6. A boa-fé da adquirente das mercadorias ou da tomadora de serviços
Na “simulação relativa” (existência de negócio jurídico com contratante oculta), declarada a inidoneidade de documentos, é certa a existência de “conluio” entre a emitente dos documentos inidôneos e a real vendedora das mercadorias ou prestadora dos serviços.
Para impugnar créditos de ICMS destacados em documentos emitidos antes de declarada a inidoneidade, o fisco sustenta que:
a inidoneidade é situação que existe desde a data em que o documento foi emitido, embora quando declarada, ela o é em data posterior;
a declaração de inidoneidade tem efeito “declaratório” e não “constitutivo”, retroagindo assim à data de emissão do documento.12
Para afastar a boa-fé da adquirente das mercadorias ou da tomadora de serviços e glosar os créditos, o fisco invoca a regra do art. 136. do Código Tributário Nacional (CTN), que dispõe:
“Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”.
Leitura mais açodada do artigo, leva o intérprete a concluir que o legislador adotou a responsabilidade objetiva (sem culpa). Alguns autores entendem que, por desrespeitar o “princípio da presunção de inocência" (inc. LVII do art. 5° da CF),13 supramencionada regra não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988.
No entanto, de acordo com interpretação dada ao artigo por Luciano da Silva Amaro, a que aderimos, o legislador não adotou a responsabilidade objetiva. Segundo esse Autor (2016, p. 475- 476):
“O art. 136. pretende, em regra geral, evitar que o acusado alegue que ignorava a lei, ou desconhecia a exata qualificação jurídica dos fatos, e, portanto, teria praticado a infração de “boa-fé”, sem intenção de lesar o interesse do Fisco. (...), subjaz à responsabilidade tributária a noção de culpa, pelo menos stricto sensu, pois, ainda que o indivíduo não atue com consciência e vontade do resultado, este pode decorrer da falta de diligência (portanto, de negligência) sua ou de seus prepostos, no trato de seus negócios (pondo-se, aí, portanto, também a culpa in eligendo ou in vigilando). Sendo, na prática, de difícil comprovação o dolo do indivíduo (salvo em situações em que os vestígios materiais sejam evidentes), o que preceitua o Código Tributário Nacional é que a responsabilidade por infração tributária não requer a prova pelo Fisco, de que o indivíduo agiu com o conhecimento de que sua ação ou omissão era contrária à lei, e de que ele quis descumprir a lei”.
Em resumo, não evidenciado o dolo, não precisa o fisco demonstrar que o sujeito passivo agiu com culpa para dele exigir a multa, o que não impede este de provar que não se houve com culpa, ou seja, que tomou todas as cautelas possíveis para evitar que a infração fosse praticada. Demonstrada a ausência de culpa no creditamento indevido, de rigor o cancelamento da multa imposta, mas, ao contrário de nossos tribunais, entendemos legítima a exigência do imposto que não foi pago em razão de o sujeito passivo ter realizado conduta cujo relato se subsome ao que está descrito no antecedente da norma geral e abstrata sancionadora. Isso porque, para o Estado, tributo é bem indisponível.
Na “simulação absoluta”, conforme vimos no item 1, declarada a inidoneidade de documentos e demonstrada a não-entrada de mercadorias no estabelecimento da suposta adquirente14 ou o não-recebimento de serviços, é certa a existência de “conluio” entre a emitente dos documentos inidôneos e a suposta adquirente de mercadorias ou tomadora de serviços.
7. Simulação de existência desde a inscrição ou período de atividade da empresa seguido de inatividade ou simulação de existência
Suponhamos que o Processo de Apuração de Inidoneidade informe que a emitente dos documentos simulou sua existência desde a inscrição, mas, na contestação ao Auto de Infração e Imposição de Multa, a contribuinte apresente comprovantes de pagamento de valores de algumas Notas Fiscais representativas de operações ou prestações que realizou com a suposta vendedora ou prestadora. Não vemos sentido em excluir da exação apenas os valores de imposto relativos às operações ou prestações com pagamentos comprovados, e manter os valores das demais.
Se comprovante de pagamento demonstra que a emitente do documento existia – o que contraria a assertiva efetuada pela autoridade fiscal –, não pode a emitente, na mesma época, ter existido para alguns negócios jurídicos, mas não ter existido para outros. Assim: ou o órgão julgador administrativo cancela toda a exigência fiscal, porque se convenceu de que a emitente existia à época das operações ou prestações; ou a mantém integralmente, porque se convenceu de que a emitente nunca existiu e de que os comprovantes de pagamento são provas adrede preparadas para “forjar” a existência do estabelecimento.15
Excluir da exação apenas valores de imposto relativos às operações ou prestações com pagamentos comprovados somente faz sentido quando:
o órgão julgador entender que o comprovante de pagamento demonstra que a firma emitente do documento existia;
o fisco apurou que a firma emitente dos documentos existiu, mas depois passou a simular sua existência;
as datas de emissão dos documentos com comprovação de pagamento forem anteriores ou bem próximas da data provável de cessação de atividades inferida pelo agente fiscal de rendas.
8. Do julgamento do Recurso Especial 1148444/MG
No REsp 1148444/MG, em que foi Relator o Ministro Luiz Fux, julgado em 14/04/2010 em sede de recurso repetitivo (nos termos do art. 543-C do anterior Código de Processo Civil – CPC), foi reconhecida a legitimidade de crédito do ICMS correspondente a valor de imposto destacado em Nota Fiscal emitida antes de declarada a inidoneidade dos documentos, desde que demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, que ocorre quando o adquirente exige documentação que comprove a regularidade do alienante e apresenta ao fisco comprovante de pagamento, ao alienante, do valor da Nota Fiscal por este emitida. Transcrevemos a seguir a ementa do acórdão:
PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. CRÉDITOS DE ICMS. APROVEITAMENTO (PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE). NOTAS FISCAIS POSTERIORMENTE DECLARADAS INIDÔNEAS. ADQUIRENTE DE BOA-FÉ.
1. O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode engendrar o aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, uma vez demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação (Precedentes das Turmas de Direito Público: ...).
2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à assunção da regularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco, razão pela qual não incide, à espécie, o artigo 136, do CTN, segundo o qual "salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato" (norma aplicável, ‘in casu’, ao alienante).
3. ‘In casu’, o Tribunal de origem consignou que:
"(...) os demais atos de declaração de inidoneidade foram publicados após a realização das operações (f. 272/282), sendo que as notas fiscais declaradas inidôneas têm aparência de regularidade, havendo o destaque do ICMS devido, tendo sido escrituradas no livro de registro de entradas (f. 35/162). No que toca à prova do pagamento, há, nos autos, comprovantes de pagamento às empresas cujas notas fiscais foram declaradas inidôneas (f. 163, 182, 183, 191, 204), sendo a matéria incontroversa, como admite o fisco e entende o Conselho de Contribuintes."
4. A boa-fé do adquirente em relação às notas fiscais declaradas inidôneas após a celebração do negócio jurídico (o qual fora efetivamente realizado), uma vez caracterizada, legitima o aproveitamento dos créditos de ICMS.
5. O óbice da Súmula 7/STJ não incide à espécie, uma vez que a insurgência especial fazendária reside na tese de que o reconhecimento, na seara administrativa, da inidoneidade das notas fiscais opera efeitos ex tunc, o que afastaria a boa-fé do terceiro adquirente, máxime tendo em vista o teor do artigo 136, do CTN.
6. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008.
Em razão dos precedentes, dentre os quais se inclui o julgamento do Recurso Especial com ementa supratranscrita, em março de 2014 foi editada a Súmula 509 do STJ, a seguir enunciada:
“Súmula 509 – É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda”.
No caso do REsp 1148444/MG, a veracidade da compra e venda decorreu da regularidade da escrituração das notas fiscais no livro Registro de Entradas do adquirente e de provas de pagamento às empresas cujas notas fiscais foram declaradas inidôneas. Em julgados indicados como precedentes no voto do Relator, a veracidade da compra e venda foi admitida pela “regularidade dos registros contábeis” efetuados pela adquirente. O que se entende, porém, por “regularidade dos registros contábeis” na aquisição de mercadorias?
É ingenuidade entender essa regularidade como: Nota Fiscal com aparência de regularidade; estar ela escriturada no livro Registro de Entradas da adquirente de mercadorias; e lançamento a crédito, na Conta “Bancos Conta Movimento”, do valor da operação, representado por comprovante de pagamento que não identifica o credor favorecido. Para nós, há “regularidade nos registros contábeis” de operação de aquisição de mercadorias, quando foram lançados:
a débito: na Conta “Compras”, o valor total da compra menos o valor do ICMS destacado na Nota Fiscal; na Conta “ICMS a Recuperar”, o valor do ICMS destacado na Nota Fiscal;
a crédito: na Conta “Bancos” (ou antes na Conta “Duplicatas a Pagar”), o valor total da compra consignado na Nota Fiscal;
e quando foi exibido documento representativo de pagamento em favor da alienante (cópia de cheque nominal, Transferência Eletrônica Disponível – TED, comprovante de transferência entre contas correntes ou via de duplicata comercial com autenticação bancária).
Diante do exposto, o STJ entende legítimo o crédito de ICMS apropriado por adquirente de mercadorias ou tomadora de serviços, se, cumulativamente:
-
a Nota Fiscal representativa da operação ou prestação foi emitida antes de publicada declaração de inidoneidade dos documentos emitidos pela vendedora ou prestadora;
ela comprova o pagamento do preço em favor da vendedora ou prestadora;
antes de cada operação ou prestação, ela comprova que realizou consulta sobre a regularidade da empresa com quem negociava – o que exclui a legitimidade de crédito de ICMS correspondente a valor de imposto destacado em Nota Fiscal emitida após a publicação de declaração de inidoneidade dos documentos emitidos pela vendedora ou prestadora.
Porque implícita no Auto de Infração e Imposição de Multa a tese de as mercadorias terem sido vendidas por outra empresa (simulação relativa), não é razoável aceitar como prova de realização do negócio jurídico: registro contábil de pagamento em dinheiro; cópia de cheque ao portador; ou via de duplicata comercial paga em carteira (ou seja, diretamente à empresa alienante, documento que pode ser produzido após a lavratura do Auto de Infração e Imposição de Multa, com data de pagamento pretérita).
Conforme se vê, o STJ adotou a data do ato declaratório de inidoneidade como termo final do prazo para que aquisição de mercadorias efetuada nesse prazo seja considerada como de boa-fé. No voto do Ministro Luiz Fux está transcrito trecho do acórdão recorrido, que revela que o Tribunal de Justiça do Estado reformou em parte a sentença, para não reconhecer a legitimidade de créditos de ICMS correspondentes a valores de imposto destacados em Notas Fiscais emitidas após o ato de declaração de inidoneidade.
O STJ não examina provas, mas o juiz de primeira instância ou o tribunal de justiça do Estado em que se situa o estabelecimento da adquirente ou tomadora de serviços deve examiná-las, de modo que, em vez de simplesmente aplicar a regra do acórdão do STJ, pode fundamentar sua decisão em prova produzida pelo fisco, sobretudo nos casos em que estiver demonstrado nos autos que:
existe terreno no local indicado como o de estabelecimento da suposta vendedora ou prestadora;
não existe, no logradouro indicado no documento, o número do estabelecimento da suposta vendedora ou prestadora;
é falso o contrato de locação do imóvel, apresentado pela suposta vendedora ou prestadora, em que iria funcionar o estabelecimento;
o locador retomou a posse do imóvel em que funcionava o estabelecimento antes de emitidos os documentos que embasam os créditos impugnados.
Nessas hipóteses, adotar a regra estabelecida no acórdão do STJ em julgamento de recurso repetitivo corresponderia a admitir por comprovadas: aquisições de mercadorias procedentes de local em que nunca houve ou não mais havia estabelecimento; ou recebimento de serviços prestados por empresa situada em local em semelhantes condições.
Na parte final do item 2 da ementa do acórdão do STJ, afirma-se que a norma contida no art. 136. do CTN é aplicável ao alienante. Com a devida vênia dos que assim a interpretam, entendemo-la aplicável também à adquirente, que, em face das provas produzidas pelo fisco no Processo de Apuração de Inidoneidade, não está impedida de provar que agiu de boa-fé (sem culpa), conforme o entendimento de Luciano da Silva Amaro, constante do item 6 deste artigo.
No item 5 da ementa do acordão afirma-se que “... o reconhecimento, na seara administrativa, da inidoneidade das notas fiscais opera efeitos ex tunc, o que afastaria a boa-fé do terceiro adquirente, máxime tendo em vista o teor do artigo 136, do CTN". No entanto, pode o crédito de ICMS ser ilegítimo porque comprovado que as mercadorias não saíram do local indicado nas Notas Fiscais (simulação relativa), mas a contribuinte ter agido de boa-fé ao celebrar o negócio jurídico e se creditar do imposto. A inidoneidade das Notas Fiscais e a aplicação da regra do art. 136. do CTN não afastam necessariamente a boa-fé da adquirente.
De acordo com o item 4 da ementa do acórdão do STJ, a boa-fé do adquirente em relação às Notas Fiscais declaradas inidôneas após a celebração do negócio jurídico, uma vez caracterizada, legitima o aproveitamento dos créditos de ICMS. Essa opção prestigia o “princípio da boa-fé” e o “princípio da publicidade”. No entanto, se o fisco demonstra que o estabelecimento da alienante nunca existiu ou não mais existia na época das operações, entendemos que a boa-fé da adquirente (o agir sem culpa) deveria afastar a multa pelo creditamento indevido de ICMS, mas não legitimar o crédito do ICMS, uma vez que a suposta alienante não estava em “situação regular perante o fisco”.16 A opção prestigia a boa-fé da adquirente no que concerne à multa e o “princípio da supremacia do interesse público sobre o do particular”, implícito na Constituição Federal, no que se refere à glosa do crédito do ICMS.
No Auto de Infração e Imposição de Multa, porém, não há enunciado para o antecedente da norma individual e concreta de exigência do imposto. O valor do ICMS creditado indevidamente é exigido como “consequência” ou “efeito” da acusação de creditamento indevido, que é o antecedente da norma individual e concreta de exigência da multa. Essa acusação é normalmente:
“Creditou-se indevidamente do ICMS no total de R$ ..., no período de ... a ..., decorrentes de entradas de mercadorias no estabelecimento, acompanhadas de documentos que não atendem às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36. da Lei 6.374/1989”.
O dispositivo legal em que a multa é capitulada (al. "c" do inc. II do art. 85. da Lei 6.374/1989), além de prescrever que a multa aplicada é sem prejuízo do recolhimento da importância creditada, é combinado com a primeira parte do § 1º do art. 85, segundo a qual a aplicação das penalidades previstas nesse artigo deve ser feita sem prejuízo da exigência do imposto em auto de infração. Então, se a penalidade deixa de ser aplicada porque demonstrada a boa-fé da adquirente autuada, não mais há como manter a exigência do imposto.
Desse modo, para que valores do ICMS indevidamente creditados continuem a ser exigidos em caso de improcedência da acusação de creditamento indevido do imposto, é necessário construir enunciado específico para o antecedente da norma individual e concreta de exigência do imposto, que poderá ser:
“Fica a contribuinte em epígrafe notificada do lançamento do ICMS de R$ ..., em razão do estorno, pelo fisco, de créditos de ICMS correspondentes a valores de imposto destacados em documentos que não atendem às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36. da Lei 6.374/1989”.
A exigência de tributo decorre de “fato lícito”. No entanto, como o ICMS é tributo “sujeito à homologação” por parte do fisco, salvo a existência de falha na legislação não vislumbramos situação em que o fisco deva exigir o imposto sem que a contribuinte tenha descumprido pelo menos 1 (um) dever instrumental. O descumprimento do dever instrumental é, portanto, “motivo” do ato administrativo de lançamento do imposto. No enunciado supra, o dever instrumental descumprido foi a contribuinte creditar-se de valores de ICMS destacados em documentos que não atendem às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36. da Lei 6.374/1989, mas ela não foi acusada de praticar essa infração.