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Bloqueio cautelar processual penal de redes sociais e desprezo da ampla defesa e contraditório

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Agenda 05/09/2021 às 13:00

Crítica à decisão do STF de bloqueio de redes sociais de jornalistas e formadores de opinião no bojo do inquérito das "fake news".

No dia 24.07.2020 foram bloqueadas várias contas de redes sociais de jornalistas e formadores de opinião de matiz conservador. Ao todo teriam sido bloqueadas 16 contas do Twitter e 12 perfis do Facebook. Esses bloqueios foram realizados pelas plataformas respectivas em cumprimento de ordem judicial emanada do STF por parte do Ministro Alexandre de Moraes, no curso do famigerado Inquérito das “Fake News” (Inquérito 4.781). [1]

A decisão firmada pelo Ministro Alexandre de Moraes conta com 32 páginas e é datada de 26.05.2020, o que demonstra ter havido certa mora das plataformas para o cumprimento da determinação judicial (aproximadamente 2 meses).

No mesmo despacho o Ministro determina uma série de outras medidas cautelares processuais penais, tais como buscas e apreensões, quebras de sigilo bancário e fiscal e de sigilo informático.

Um primeiro aspecto que chama a atenção, não somente no caso desses bloqueios agora postos em prática, mas em todo o arcabouço que envolve o Inquérito das “Fake News” (Inquérito 4.781) e também o Inquérito dos chamados “Atos Antidemocráticos” (Inquérito 4.828), é o fato escancarado de que somente movimentos e pessoas de caráter conservador ou do que se convencionou chamar de “direita” são alvos de todo tipo de constrangimentos e apurações, desde buscas, apreensões, quebras de sigilos, bloqueios, proibição de manifestação de opinião publicamente e até mesmo prisões. Se indagarmos e pesquisarmos quantos jornalistas, blogueiros, twitteiros, youtubers dentre outros, de orientação esquerdista ou “progressista” sofreram qualquer espécie de constrangimento ou mesmo de mero questionamento a respeito de suas palavras e atos, por mais grotescos, ofensivos, odiosos e até violentos veremos que a resposta é nenhum!

Ficam ao largo manifestações como a do conhecido político José Dirceu sobre uma pretensa tomada do poder por vias não eleitorais. “In Verbis”:

“E dentro do país é uma questão de tempo pra gente tomar o poder. Aí nós vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar uma eleição” (grifo nosso). [2]

Manifestação esta sobre a qual, após alguma repercussão crítica, veio a, ele mesmo, reconhecer ter sido “infeliz” (sic). [3] A distinção entre o que é “infeliz” e o que é “criminoso”, “antidemocrático”, parece ficar num limbo subjetivo indefinido ou num ponto cego voluntário.

Também não esqueçamos de Lula, afirmando com todas as letras que os Ministros do STF eram “acovardados”, o que  seria uma injúria porque implica, obviamente, em atribuir a qualidade de “covardes” a todos os componentes daquela corte. [4] Mas, também parece que uma expressão de “desabafo” ou “livre crítica” ou um crime de “injuria” do Código Penal ou mesmo da Lei de Segurança Nacional são algo extremamente subjetivo e indeterminado, novamente oculto em algum ponto cego voluntário.

E não é que José Dirceu aparece na pauta novamente? E agora para dizer que “se deveria tirar todos os poderes do Supremo” e que “o Judiciário não é poder da República”. [5] Mas, parece muito difícil perceber, neste caso mais à esquerda, algum atentado às chamadas “instituições democráticas”. Ah, esse ponto cego voluntário é terrível! Essa subjetividade e indeterminação!

E tem o Deputado Federal petista Wadih Demous que disse literalmente:

“Tem que fechar o Supremo Tribunal Federal”. [6]

Mas, a alegação de premência em “fechar a Corte Suprema” não parece em nada com algum “ato ou manifestação antidemocrática”. Subjetivamente a coisa é complicada, é difícil determinar as distinções. Teria sido uma sugestão? Uma proposta de discussão democrática? Ou seria mesmo talvez um crime contra a segurança nacional? Parece difícil saber, ainda mais estando num ponto cego voluntário.

As manifestações permeadas por violência, depredação, gritos de guerra, cartazes e defesa da instalação de uma “ditadura” proletária dos chamados “Antifascistas” [7] também não são fáceis de se definir. Não é mesmo? Seriam sadias manifestações de pensamento? Seria o exercício da liberdade de expressão? Ou seriam crimes comuns e políticos? Tudo se torna muito opaco, principalmente quando o movimento e as pessoas envolvidas se intitulam “antifascistas”. Afinal, quem seria defensor do fascismo, do nazismo ou coisa parecida, a não ser algum tresloucado? Acontece que não existe nominalismo mágico. As coisas são o que são. Mas, para algumas pessoas é muito difícil discernir, é algo por demais subjetivo, indeterminado, localizado num ponto cego voluntário.

Também parece ser apenas uma força de expressão que um “professor” da UFRJ apregoe a matança indiscriminada de todos os “adversários da esquerda”, sugerindo que para estes a única solução seria uma “boa bala e um bom paredão”. [8] Certamente é muito difícil perceber se esse tipo de manifestação de um “acadêmico” está nos trilhos da liberdade de expressão ou se é um chamado “discurso do ódio” (“hate speech”). Ah, essa subjetividade, essas indistinções das coisas claramente distintas, esse ponto cego voluntário!

A prosseguir com exemplos de ofensas ao STF e manifestações antidemocráticas de indivíduos e grupos ligados à chamada “esquerda”, nosso texto não teria fim. Inclusive nas redes sociais, realizadas por pessoas comuns diuturnamente esse material seria simplesmente inabarcável.

Podemos parar por aqui, mesmo porque o diagnóstico dessa voluntária incapacidade de discernimento, dessa compulsão por parcialidade e uso de dois pesos e duas medidas, essa cegueira voluntária, nada mais é do que aquilo que Marcuse ensinava como uma estratégia política e intelectual, qual seja, a conhecida “Tolerância Repressiva”, consubstanciada na “tolerância libertadora” que “significa intolerância contra os movimentos de direita e tolerância em relação a movimentos de esquerda”. [9]  

Isso nada tem a ver com democracia ou instituições democráticas. Tem a ver com “teorias críticas” que primam quase exclusivamente pela destruição, pela desconstrução, sem ereção de absolutamente nada no lugar do que é arrasado. Sem qualquer respeito por instituições, valores, virtudes, nada, porque se trata de uma crítica marcada pelo niilismo mais profundo. A desorientação é sua marca, pois, como bem destaca Walsh, “os teóricos críticos pensavam ser criaturas de razão, e, ainda assim, se entregavam a um bacanal de destruição cultural”. [10]

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Nesse clima é até possível que a percepção da realidade fique extremamente turva ao ponto de se pensar que realmente se está fazendo alguma espécie de “justiça” ou defendendo algum ideal “democrático”, quando se está perpetrando uma odiosa opressão seletiva assassina da democracia e de todos os seus direitos, deveres e garantias.

Nossas críticas a respeito desses Inquéritos fatídicos em andamento pelo STF à margem da legalidade, da convencionalidade e da constitucionalidade, já foram bem expostas em trabalhos antecedentes, aos quais remetemos o leitor interessado. [11]

Importa neste texto focar num aspecto processual penal que foi simplesmente desprezado na decisão do Ministro Alexandre de Moraes. Não vamos aprofundar nas questões de inconstitucionalidade que envolvem esse procedimento como um todo, mas apenas, mais especificamente, numa falha processual inadmissível para um juiz substituto, quanto mais para um membro da Corte Suprema. Sabemos que tudo isso é malhar em ferro frio, como se diz popularmente, pois a ilegalidade grassa livremente. Entretanto, nossa escolha é entre fazer o registro, inclusive histórico, ou calar e omitir.

Como já exposto, em sua decisão o Ministro Alexandre de Moraes determina várias buscas e apreensões e quebras de sigilos bancário, fiscal e informático. Além disso, determina o bloqueio de redes sociais de vários indivíduos. [12]

As diligências de Busca e Apreensão, por natureza, devem ser absolutamente sigilosas até a sua plena realização, sob pena de total ineficácia das medidas, podendo e até devendo ser determinadas “inaudita altera pars”, nos termos do artigo 282, § 3º., CPP, parte inicial (“perigo de ineficácia da medida”). Ainda assim, considerando o restante do disposto no artigo 282, § 3º., CPP, que determina a aplicação do contraditório como regra nas cautelares processuais penais a partir da sua nova redação dada pela Lei 12.403/11, para que a medida seja determinada sem prévia manifestação defensiva, há que fundamentar, ainda que brevemente, a necessidade de adoção apenas do chamado “contraditório diferido, postergado ou posticipado”. [13] Pois bem, na decisão enfocada não há qualquer espécie de fundamentação neste sentido, o que a torna nula de pleno direito, nos termos do artigo 93, IX, CF c/c artigo 282, § 3º., “in fine”, CPP.

No entanto, o mais grave não é o caso das buscas e apreensões, as quais, como já dito, são claramente medidas cuja eficácia é atrelada naturalmente a uma decisão que não pode ser informada com antecedência ao investigado.

Acontece que foram determinadas quebras de sigilos bancários, fiscais, informáticos e também os bloqueios de redes sociais dos implicados. Nesses casos é evidente que nada pode ser feito pelos envolvidos para alterar suas transações antecedentes, as quais estão registradas em bancos de dados oficiais públicos e privados. O mesmo se diga com relação ao que consta em redes de informática e telemática. Mais clara ainda é a desnecessidade de dispensa do contraditório prévio para a decisão gravíssima de bloqueio das redes sociais das pessoas. Tanto essa medida não é urgente e muito menos se tornaria ineficaz apenas pela obediência ao contraditório estabelecido legalmente, que as plataformas demoraram quase dois meses para cumprirem a ordem, à absoluta revelia dos envolvidos, e absolutamente nada de gravoso ou minimamente prejudicial para o andamento da investigação ocorreu.

Em obra específica sobre a questão das cautelares processuais penais e seu novo regime de acordo com a Lei 12.403/11, já nos manifestamos conforme segue: [14]

O contraditório é conceituado por Mendes de Almeida como a “ciência bilateral dos atos e termos processuais e a possibilidade de contrariá-los”. [15] Disso se conclui que são elementos básicos do contraditório o Direito à Informação e a oportunidade de reação quanto à atuação da parte adversa. Ocorre que pode gerar alguma perplexidade falar-se em contraditório em sede cautelar, especialmente considerando a característica da urgência ou preventividade de tais medidas, o que as tem tornado tradicionalmente afetas a um procedimento de tomada de decisões “inaudita altera pars”.

Bem descreve essa situação Scarance Fernandes, chamando a atenção para uma tendência marcante em defesa da aplicação do contraditório (dentro de certos limites) mesmo em se tratando de medidas cautelares, tal como a orientação adotada pelo Código de Processo Penal Tipo para a Iberoamérica. Em suas palavras:

“Existe, na atualidade, tendência em se exigir que tais medidas sejam determinadas por autoridade judicial, com participação das partes, exceto aquelas que, por sua natureza, impossibilitem a participação do investigado, como as perícias sobre vestígios que desaparecem em tempo curto e, por isso, requerem exame urgente.

Entre nós, as medidas cautelares são, em regra, determinadas sem audiência do titular do direito restringido, de ofício ou em atenção a requerimento do Ministério Público, do ofendido ou representação da autoridade policial”. [16]

Entretanto, com o advento da Lei 12.403/11, o artigo 282, § 3º., CPP passou a determinar explicitamente a aplicação do contraditório às medidas cautelares. O dispositivo ressalva os casos de urgência e de perigo de ineficácia da medida, mas, afora isso, estabelece que o Juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, deverá determinar a intimação da parte contrária, com cópia do requerimento e demais peças necessárias a fim de que possa se manifestar. Vem ainda se manifestando a doutrina incipiente sobre o tema sobre a possibilidade de que, mesmo em casos de cautelares urgentes ou nas quais o sigilo inicial seja crucial, se possa exercer aquilo que se denomina de um “contraditório diferido, postergado ou posticipado” [17], impondo, por exemplo, a oitiva do preso preventivo pelo Juiz tão logo ultimada a medida constritiva. [18]

A decisão em estudo conta incrivelmente com 32 páginas em meio às quais não se vê qualquer fundamentação para o afastamento do contraditório prévio nas cautelares determinadas. Quanto à busca e apreensão, ainda é possível contemporizar, dada sua natureza, acenando talvez com o Princípio da Instrumentalidade das Formas, mas com relação às demais medidas, não há justificativa alguma para a omissão. A nulidade é patente nos termos do artigo 93, IX, CF. Observe-se ainda que nem mesmo o contraditório diferido é ensejado em momento algum nos autos aos envolvidos de acordo com o que se tem notícia. Aliás, o que se noticia é que o famigerado Inquérito corre sob segredo e sem acesso pleno dos investigados. Se algum questionamento fazem por seus defensores é por atuação própria, sem qualquer abertura oficial de oportunidade de manifestação pelo presidente das apurações.

Ainda que se argumente que o magistrado determinou todas as cautelares em ato de ofício, o que tornaria o contraditório inaplicável, já que o juiz, no caso o Ministro, não seria “parte”, [19] há entendimento doutrinário de que o contraditório, salvo nos casos excepcionais já vistos, deve ser obedecido, mesmo nessa situação. [20]

Ademais, o artigo 282, § 2º., CPP só permite que o magistrado determine cautelares de ofício no curso do processo, não durante a investigação criminal. [21] Essas cautelares foram determinadas, portanto, ilegalmente, pois que em fase pré – processual e “ex officio” pelo Ministro, o que é claramente vedado pela legislação brasileira vigente. Esse é mais um dos inúmeros motivos pelos quais o magistrado não pode ser o investigador e muito menos determinar medidas constritivas nessa fase de ofício.

Em face dessas evidentes ilegalidades, inconstitucionalidades e nulidades há que trazer à baila alguns preciosos ensinamentos de antigo Ministro do STF.

Tratando do clima brasileiro quanto à falta de consideração devida com as garantias processuais penais, assim se manifesta Eros Grau:

Somos tão originais que dispensamos quaisquer déspotas para nos tornarmos presa do pior dos autoritarismos, o que decorre da falta de leis e de justiça.  O Estado de Sítio instala-se entre nós no instante em que recusamos aos que não sejam irmãos, amigos ou parentes o direito de defesa, combatendo-os – aqui uso palavras de Paulo Arantes – como se fossem “parcelas fora da Constituição”. [22]

A respeito da imparcialidade e impessoalidade do magistrado, que certamente poderia evitar praticamente todos os abusos cometidos nesses inquéritos infames, leciona o eminente jurista:

A independência do juiz criminal impõe sua cabal desvinculação da atividade investigatória e do combate ativo ao crime, na teoria e na prática.

O resultado dessa perversa vinculação não tarda a mostrar-se, a partir dela, a pretexto de implantar-se a ordem, instalando-se pura anarquia. Dada a suposta violação da lei, nenhuma outra lei poderia ser invocada para regrar o comportamento do Estado na repressão dessa violação. Contra “bandidos” o Estado e seus agentes atuam como se bandidos fossem, à margem da lei, fazendo mossa da Constituição. E tudo com a participação do juiz, ante a crença generalizada de que qualquer violência é legítima se praticada em decorrência de uma ordem judicial. Juízes que se pretendem versados na teoria e prática do combate ao crime, juízes que arrogam a si a responsabilidade por operações policiais, transformam a Constituição em um punhado de palavras bonitas rabiscadas em um pedaço de papel sem utilidade prática, como diz Ferrajoli. Ou  em papel pintado com tinta; uma coisa em que está indistinta a distinção entre nada e coisa nenhuma, qual nos versos de Fernando Pessoa. [23]

É impossível não dar total razão a Grau, quando vemos suas palavras se transformando em profecia realizada. A qualificação de “bandidos” a quaisquer investigados por um magistrado e até mesmo a antecipação de juízo de valor e de fato, vedada pela melhor doutrina, constitui inequívoco prejulgamento, destruidor absoluto da imparcialidade imprescindível ao juiz. E em meio a esse emaranhado de ilegalidades, inconvencionalidades, nulidades e inconstitucionalidades, eis que surge a lamentável visão de um Ministro do STF, no caso, o Ministro Barroso, qualificando como “bandidos” e “gângsters” que “precisam ser neutralizados” (exatamente a palavra usada por Grau), todos os implicados nas investigações dos famigerados inquéritos judiciais sob comento. [24] Agora explique quem puder como é possível que um Ministro após essas manifestações públicas de prejulgamento escancarado venha a julgar qualquer questão que seja relacionado ao caso em tela? Mas, fato é que julga!

Embora não haja previsão expressa do prejulgamento como um impedimento ou suspeição nem no Código de Processo Penal, nem no Código de Processo Civil, tem-se entendido que os casos de impedimento e suspeição arrolados pela lei são exemplificativos, “numerus apertus”, de forma que o prejulgamento leva sim à suspeição do magistrado, inobstante não se trate de hipótese positivada. E diverso não pode ser. Como é possível crer na imparcialidade de alguém que prejulga, que se manifesta publicamente, adiantando seu entendimento sobre o caso que irá julgar? [25]  Para além da legislação ordinária essa tese se sustenta na Constituição Federal que proclama o “devido processo legal” e em tratados internacionais, que também garantem o julgamento por magistrado independente e imparcial.

Infelizmente, voltando às lições de Grau, essa espécie de perversão tem sido comum nos dias que correm de tal maneira que

Juízes se envolvem direta e pessoalmente com os agentes da administração [quando não os substituem], participando do planejamento de investigações policiais que resultam em ações penais de cuja apreciação e julgamento eles mesmos serão incumbidos, superpondo os sistemas inquisitório e misto, a um tempo só  recusando o sistema acusatório. Este, contemplado pelo nosso ordenamento jurídico, impõe sejam delimitadas as funções concernentes à persecução penal,  cabendo à polícia investigar, ao Ministério Público acusar e ao juiz julgar, ao passo que no sistema inquisitório essas funções são acumuladas pelo juiz. Basta tanto para desmontar as estruturas do Estado de Direito, disso decorrendo a supressão da jurisdição. O acusado já então não se verá face a um juiz independente e imparcial. Terá diante de si uma parte acusadora, um inquisidor a dizer-lhe algo como “já o investiguei, colhi todas as provas, já me convenci de sua culpa, não lhe dou crédito algum, mas estou à sua disposição para que me prove que estou errado”! E isso sem sequer permitir que o acusado arrisque a sorte em ordálias. [26]

O Executivo Federal em conjunto com a Advocacia Geral da União (AGU) ingressou, em 25.07.2020, com Adin, questionando a determinação de suspensão das redes sociais dos envolvidos nos inquéritos em comento neste texto, sob a alegação de violação à liberdade de expressão e falta de tipicidade processual para o decreto dessa espécie de cautelar. [27]

A tese é altamente defensável e predominante na doutrina especializada sobre o tema, especialmente após o advento da Lei 12.403/11, conforme já tivemos oportunidade de expor de forma aprofundada em outra obra, demonstrando que o chamado “poder geral de cautela”, existente no Processo Civil, não pode ser transplantado a fórceps para o Processo Penal. [28]

Entretanto, a possibilidade de sucesso dessa Adin é praticamente nula, já que aqueles que a julgarão serão os mesmos responsáveis pelas violações reiteradas a variados direitos e garantias no bojo desses malfadados inquéritos. Um deles é o responsável pela ordem ilegal, outro considera todos os prejudicados pela medida de antemão como “bandidos” e “gângsters” a serem “neutralizados”. Os demais taparam olhos e ouvidos para todas as ilegalidades dos inquéritos em destaque, salvo o Ministro Marco Aurélio. [29] O placar máximo que se pode esperar, salvo algum milagre divino, é de uma nova derrota por dez a um.

Retomando o título alternativo deste texto, vale transcrever a lição de Lopes:

As ordálias, também denominadas julgamentos ou juízos de Deus, foram utilizadas pelos germanos antigos e tinham por finalidade a descoberta de verdade mediante o emprego de expedientes cruéis e até mortais, como a ‘prova de fogo’, a ‘prova das bebidas amargas’, a ‘prova das serpentes’, a “prova da água fria” etc.

Na ‘prova de fogo’ o acusado era obrigado a tocar com a língua um ferro quente ou carregar uma barra de ferro em brasa ou, ainda, caminhar descalço sobre ferros quentes.

A ‘prova das bebidas amargas’ consistia em obrigar a mulher acusada de adultério a ingerir bebidas fortes e amargas: se mantivesse a naturalidade, seria considerada inocente; mas culpada, se contraísse o rosto e apresentasse os olhos inchados de sangue.

Na ‘prova das serpentes’, o acusado era lançado no meio delas e considerado culpado se fosse mordido pelos répteis.

Já na ‘prova da água fria’ atirava-se o acusado num reservatório de água: se afundasse, seria considerado culpado; se flutuasse, como inocente. [30]

Tirante a esperança em uma intervenção do Direito Internacional dos Direitos Humanos, só resta mesmo, no que tange a quaisquer decisões desses inquéritos, ansiar pelo retorno das ordálias, pois aí quem sabe, pelo menos se poderia ter alguma sorte ou contar com o acaso ou o destino. Parafraseando o “Menino Neymar”, nesses inquéritos os envolvidos devem se sentir, em relação ao tempo das provas divinas ou das ordálias, como quem está sofrendo de uma saudade daquilo que nunca viveu, [31] já que felizmente superamos essa fase primitiva do processo e com ela não tivemos contato no decorrer de nossa breve existência. Pena que nos falte superar ainda muitas outras arbitrariedades e absurdos em pleno século XXI.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Bloqueio cautelar processual penal de redes sociais e desprezo da ampla defesa e contraditório: ou ah, que saudades das Ordálias!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6640, 5 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84234. Acesso em: 2 nov. 2024.

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