indígena – tanto para conceder quanto para vetar a concessão do benefício previdenciário.
A partir disso, importante observar se o uso da argumentação consequencialista foi de cunho retórico, descolado da realidade fática, ou se o Judiciário checa (e se tem a capacidade institucional para tal raciocínio técnico) a veracidade de dados e estatísticas apresentados. Também, significativo investigar se a exposição consequencialista serve como estratégia decisória para livrar-se das amarras da legalidade estrita ou para reforçar paradigmas tradicionais já apascentados pelo INSS.
Limites da Pesquisa
Vimos que o objeto processual referencial versa sobre o reconhecimento do direito ao salário-maternidade às seguradas indígenas da etnia Guarani, localizadas na Subseção Judiciária de São Paulo, independentemente da idade, conforme os ditames culturais próprios da cultura Guarani.
Visto isso, convém assinalar que esse artigo jornalístico não tem por objetivo resolver o caso concreto estudado, haja vista que faremos uso dos precedentes mencionados anteriormente no âmbito da Justiça Federal, bem como dos trabalhos acadêmicos referenciados ao final. Tudo isso com o objetivo de levantar possíveis riscos sistêmicos identificados, omissões e possíveis consequências das alternativas de ação que se põem num caso dessa magnitude (inclusive, com a consideração do estado de não intervenção).
Assim, importante que o leitor considere que esse escrito não é feito na condição de julgador, razão pela qual refletiremos sobre os paradoxos encontrados nos julgados com ceticismo sem uma intenção de conclusão decisiva favorável a um curso de ação determinado.
Dessa forma, não se pretenderá adentrar em polêmicas ou minúcias de fato ou de direito relativas ao caso selecionado, e sim conscientizar para a dificuldade, ainda que pericial, de mensurar impactos e mapear as alternativas especuladas de determinado programa de ação.
Dados os limites temporais e espaciais pré-fixados desta pesquisa, o presente trabalho não objetiva aferir se as rotas escolhidas, de fato, levaram aos resultados mencionados nas decisões judiciais. Com efeito, o trabalho pretende apontar como a percepção de eventuais consequências influem no debate sobre as tendências da judicialização em matéria previdenciária.
Assim, atente-se o leitor que o propósito do artigo é identificar as consequências ligadas ao caso escolhido, sem necessariamente qualificá-las como boas/ruins seja a curto/longo prazo, dada a complexidade que isso envolveria. Tampouco tomaremos por escopo criticar ou analisar o conteúdo da decisão em si, pois o tema subjacente salta além do deslinde deste caso concreto.
Por isso, no terceiro tópico, levantaremos hipóteses e, no quarto, pinçaremos algumas para tentar confirmar se as intuições iniciais são verificáveis objetivamente, sem pretensão de assentar verdades ou certezas técnicas sobre os resultados judiciais, dados os limites cognitivos deste estudo.
Nessa esteira, convido o leitor a se desapegar dos textos tipicamente jurídicos, e a se desvencilhar da visão maniqueísta sobre verdadeiro/falso. Assim, buscaremos reunir as informações e as respectivas fontes no decorrer deste texto para problematizar as idealizações da capacidade epistêmica do magistrado de radiografar os efeitos de determinados cursos de ação e como compatibilizar tais limites com o dever de justificação do processo decisório de forma racional e interlegalidades.
Por fim, o presente trabalho ganha relevância com a obrigação imposta no artigo 20, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, alterado pela Lei n.º 13.655/18. O Judiciário deverá sopesar as consequências das possíveis alternativas, tais como custos, benefícios diretos e indiretos, riscos, dificuldades de execução, possíveis incentivos à judicialização, efeitos nas partes processuais e terceiros e na estabilidade do ordenamento jurídico.
Contingências colaterais das alternativas
A decisão escolhida perfaz um bom modelo para estudo, uma vez que a liminar concedeu a tutela provisória para impedir que o Instituto Nacional do Seguro Social exigisse idade mínima de 16 (dezesseis) anos e 10 (dez) meses de carência nos processos administrativos de salário-maternidade referentes às indígenas Guarani. Posteriormente, a sentença julgou improcedente o pedido quando da revisitação dos dados coletados e revelou um novo olhar sobre a prova constante dos autos.
Dito isso, começaremos a analisar possíveis efeitos da não concessão do benefício previdenciário pretendido.
O Laudo Antropológico utilizado na ACP nº 5009160-45.2018.4.03.6100/SP[5] indicou que a tribo Guarani não teria autonomia financeira fora do âmbito estatal, uma vez que sua base de sustentação adviria do trabalho em órgãos governamentais da aldeia, da aposentadoria e de programas de transferência de renda.
Tomando esse fato como ponto de partida, é plausível conjecturar que, sem a concessão do salário-maternidade em idade adequada à cultura Guarani, a comunidade perderia seu meio principal de manutenção econômica, vindo a se extinguir sua cosmovisão em decorrência da necessidade de buscar meios de sobrevivência típicos dos “brancos”. Ou seja: essa medida transformaria a visão da “maneira correta de ser guarani” (ñande reko) [6].
Nessa linha de ideia, não se preservaria a diversidade e a memória cultural de um Estado pretensamente pluriétnico, nem o direito à diferença, ao patrimônio cultural e à autonomia, dado que a ausência de recursos financeiros acarretaria uma assimilação contínua pela sociedade circundante. Isso porque a atividade típica da tribo, como a pesca e a agricultura, não viabilizaria a sobrevivência dos Guarani, levando-os a buscar empregos no mercado formal do “branco”, inclusive com possíveis fluxos emigratórios.
Portanto, em linha de princípio, essa opção não respeitaria os usos e os costumes comunitários preconizados no artigo 1° da Lei n.º 6.001/73, o que traz a base normativa para a acomodação dessa hipótese consequencial. Isto é: os juízos tendem a ponderar mais os impactos factíveis que conduzem a disposições normativas. Apesar disso, é admissível imaginarmos um outro lado da moeda dessa conjuntura.
Assim, não se pode dispensar a possibilidade de que a relação da dependência econômica dos índios Guarani com o Estado também ocasione risco à diversidade, porque esse controla os requisitos de fruição dos benefícios previdenciários, exigindo a adaptação das comunidades indígenas às exigências expressas na regulamentação pública. Nesse viés, a concessão do benefício poderia superdimensionar as relações econômicas intrincadas entre a tribo e o Estado, tornando secundárias as atividades típicas como a pesca e a agricultura.
Bem por isso, é crível pensarmos que a não intervenção poderia otimizar soluções autorreguladas e a autonomia cultural como o apoio familiar, sem alterar a mobilidade social e a composição da aldeia em volta das alianças familiares. Diante disso, importa não nos esquecermos do prejuízo à subsistência da família Guarani, nos moldes tradicionais de agricultura e pesca, pela redução do tamanho de suas terras e ausência de acesso à tecnologia.
Feito esse diagnóstico, o risco de homogeneização cultural poderia levar à fragilização da questão fundiária, uma vez que a noção de “índio integrado” ainda permeia o discurso jurídico. E, com essa uniformização cultural, o grupo passaria, portanto, a “integrar” a sociedade envolvente, e não teria o direito ao reconhecimento e demarcação de suas terras, haja vista a descaracterização da raiz indígena.
Assim, ao fim, o fortalecimento dessa dependência econômica poderia levar ao esquecimento e à invisibilidade das pautas políticas desse grupo minoritário.
A propósito, podemos enfrentar tal fato sob dois vieses:
o não funcionamento dos meios de subsistência tradicionais forçaria a integração da etnia Guarani na sociedade “branca” com assimilação de seu modo de enxergar a maternidade e a economia doméstica com injunções culturais novas; ou
tal mudança de perspectiva cultural em nada se relacionaria com a ausência do salário-maternidade, tendo a proximidade geográfica, os novos meios de comunicação ou outro fator desconhecido viabilizado a nova visão das mulheres Guarani sobre “maternidade precoce”, casamento e as opções existenciais de vida.
Supondo que a primeira opção tenha maior aderência à realidade, a abstenção inicial de concessão do salário-maternidade em qualquer idade às mulheres Guarani conjugada com a inexistência de políticas públicas incentivadoras das práticas tradicionais de sobrevivência da tribo mascararia um processo não natural de adaptação ao meio circundante.
Por outro lado, pensando-se na segunda alternativa como mais factível, fortalece-se o juízo de improcedência a partir da constatação de que a proteção da diversidade não se antepõe como necessária, quando se percebe a transformação sociológica do pacto de gerações.
Apesar disso, ainda é plausível pensarmos que os Guarani, mesmo incorporando elementos “ocidentais”, não estejam perdendo sua identidade étnica, pois é um erro pensar a etnia como estática, pois ela se transmuta com o passar do tempo, como a nossa sociedade.
Neste ponto, a própria sentença mencionou na razão de decidir depoimentos de jovens indígenas acerca da preocupação com estudos, com profissão, com casamento, com contraceptivos[7] e com planejamento familiar. Sem o amparo econômico, as mulheres tenderiam, conforme esses relatos, a se preocupar mais com aspectos de sobrevivência, com a consequente redução da prole.
Inclusive, pudemos colher a narrativa[8] de que os Guarani passam atualmente por essa modificação cultural, porque as mulheres Guarani tenderiam a postergar a maternidade para ter o respaldo financeiro. Entretanto, importa-nos afastar a visão homogênea da comunidade Guarani e ter cautela com a legitimidade do “lugar de fala” de intermediários em protocolos de consulta.
Ainda nesses termos, a interpenetração das culturas tanto pode ser um rastro de perda da diversidade e da autonomia, entrelaçada pela inexistência de meios financeiros próprios de subsistência, como pode ser um processo natural que já vinha ocorrendo por força das tecnologias e da intrusão do espaço geográfico.
Passada essas reflexões, convém pensar sobre os impactos da não concessão do salário-maternidade sobre o comportamento reprodutivo das novas gerações indígenas.
Na etnia Guarani[9], a mestruação (menarca[10]) consolida o momento em que a mulher deixa de ser considerada criança/adolescente e passa a ser mulher. Para averiguar tais consequências, a sentença, de forma louvável, lançou mão de pesquisas acadêmicas para enfrentamento do tema[11].
Assim, se estipulado que a concessão do benefício tem o potencial de aumentar as estatísticas do número de crianças e adolescentes grávidas nas comunidades Guarani, a questão da gravidez de risco ante a faixa etária estará posta em xeque.
Isso levantaria outros tópicos de saúde pública que necessitariam de tratamento adequado pelo Ministério da Saúde, em estudo preliminar, já que não se poderiam antever (“consequenciachismo”[12]) os reais impactos, como o risco da gravidez na adolescência.
Talvez revele ingenuidade pensar que a não concessão do salário-maternidade implicará a redução dos índices de maternidade “precoce”, e exatamente nessa perspectiva, deixa entrever um debate que permeia a preocupação com gastos públicos oriundos dessas classes marginalizadas. A prevalecer essa percepção, as gravidezes “precoces” não deixarão de ser praticadas com a negativa do benefício, a qual apenas viabilizaria a manutenção da precariedade das condições de vida dos aborígenes.
Continuando: existem elementos que indicam a possibilidade de impacto desproporcional em face das mulheres Guarani, conforme apontado pelo Ministério Público Federal.
Nessa ótica, a negativa do benefício equivaleria à violação do direito ao autorreconhecimento e das formas próprias de definição do conceito de criança e adolescente. Apesar disso, deve-se atentar para as crenças do imaginário coletivo, ou mesmo das pré-compreensões dos sujeitos envolvidos de atrelar o início “precoce” no trabalho e na maternidade a todos as etnias indígenas.
Explicamo-nos, não se sabe precisar pelos dados analisados nas ações coletivas e na literatura referenciada se todas as etnias indígenas enfrentam o mesmo ethos cultural quanto à maternidade e à inserção econômica da mulher, razão pela qual se necessita de laudo antropológico específico e que justifica a limitação do presente estudo à etnia Guarani. Assim, termos como “sabidamente” ou “notório” são indicativos de tendências cognitivas sem base científica e, a partir dessas ilações, faz-se juízos de causalidade.
De todo modo, o Estatuto do índio estabelece a proibição de discriminação dos trabalhadores indígenas em relação às garantias previdenciárias, permitindo a adaptação das condições de trabalho aos costumes próprios nos termos da interpretação sistemática-teleológica do artigo 14.
Nesse sentido vão os artigos 231 da Constituição Federal, 24 da Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (Decreto n.º 5.051/04) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas. Assim, a não concessão implicaria violação a tais normativos em quebra das expectativas internacionais, com abertura de margem para responsabilização nas Cortes internacionais.
Outros fatores de peso seriam os possíveis impactos na maternidade e na proteção à gestante tuteladas no artigo 201, II, e 6º, caput, da CF. Em outros dizeres: a não concessão do salário-maternidade deixaria sem proteção as mães indígenas com redução da capacidade de absorção dos gastos naturais da parturiente, assim como obrigando a permanência no trabalho. Com isso, é possível que haja consequências severas no desenvolvimento da criança e na própria saúde da mãe. No entanto, tal hipótese pode vir a ser descartada se pensarmos como anteparo o dever estatal de garantia de assistência médica-hospitalar à gestante e ao recém-nascido, por exemplo.
Também devemos ponderar a hipótese de intervenção judicial para a concessão do salário-maternidade às índias menores de 16 (dezesseis) anos.
Em outro panorama, talvez se possa cogitar que a concessão do salário-maternidade na Ação Coletiva em questão venha a estimular a inserção precoce de crianças e adolescentes Guarani no mercado de trabalho informal em prejuízo ao seu desenvolvimento integral escolar e profissional.
O INSS indicou que o pedido de reconhecimento do labor campesino da indígena “impúbere” em momento futuro e generalizado, acabaria por autorizar a atividade antes dos 16 (dezesseis) anos. Já o MPF, de seu turno, indicou uma espécie de contradição da finalidade de proteção do artigo 7º, inciso XXXIII, da Lei Maior, porquanto a proibição do trabalho do menor não poderia resultar em prejuízo para aqueles a quem objetiva tutelar.
Em outras palavras: a mesma situação fática sofre duas interpretações, servindo de base para um juízo de improcedência e, ao mesmo tempo, de procedência a depender da visão acolhida.
Sendo assim, examinaremos se há mecanismos técnicos hábeis a prever se o reconhecimento ou não do período tem potencial de gerar desproteção ou incentivo ao exercício da atividade profissional antes dos 16 (dezesseis) anos. Isso porque o presente artigo pretende levantar a perceptividade de que, em geral, soluções fáceis para problemas difíceis e estruturais costumam estar erradas holisticamente.
Primeiramente, há indícios de que a necessidade de trabalhar antes do tempo, sobremaneira no âmbito rural, não se restringe à realidade das índias Guarani e sim da população campesina em si que precisa colaborar com o sustento familiar prematuramente.
Em vista disso, pontuamos que a classe campesina não desfrutaria da concessão do salário-maternidade em violação ao princípio da igualdade. Isso porque a não flexibilização da idade para a caracterização como segurado especial desse grupo implicaria sensação de injustiça, podendo desencadear protestos e descontentamentos da população afetada.
Nessa esteira, é plausível que tal medida judicial possa levar à acentuação das desigualdades sociais em comparação com as outras crianças nascidas no meio rural e que também trabalham antes dos 16 anos e não são indígenas.
Outra hipótese consiste na própria concessão do salário-maternidade, restrita a determinadas etnias, que poderia gerar conflitos entre os grupos indígenas próximos geograficamente, a depender dos resultados diversos das ações coletivas, por exemplo.
Em outro olhar, a imersão do Judiciário nas políticas públicas moldadas pelo Legislativo e Executivo representaria, a princípio, afronta à tripartição de funções na criação de benefício por analogia?
Bem, podemos pensar que a concessão do salário-maternidade às indígenas Guarani, à revelia do artigo 2º e do artigo 7º, inciso XXXIII, ambos da Constituição Federal, poderia ocasionar um efeito cascata de judicialização dos direitos previdenciários com incremento da litigiosidade.
A esse respeito, espelhados nos demais casos encontrados na pesquisa jurisprudencial, podemos estipular que um dos efeitos sistêmicos do primeiro caso de extensão do salário-maternidade às indígenas com menos de 16 (dezesseis) anos resultou na judicialização pelo Brasil do tema em outras varas judiciais, buscando a implantação judicial do benefício fora da arena legislativa, portanto.
Na perspectiva coletiva, antes do ajuizamento da Ação Civil Pública em estudo, já estava em andamento a Ação Coletiva n.º 0009749-31.2009.403.6103, com idêntico objeto, só que restrito à população Guarani de Ribeirão Silveira, em São Sebastião/SP na Vara de São José dos Campos na Terceira Região.
Já no viés individual, uma visão sobre essa grande realidade, lançada em breve relato[13], indicou que a liderança indígena Guarani já não estimularia a judicialização individual do direito ao salário-maternidade dado esse constrangimento. Assim, podemos refletir que a não concessão do benefício previdenciário afetaria o acesso à justiça das mulheres Guarani e a decisão sobre a forma do planejamento familiar na etnia Guarani.
Também observamos, no próprio âmbito institucional interno da Advocacia-Geral da União, permanente controvérsia, uma vez que o Parecer Conjunto n.º 01/2016/Subgrupo OS n.º 30/2014/DEPCONSU/PGF/AGU[14] foi favorável ao reconhecimento da concessão salário-maternidade, porém sem caráter vinculante, pois de encontro ao estabelecido no Despacho PGFN n.º 1321/2016.
Assim, em face desse desacordo sistêmico, não se permite ao Procurador do INSS o reconhecimento do pedido, a celebração de acordos judiciais ou a abstenção de contestar ou recorrer, o que implica judicialização, ao menos na via coletiva.
E, na prática, com a judicialização emblemática da concessão do salário-maternidade e com a proliferação de ações com diferentes decisões variando por Região e Vara em que ajuizada a ação coletiva, enfrenta-se, decerto, um risco à coerência[15] e à integridade sistêmica, assim como à homogeneidade da interpretação do direito[16], à previsibilidade, à segurança jurídica e à consistência.
Por exemplo, há decisões que estendem o benefício a partir de 14 (catorze) anos em comparação com a figura do aprendiz. Todavia, a etnia Guarani não trabalha com a noção de faixa etária e tampouco com a concepção de estudo regular incentivado pela Lei n.º 10.097/2000.
Conjuntamente, não só há um risco ao funcionamento da democracia, que demanda oxigenação por suas vias normais parlamentares, como também riscos de fricções internas com o sistema cultural Guarani, de maneira a pressionar o ethos e provocar mudanças não espontâneas.
A exemplo, podemos estimar, em exercício hipotético, que a concessão do salário-maternidade poderá alterar a fonte de renda do núcleo familiar (consubstancialidade) em torno da mulher Guarani, titular do benefício, com o seu consequente empoderamento.
A partir disso, ocorreria a emancipação da mulher Guarani que passaria a ganhar voz na aldeia influenciando no destino das verbas públicas recebidas, passando a traçar caminhos alternativos, remodelando a autorregulação do povo Guarani no Estado de São Paulo.
A etnografia não permite que identifiquemos os indígenas como integrantes de uma bolha cultural, na medida em que há interpenetrações que, de modo algum, deslegitimam o estado de indígena. Entretanto, uma mistura da “solução branca”, exógena e estatal, com os expedientes internos poderia, em tese, prejudicar a evolução da cosmologia por seus próprios processos.
De outra parte, na ação coletiva selecionada, houve a interposição do agravo de instrumento em face da concessão da liminar no curso processual. Tal peça baseou sua argumentação no perigo de grave dano ao erário no deferimento dos benefícios de salário-maternidade.
Assim, o gasto de recursos públicos, em um contexto em que se põem gargalos no financiamento da Previdência Social – já escasso e finito – levanta um impacto sem o cálculo respectivo, apenas a título retórico. Importante notar que a negativa do benefício previdenciário, com base em argumentos utilitaristas, não apela para a opinião pública, e talvez seja a razão pela qual não seja processado pelos meandros políticos tradicionais.
É provável que esse seja um indício pelo qual as ações coletivas continuam sendo ajuizadas, uma vez que as instâncias políticas podem não querer dispender capital político no assunto.
Nesse sentido, é possível que o próprio Ministério Público Federal não tenha, necessariamente, por objetivo o sucesso da ação coletiva ajuizada e sim conscientizar as classes políticas e a mídia para um problema sem solução legislativa/executiva em progresso, e forçar a outra parte (INSS) a tomar conhecimento, independentemente da (im)procedência do pedido, impedindo a invisibilidade dessas lacunas sociais.
Entretanto, em um sistema previdenciário de repartição simples, marcado pela solidariedade, o efeito multiplicador poderia afetar a concessão de outros benefícios e serviços contemplados aos demais segurados obrigatórios do RGPS, prejudicando a universalidade da cobertura, do atendimento, da seletividade subjetiva (art. 194, III, CF/88), da distributividade e a uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais.
Visto isso, é plausível pensar que a extensão do salário-maternidade para situações não contempladas na Lei comprometeriam o equilíbrio financeiro e atuarial (artigo 201, caput, CF), norteador do RGPS, nos termos do artigo 201, caput, da Constituição da República. Esse impacto de verniz orçamentário será melhor analisado no próximo item.
Em outro norte, a concessão do salário-maternidade demandaria trabalho de inscrição e cadastramento dos indígenas junto ao Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) pelos servidores da FUNAI. Assim, teríamos um problema de gestão de pessoas, na medida em que a União deveria destacar servidores públicos especializados para o trabalho.
Em segundo lugar, no caso em que há falecimento da mulher com benefício em curso ou durante o parto, na cultura Guarani em que os registros de casamento são orais, verificaríamos a dificuldade de comprovação da união para o gozo do benefício em curso. E, em terceiro lugar, temos o problema de o sistema CNIS não admitir a inscrição de indígenas menores de 16 anos, o que exigiria correções no sistema.
Outro ponto a ser refletido na concessão do benefício consiste em aferir se há relevância na categorização do indígena como aldeado, não-aldeado, em vias de integração, isolado ou integrado para fins do gozo do benefício. Nas ações coletivas não se levam em consideração tais distinções, dando a entender um tratamento uniforme. Não param por aí as indagações.
São inúmeras questões que continuadamente se põem: o trânsito em julgado da sentença pacifica a controvérsia ou, se tratando de uma demanda estrutural, podemos flexibilizar a coisa julgada para um novo pensar futuro mais amadurecido com as experiências anteriores? Quais os efeitos sistêmicos da concessão da liminar até o julgamento da sentença, ou da sentença até o julgamento pela segunda instância? Como conciliar os interesses públicos, os princípios constitucionais e os bens jurídicos em jogo nessa transição temporal?
Certo que a maturação do tema se mostra relevante para a reunião de mais dados, pesquisas e estatísticas, porém não se pode deixar o julgamento em aberto durante muito tempo sob pena de transfigurar em negativa transversa.
De todo modo, não há respostas fechadas para essas perguntas, e sim uma orientação da preocupação do juízo quanto ao caso submetido ao seu exame. Em continuidade, a concessão do salário-maternidade teria de ultrapassar a idade mínima trazida pelo artigo 11, inciso VII, alínea “c”, da Lei n.º 8.213/91. Para tanto, a extensão do benefício demandaria a flexibilização da legalidade estrita ao desprezar o limite etário mínimo ali explicitado.
Com isso, talvez se gerasse uma sensação de descolamento da classe judicial dos lindes legais. E, assim, talvez em outros casos e demandas judiciais os juízes federais se sentissem mais confortáveis para deixar de seguir a letra estrita da lei, colocando em risco a segurança jurídica e a confiabilidade na coerência do sistema.
Também poderia ocasionar uma politização do Judiciário deslocando demandas cujo foro adequado seria o Legislativo/Executivo para o Judiciário, e viabilizando tentativas de captura decisória no âmbito deste Poder com riscos à independência institucional.
A mesma situação-problema tomada sob outras lentes mostraria o Judiciário como um espaço democrático de construção de Direitos, ainda que à margem da competência do Legislativo, o que suscitaria novos influxos à separação de poderes[17] contida no artigo 2º da Constituição.
Nessa ordem de ideias, esforços como o de Grupos de Trabalho que propõem a alteração do artigo 18, § 2º do Decreto n.º 3.048/99 para acomodar a hipótese da segurada indígena menor de 16 (dezesseis) anos seriam reduzidos em prejuízo ao sentimento democrático e à deliberação pública de agendas cruciais.