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Covid-19 e eleições municipais de 2020: erros e acertos da EC 107 de 2020

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Examinamos a constitucionalidade das disposições trazidas na EC 107/220, bem como a questionada necessidade de prorrogação das eleições municipais do corrente ano.

Introdução

Fechamento do comércio e serviços não essenciais, suspensão de prazos na Justiça, trabalho remoto em Órgãos Públicos e em empresas privadas, decretos de calamidade pública e até mesmo fechamento quase que total de cidades (lockdown). Esses são alguns dos reflexos e consequências causados pela pandemia do novo Coronavírus (Covid-19) no Brasil.

Todas são medidas que visam à manutenção de um isolamento social ao evitar aglomerações em ambientes fechados, transportes públicos e a grande circulação de pessoas nas cidades, as quais já vêm até sendo mitigadas em alguns grandes centros, mas que, em razão da ausência de um medicamento eficaz ou de uma vacina para a doença, não possuem um prazo específico para o seu término completo.

Como 2020 é ano de realização de eleições municipais, inevitável não questionar se o calendário eleitoral sofreria os efeitos da pandemia. Não só pela data da realização das eleições em si – primeiro e último domingos de outubro[1] – mas por todas as datas e prazos que estão a ela relacionados. A prorrogação, que inicialmente vinha sendo afastada pelas autoridades, ganhou cada vez mais força com a manutenção das medidas de isolamento e com o discurso de posse do atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O Ministro Luís Roberto Barroso admitiu[2] o adiamento, mas afirmou que, em hipótese alguma, acarretaria extensão de mandato dos vereadores e prefeitos que hoje se encontram em exercício. Ficou em aberto a possibilidade de as eleições serem realizadas no mês de novembro, ou até mesmo em dezembro[3], a depender do que recomendarem as autoridades de saúde.

Com a aprovação da PEC 18/2020, dando origem a Emenda Constitucional (EC) n. 107, de 2020, que prorroga as eleições municipais de 2020 para novembro,  propõe-se um estudo a respeito da real necessidade da prorrogação, de como ela pode ser operacionalizada e da constitucionalidade das disposições trazidas pelo constituinte derivado. Em uma breve incursão nas etapas do devido processo legal eleitoral, busca-se também esclarecer como a Justiça Eleitoral está se adaptando às atuais medidas de isolamento.


1 Da Emenda Constitucional e a normatização por parte do TSE

O rearranjo da organização das eleições em prazos não convencionais não é novidade para os Tribunais Eleitorais – especialmente no que tange às eleições municipais –  porque, após a inclusão dos §§ 3º e 4º no art. 224 da Lei 4737/65 (Código Eleitoral), ficou estabelecido que novas eleições devem ser realizadas nos casos de indeferimento de registros, cassação de diploma ou perda de mandato de candidato eleito[4], e de acordo com calendário estabelecido pelo Tribunal[5].

Apesar dessa experiência, a reorganização de um calendário completo para todos os cargos de âmbito municipal é muito mais complexa[6], ainda mais se considerado que medidas adicionais terão de ser tomadas quanto à higienização e a manutenção de uma distância segura entre as pessoas nos locais de votação[7].

A efetivação de tal adiamento somente pôde ocorrer por meio legal. Já entenderam o TSE e o Supremo Tribunal Federal (STF), em clara manifestação da autocontenção judicial, que não cabia ao Judiciário prorrogar prazos, mas sim ao Legislativo[8]. Atenção especial teve de ser dada à prorrogação da data de realização do pleito: por ser estipulada na Constituição[9] (CRFB), somente uma emenda constitucional poderia promover tal alteração.

A emenda poderia ser específica para a atual situação – hipótese em que nem integraria o corpo físico da CRFB – ou ser uma previsão genérica, trazendo os requisitos para que adiamentos de pleitos eleitorais fossem possíveis, o que poderá ser aproveitado para outras situações excepcionalíssimas como a atual[10].

O Congresso Nacional promulgou, em 02 de julho, o texto aprovado na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 18 de 2020, optando pela primeira das duas opções listadas no parágrafo anterior, adiando a data das eleições para os dias 15 e 29 de novembro em primeiro e segundo turnos, respectivamente. Também fixou, dentre outros, prazos específicos para a realização de Convenções Partidárias, Registro de Candidaturas, início da Propaganda Eleitoral, prestação e julgamento das constas e diplomação.

Ao prever essas datas no texto da PEC, o Parlamento assumiu um risco muito grande de engessar o pleito. Em razão das incertezas quanto ao fim das medidas restritivas, disposições com relação ao novo cronograma eleitoral deveriam ter sido delegadas por inteiro ao TSE, de forma similar ao que prevê a Resolução 23.280/10.

A regulamentação das matérias eleitorais por meio de Resoluções é um dos traços mais marcantes da Justiça Eleitoral. A possibilidade dada ao TSE de expedir atos normativos[11] garante a dinâmica própria do processo eleitoral, seja pelas necessidades relacionadas aos atos executivos de preparação da eleição, seja pela necessidade de dar precisão à legislação.

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Além das resoluções que tratam de assuntos pertinentes ao regular funcionamento da Justiça Eleitoral, a cada eleição são expedidas resoluções especificas para o pleito[12]. Dentre outras matérias, elas tratam sobre propaganda, arrecadações, gastos e prestações de contas. Para fins deste estudo, se destaca a que estabelece o Calendário Eleitoral, indicando, cronologicamente, todos os atos que devem ser realizados para a preparação, realização e o pós-eleição.

O alendário pré-pandemia para as eleições de 2020 estava previsto na Resolução 23.606/2019. De sua leitura se verifica que existem prazos de duas ordens: com data certa, como é o caso do registro de candidatura; e os que têm como base a data da eleição, como os relativos à propaganda eleitoral.

Houve sim uma preocupação com a não melhora das condições sanitárias até novembro e da possibilidade de o TSE e/ou o Congresso Nacional, em atenção à casos específicos, modificarem as datas, trazidas na EC. Vejamos:

EC 107 de 2020 – Art. 1º [...]

§ 4º No caso de as condições sanitárias em um determinado Município não permitirem a realização das eleições nas datas previstas no caput, o Plenário do Tribunal Superior Eleitoral poderá, de ofício ou por provocação do Presidente do Tribunal Regional Eleitoral respectivo e após oitiva da autoridade sanitária nacional, designar novas datas para a realização do pleito, tendo como data limite o dia 27 de dezembro de 2020, bem como dispor sobre as medidas necessárias à conclusão do processo eleitoral, dando ciência do fato à Comissão Mista de que trata o art. 2º do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.

§ 5º No caso de as condições sanitárias de um Estado não permitirem a realização das eleições nas datas previstas no caput, o Congresso Nacional, por provocação do Tribunal Superior Eleitoral, instruída com manifestação da autoridade sanitária nacional, e após parecer da Comissão Mista de que trata o art. 2º do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, poderá editar decreto legislativo designando novas datas para a realização do pleito, tendo como data limite o dia 27 de dezembro de 2020, cabendo ao Tribunal Superior Eleitoral dispor sobre as medidas necessárias à conclusão do processo eleitoral.

Essa fixação de datas por meio de Decreto Legislativo ou de manifestação do TSE deveria ter sido estendida a todos os prazos e datas eleitorais, com a EC se limitando a autorizar a fixação infraconstitucional e infralegal deles. Os reflexos da pandemia decorrentes da Covid-19 podem demandar a readequação dos prazos, de modo que essa modificação casuística nela prevista (feita Município por Município, Estado por Estado) pode ser morosa e comprometer a eficiência das eleições, assim como causar gastos extraordinários com realização de votações em datas distintas ao longo do país.


2 Da adaptação da Justiça Eleitoral à pandemia e os prazos eleitorais

Apesar de a Justiça Eleitoral já executar suas funções predominantemente por meio digital, ainda se exige comparecimento físico de eleitores e candidatos não só no dia da eleição, mas também em outros momentos que a antecedem. Com a restrição de circulação de pessoas, medidas tiveram de ser tomadas para evitar que os eleitores não fossem prejudicados pelo não comparecimento às revisões biométricas que estavam em andamento, ou para que pudessem realizar alistamentos, transferências e regularizações até o último dia em que podem ser feitos em ano eleitoral[13].

Para tanto, houve a suspensão do cancelamento dos títulos dos eleitores[14] das cidades que passavam por revisão do eleitorado[15]e a autorização de que os atendimentos que exigiam o comparecimento pessoal fossem feitos pela internet[16], sem a coleta dos dados biométricos, o que até então, mesmo sendo possível, não era permitido. O prazo legal de movimentação do cadastro eleitoral, encerrado no dia seis de maio, foi mantido.

Paralelamente, outras atividades foram/estão sendo realizadas, as quais não sofreram prejuízo significativo em razão das medidas restritivas, como testes de sistemas de votação e de verificação das urnas eletrônicas[17].

Outra importante providência realizada antes da eleição é a convocação e o treinamento dos mesários. A intimação dos convocados é realizada por carta, e-mail, telefone, ou Whatsapp, todavia, o treinamento ainda é realizado predominantemente por reuniões presenciais.

Ocorre que, desde as últimas eleições, as capacitações presenciais foram complementadas, ou até substituídas por treinamentos realizados pela internet[18], portanto, é possível que, neste ano, se recorra predominantemente à metodologia EAD, especialmente porque grande parte dos mesários já atuou em outros pleitos. Isso permitirá que apenas casos específicos demandem treinamentos presenciais, evitando aglomerações. Essa modalidade de treinamento ainda está a ser definida pelos TREs, de acordo com as particularidades locais, mas aqui se entende que qualquer que seja a decisão tomada, não trará prejuízos ao transcurso normal do Calendário já previsto.

Verifica-se que até esta etapa do devido processo legal eleitoral nada justificaria um adiamento do pleito, pois os prazos já foram ou podem ser cumpridos sem prejuízos à Justiça Eleitoral, eleitores, candidatos e partidos. Mas, há uma significativa etapa do procedimento – que pelo calendário oficial deveria ocorrer de 20 de julho e 5 de agosto[19]– que poderia ser amplamente impactada pelas medidas restritivas, dificultando o andamento do cronograma: as Convenção Partidárias.

Por necessitarem reunir um grande número de pessoas em um mesmo ambiente, as convenções para escolha dos candidatos se afiguravam como um dos maiores desafios para a organização das Eleições 2020. Tal preocupação já havia sido levada ao TSE, que, em resposta às Consultas que questionaram a possibilidade das convenções serem realizadas por videoconferência, respondeu afirmativamente, adequando o procedimento eleitoral à atual realidade[20]. A realização de convenções por meio virtual foi consagrada no texto da EC 107, positivando a posição da Corte eleitoral[21]. Por essa razão, entende-se desnecessária a modificação das datas das Convenções Partidárias para os dias 31 de agosto a 16 de setembro, promovida pela EC.

Escolhidos os candidatos, eles deveriam registrar suas candidaturas junto à Justiça Eleitoral até o dia 15 de agosto[22]. Com a EC, nestas eleições de 2020 o termo final será 26 de setembro. Essa é outra mudança desnecessária, porque, embora vários candidatos aproveitem o momento para, com a cobertura da imprensa, caminharem até o balcão dos cartórios eleitorais com uma pequena multidão de adeptos, ritualística que nos dias atuais se afigura inimaginável, não haveria nesta etapa qualquer dificuldade de adaptação, porque tal praxe é meramente uma estratégia de divulgação da imagem dos candidatos e poderá ser suprimida. O registro das candidaturas é realizado pela internet ou pela entrega da mídia nos cartórios eleitorais[23].

Nota-se que, até 15 de agosto, os prazos poderiam ter sido mantidos, mesmo com as medidas de restrição. Após essas etapas tem início o período de Propaganda Eleitoral, quando então as restrições podem trazer algum comprometimento às eleições. Esse período tem como marcos o fim do prazo do registro de candidaturas e a véspera da eleição.

O último pleito foi marcado pela propaganda realizada pelas redes sociais e mídias digitais, as quais também devem ter grande influência nestas eleições. Ocorre que, para os cargos de Prefeito e Vereadores, especialmente dos pequenos Municípios, as campanhas ainda são marcadas por reuniões políticas, comícios e passeatas. Caso o Brasil ainda esteja sob os efeitos da pandemia próximo ao início desse período, é imperativa a postergação do prazo inicial das propagandas eleitorais, a fim de não prejudicar candidatos de localidades que ainda não tenham amplo acesso ao meio digital.

O calendário atualizado respeita o mesmo período de realização de propaganda que já seria exercido, o que garante a possibilidade de os candidatos divulgarem suas candidaturas e propostas. Redução desse prazo violaria o devido processo eleitoral e o princípio da anualidade eleitoral[24]. Aqui se defende que o adiamento de prazos e datas dessas eleições poderia ter se iniciado pelo prazo de propaganda eleitoral, cuja definição da data inicial deveria ter ficado sob determinação de um oportuno Decreto Legislativo ou manifestação do TSE.

Realizadas as eleições, o trabalho da Justiça Eleitoral ainda não se encerra. Para que os candidatos tomem posse é necessário que sejam diplomados e, para tanto, os eleitos deveriam ter suas contas julgadas e publicadas até três dias antes da diplomação[25]. Pela regulamentação[26], a prestação de contas de campanha de primeiro e segundo turnos poderia ser entregue até 30 dias após a eleição. Essa etapa demanda um intenso trabalho do corpo técnico da Justiça Eleitoral, dos Promotores e Juízes Eleitorais, para analisar e julgar as contas dos candidatos eleitos até três dias antes da diplomação.

Mantido o julgamento das contas de campanha como condição para a diplomação, a alteração da data das eleições demandaria a redução do prazo para a apresentação das contas. Caso contrário, o pleito não se encerraria a tempo de os eleitos tomaram posse em primeiro de janeiro.

Por ser o período para o julgamento das contas já exíguo, esse prazo de trinta dias era o único que faticamente poderia ser reduzido. Como tal mudança não afetaria o processo eleitoral, ela não se condicionaria ao princípio da anterioridade eleitoral[27], e por isso seria possível. Após as eleições há apenas a consolidação das contas, que são prestadas de forma parcial durante a campanha. O período de arrecadação e gastos se encerra com o pleito.

A EC seguiu essa lógica, mas apresentando uma solução criativa para o julgamento das contas. Foi desconsiderada a necessidade do julgamento das contas como requisito para a diplomação, porquanto tal julgamento poderá ser realizado a posteri, até o dia 12 de fevereiro de 2021. Vejamos a redação da Emenda:

Art. 1º [...]

§ 1º Ficam estabelecidas, para as eleições de que trata o caput, as seguintes datas:

[...]

VII – até 15 de dezembro, para o encaminhamento à Justiça Eleitoral do conjunto das prestações de contas de campanha dos candidatos e dos partidos políticos, relativamente ao primeiro e, onde houver, ao segundo turno das eleições, conforme disposto no art. 29,incisos III e IV, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.

[...]

§ 3º Nas eleições de que trata este artigo:

I – não se aplica o prazo previsto no art. 30, § 1º, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, devendo a decisão que julgar as contas dos candidatos eleitos ser publicada até o dia 12 de fevereiro de 2021;

II – o prazo para a propositura da representação de que trata o art. 30-A da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, será até o dia 1º de março de 2021;

[...]

V – a diplomação dos candidatos eleitos ocorrerá em todo o País até o dia 18 de dezembro, salvo as situações previstas nos §§ 4º e 5º;

Apesar de poder ocasionar problemas futuros, como a necessidade de realização de eventuais eleições suplementares em razão de cassações de diplomas decorrentes de representações, a rejeição das contas, por si só, não acarreta prejuízo para o resultado das eleições e, por isso, o julgamento posterior das contas se demonstra medida proporcional. Consideradas as situações fáticas que levaram à necessidade de adiamento das Eleições de 2020, essa mitigação excepcional é adequada e necessária para a realização das eleições municipais, proporcionando a diplomação dos novos eleitos em 01 de janeiro de 2021. Ela gera mais benefícios que malefícios.

Cumpre destacar, ainda, uma disposição de questionada constitucionalidade que é prevista no art. 2º da EC. Ele afirma que o princípio da anualidade eleitoral não se aplica ao disposto na Emenda, como se o constituinte derivado pudesse afastar a aplicação de um direito fundamental de forma casuística. Apesar de sua inconstitucionalidade, ele não trará prejuízos, porque, conforme analisado, os dispositivos trazidos no texto não afrontam a tal princípio e, por isso, a disposição é letra morta de lei. Realizadas as eleições, a eficácia da lei terá se encerrado e por isso não haverá interesse de agir em ajuizar ação direta questionando o dispositivo, ou as que já houverem sido ajuizadas perderão o objeto.

Sobre os autores
Daniel Rodrigues Thomazelli

Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Professor de Direito Empresarial da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Graduado em Direito com Láurea Acadêmica pela Universidade Federal Fluminense.

Lorena Amaral Malhado

Técnica Judiciária do TRE/MS. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera –UNIDERP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

THOMAZELLI, Daniel Rodrigues; MALHADO, Lorena Amaral. Covid-19 e eleições municipais de 2020: erros e acertos da EC 107 de 2020. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6219, 11 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83699. Acesso em: 21 nov. 2024.

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