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O estupro da menina de dez anos e a tipificação:

uma visão crítica ao posicionamento de Cezar R. Bitencourt

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Trata da tipificação da conduta do autor do abuso sexual que engravidou uma menina de apenas dez anos.

1-INTRODUÇÃO

Ganhou enorme repercussão na mídia o caso bárbaro de uma menina de 10 anos que era, segundo consta, estuprada reiteradamente pelo tio de 33 anos desde os 6 anos de idade. A criança acabou engravidando aos 10 anos e foi submetida, com sua concordância e dos seus representantes legais, a um aborto “sentimental, humanitário ou ético”, como denomina a doutrina, conforme previsto no artigo 129, inciso II, CP. [1]

Recentemente o conhecido jurista da área criminal, Cezar Roberto Bitencourt, divulgou dois vídeos pela rede social instagram, comentando sobre a tipificação correta da conduta do infrator, segundo seu entendimento. [2]

Neste trabalho pretendemos analisar a orientação de Bitencourt, formulando, com o mais absoluto respeito, nossas ponderações críticas. Este breve estudo se fará com sustento na doutrina e tendo um viés estritamente técnico, apartado de paixões de qualquer espécie. Será objeto de perquirição tão somente a questão da correta tipificação da conduta do infrator de acordo com a dogmática jurídico – penal, a legislação correlata e a principiologia que orienta o Direito Penal hodierno. Não se formulará qualquer juízo de valor acerca da opção pela prática do aborto pela vítima e seus familiares, tema este que já ocupou bastante espaço nas controvérsias sob os mais variados aspectos (social, religioso, ético, emocional, médico, jurídico etc.).

Ao final, serão expostos resumidamente os argumentos desenvolvidos na elaboração do trabalho e proceder-se-á a um encerramento conclusivo.


2-O POSICIONAMENTO DE CEZAR ROBERTO BITENCOURT E SEUS ARGUMENTOS

Conforme poderá o leitor conferir, acessando os links dos vídeos gravados e divulgados por Bitencourt na rede social instagram, o autor se manifesta, alegando que o infrator deveria responder pelo crime de “Estupro de Vulnerável” qualificado pelo resultado lesões corporais de natureza grave (artigo 217 – A, § 3º., CP) em concurso material com o crime de “Aborto Provocado por Terceiro sem o consentimento da gestante (artigo 125, CP).

Em seu primeiro vídeo, Bitencourt, afirma a existência do crime de “Estupro de Vulnerável” e da qualificadora por lesão grave. As lesões graves vislumbradas pelo autor são as seguintes: a) incapacitação da vítima para suas atividades por mais de 30 dias; e b) Perigo de Vida (inteligência do artigo 129, § 2º., I e II, CP). A incapacitação, bem como o perigo de vida, se configuram devido à submissão da vítima, naquilo que se poderia chamar de “vitimização secundária”, na modalidade de “heterovitimização” [3], ao procedimento do aborto. Tendo em vista, portanto, esses resultados, os quais, na visão de Bitencourt, derivaram da conduta do infrator, haveria a qualificação do crime de “Estupro de Vulnerável”.

Em seguida, formula Bitencourt a tese de que o autor do crime deveria responder também em concurso material pelo crime de aborto previsto no artigo 125, CP, já que tal fato teria decorrido do estupro e da gravidez indesejada que levou ao procedimento abortivo.

Num segundo vídeo, o mesmo autor, diante de algumas manifestações críticas à suas teses, procura complementar sua fundamentação, mediante recurso à questão da possibilidade da prática do crime de aborto por omissão (crime comissivo por omissão). Afirma Bitencourt, que o autor do estupro assumiria a condição de garante no momento em que causou a situação de perigo que levou ao aborto, uma vez que poderia ter prevenido a gravidez mediante o uso de preservativo. Sua omissão no uso desse método contraceptivo seria causadora da gravidez e fundamentaria sua condição de garante, emergindo daí seu dever jurídico de ação, nos termos do artigo 13, § 2º., “c”, CP.


3-A QUESTÃO DA QUALIFICADORA DO “ESTUPRO DE VULNERÁVEL” E DA RESPONSABILIDADE PELO CRIME DE ABORTO

Em primeiro plano é preciso deixar claro que não há a menor dúvida de que Bitencourt está absolutamente correto em defender a tipificação, em tese, da conduta do investigado como “Estupro de Vulnerável”. Todos os elementos desse tipo penal, previsto no artigo 217 – A, CP estão, indubitavelmente, preenchidos. Houve a prática de atos libidinosos, inclusive conjunção carnal, com a menor de apenas 10 anos, portanto, menor de 14 anos, conforme exige a lei, sendo de destacar que denominamos essa elementar de circunstância vulnerável biológica[4]. Nem mesmo importa indagar se houve violência, grave ameaça ou constrangimento de qualquer espécie, eis que o tipo penal é simplesmente proibitivo dessa modalidade de relação sexual entre um adulto e uma criança, a qual é incriminada por si mesma (a conduta).

A antiga discussão acerca da “presunção de violência” está superada:

Com a criação do crime de Estupro de Vulnerável pretendeu o legislador contornar toda essa polêmica, simplesmente erigindo à condição de ilícito penal a conduta em si de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menores de 14 anos, enfermos ou deficientes mentais sem discernimento ou com pessoa que por qualquer outra causa não pode ofertar resistência. A partir de agora não há que se falar em alguma presunção nem mesmo em eventual equiparação, mas simplesmente na existência de uma proibição legal com sanção penal para quem pratique essas espécies de conduta. [5]   

Esse entendimento é corroborado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, com a edição da Súmula 593, vazada nos seguintes termos:

O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

Por fim, o legislador para sepultar de vez a vexata quaestio, elaborou projeto de lei que deu origem à norma penal explicativa prevista no 217-A, §5º, introduzido pela Lei 13.718/18, in verbis:

“As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.”            

Portanto, inviável discordar da conclusão de Bitencourt quanto à tipificação do crime de “Estupro de Vulnerável” no caso enfocado.

Entretanto, quando aponta para a presença de qualificadoras relacionadas às lesões graves pela incapacitação por mais de 30 dias e pelo perigo de vida, decorrentes da prática abortiva a que foi a criança submetida, a situação já não é tão nítida.

Não restou bem esclarecido se a intervenção abortiva se deu também como “necessária ou terapêutica”, nos moldes do artigo 128, I, CP. Sabe-se que a gravidez em tenra idade pode ser arriscada para a gestante, mas não se tem como, a princípio, determinar que será necessariamente ou ao menos muito provavelmente fatal. Tanto é fato que as estatísticas demonstram que a mortalidade de meninas abaixo dos 14 anos em casos de gravidez é bastante baixa. Infelizmente o caso em destaque não é único nem mesmo raro. O Ministério da Saúde indica que há pelo menos 20 mil casos de menores de 15 anos que engravidam anualmente no Brasil. O índice de mortalidade é baixo, considerando que para cada 100.000 casos ocorrem somente 66 óbitos maternos (0,066%) e nem sequer há a indicação exata sobre a etiologia dessas mortes, podendo ser, ou certamente sendo fato que algumas não decorrem especificamente da questão etária. [6]

Na verdade, as notícias acerca da prática abortiva levada a efeito versam mais direta e corretamente sobre a questão da gravidez oriunda de estupro, de acordo com o artigo 128, II, CP.

Se fosse realmente comprovado que o aborto foi realizado para “salvar a vida da gestante” no caso em estudo, seria viável considerar as qualificadoras apontadas por Bitencourt, eis que no aborto “necessário ou terapêutico” se prescinde do consentimento da gestante ou de seus representantes legais, havendo, portanto, causalidade direta entre a conduta daquele que engravidou a pessoa do sexo feminino e a prática abortiva. O aborto, como já sugere claramente o “nomen juris” empregado na lei, é “necessário”, não contingente ou eletivo.

Mas, no caso concreto não parece que havia uma “necessidade” clínica da prática abortiva para salvamento da vida da gestante. Certamente seria uma chamada “gravidez de risco”, mas o risco para a saúde da gestante não serve como fundamento para configurar o aborto necessário ou terapêutico. É bem verdade que o risco para a vida da gestante não precisa ser atual nem mesmo iminente, mas é imprescindível o prognóstico de morte. A mera possibilidade de lesão à saúde não é suficiente para autorizar o aborto terapêutico.

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Na lição de Damásio, “o aborto necessário só é permitido quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Assim, subsiste o delito quando provocado a fim de preservar a saúde”. [7]

É o próprio Cezar Roberto Bitencourt que apregoa no mesmo sentido:

O aborto, ademais, deve ser o único meio capaz de salvar a vida da gestante, caso contrário o médico responderá pelo crime. Logo, a necessidade não se faz presente quando o fato é praticado para preservar a saúde da gestante ou para evitar a desonra pessoal ou familiar. (grifo nosso). [8]

E no caso concreto em estudo, se a gravidez era de risco, também arriscado é o procedimento do aborto, inclusive sob o ponto de vista psíquico. A alegação de que existe o chamado “aborto seguro” (sic) é uma gigantesca falácia que serve de sustento para uma narrativa pseudoprotetora dos direitos da mulher. Na literatura especializada, Frantz deixa claro que “as evidências científicas apontam que a realização do procedimento do aborto expõe a mulher a riscos para a sua saúde, tanto nos locais onde é legalizado como naqueles onde não é”. [9]

Enfim, tudo indica que não é possível sustentar a qualificação do “Estupro de Vulnerável” na ocorrência de um suposto aborto necessário (artigo 128, I, CP). Resta saber se Bitencourt teria fundamento para indicar a qualificação do crime, em se tratando, como se trata, ao que tudo indica, de aborto “sentimental, humanitário ou ético”, ou seja, decorrente da gravidez resultante de estupro, nos estritos termos do artigo 128, II, CP.

Diversamente do aborto “necessário”, o aborto “sentimental” somente pode ser realizado com o consentimento da gestante, ou em sendo ela incapaz, de seus representantes legais (inteligência do artigo 128, II, CP). No caso concreto em estudo, a gestante era incapaz, pois menor de 10 anos. A decisão cabia a seus representantes legais. Ao que se sabe pelos noticiários, essa decisão foi tomada por tais pessoas e, ao que consta, também era da vontade da menor. É preciso notar que o aborto “sentimental” somente ocorre mediante deliberação de quem de direito e essa pessoa não é, obviamente, o estuprador. Significa dizer que o aborto “sentimental” é um procedimento eletivo, opcional e não impositivo ou “necessário”.

Dessa forma, embora o autor do crime tenha praticado o estupro e gerado a gravidez da vítima, daí não segue naturalmente a ocorrência do aborto, de maneira que se possa justificar uma relação de causalidade. Esse vínculo causal é rompido na exata proporção em que o aborto é fruto de uma decisão livre de terceiros e não do estuprador ou imposta por lei ou circunstâncias médicas. Esse aborto poderia não ter ocorrido acaso a gestante e seus representantes legais deliberassem por levar a termo a gravidez. É da decisão da vítima e/ou de seus representantes legais que deriva a ocorrência do aborto, sendo visível um desvio do encadeamento causal. Assim sendo, se a incapacitação por mais de 30 dias e o perigo de vida decorreram do procedimento do aborto “sentimental”, isso não pode ser imputado validamente ao autor do estupro, por mais que isso nos pareça frustrante quanto ao rigor pretendido na punição do agente.

É bem verdade que sem o estupro não haveria gravidez e sem esta o aborto. Entretanto, a interrupção do nexo causal se dá quando se constata que o aborto não era “necessário”, mas resultado de uma escolha, a qual nunca coube ao infrator. Defender tese avessa a isso é advogar que o artigo 13, CP tenha o poder incontido de ensejar um nefasto “regressus ad infinitum”. É pensar que a chamada “Teoria da Equivalência dos Antecedentes Causais” (“conditio sine qua non”), possa ser aplicada em sua literalidade, atingindo pessoas que estejam, de qualquer modo, na cadeia causal de um evento, independentemente da presença de liame subjetivo com o resultado enfocado.

Infelizmente, a opção da gestante e seus representantes legais pela prática do aborto “sentimental”, a que não estavam obrigados, foi o que efetivamente ensejou a intervenção médica com todos os seus danos (incapacitação por mais de 30 dias) e riscos (perigo de vida). A interposição da vontade da gestante e de seus familiares entre a conduta do estuprador e o aborto e suas consequências provoca uma fissura visível e inegável no nexo de causalidade, a qual impede a responsabilização do infrator pelas qualificadoras. Ocorre que a prática do aborto depende exclusivamente da deliberação da gestante e seus familiares, podendo-se afirmar que essa deliberação, por si só, ocasionou o evento do aborto. Nessa situação, nos termos do artigo 13, § 1º., CP, “o legislador afasta a imputação (...), impedindo que o agente responda pelo evento subsequente, somente sendo possível atribuir-lhe o resultado que diretamente produziu” (grifo no original). [10] Por isso, “data venia”, incorre em equívoco Bitencourt, quando em seu vídeo faz alusão à causação do resultado pelo infrator, “ainda que indiretamente”. [11]

Ademais, a situação em destaque é muito similar a exemplos que a doutrina oferta para os casos que se costuma denominar de “soluções aberrantes” para a “teoria da conditio sine qua non”, visando evitar exatamente o efeito do “ciclo causal interminável” ou “regressus ad infinitum”. Vejamos alguns desses exemplos de chamados “cursos causais extraordinários”:

São exemplos: a imputação da morte decorrente do incêndio no hospital ao agente que atropelou a vítima culposamente, fazendo com que ela fosse internada no nosocômio; a atribuição da morte de um paraplégico durante desabamento em um estabelecimento fechado a quem deu causa à sua condição de deficiente físico em anterior acidente, caso se constate que o falecido teria sobrevivido se não tivesse reduzida  sua mobilidade. [12]

Para além da questão da fratura da relação de causalidade mais que nítida, há que levar em conta que esses resultados derivados de um aborto eletivo (realizado por decisão ou escolha da gestante e seus familiares) não podem ser imputados ao infrator, a não ser por meio do recurso espúrio à “responsabilidade objetiva”, a qual há tempos foi excluída da concepção de responsabilidade penal, que é necessariamente subjetiva (inteligência do artigo 19, CP). Não se admite há muito tempo a responsabilização de alguém por algum resultado com base no chamado “versari in re illícita”. No Direito Penal da atualidade não é viável responsabilizar alguém por ato deliberado de outrem. No caso, a escolha pela prática do aborto competiu à própria vítima e seus familiares, não havendo conduta e nem elemento subjetivo do autor do estupro nessa tomada de decisão.

Gomes, Bianchini e Molina são enfáticos ao asseverar ser inviável o castigo de alguém por ato de outrem, salvo se houver obrigação legal de controle, vigilância, monitoramento ou supervisão em relação a tal pessoa. [13] E no caso enfocado, o infrator não tem nenhuma influência na deliberação pela prática do aborto ou não. Isso é incumbência da gestante e seus representantes legais, nos estritos termos do artigo 128, II, CP, de modo que é impossível vislumbrar um liame subjetivo entre o infrator e a ocorrência do aborto. Consequentemente, os danos e perigos derivados da prática abortiva também não podem ser imputados ao estuprador, afastando “in casu” a configuração da qualificadora do § 3º., do arrigo 217 –A, CP.  

No mesmo diapasão, seja por falta de relação de causalidade, seja porque se configuraria “responsabilidade penal objetiva” (“versari in re illicita”) é absolutamente inviável responsabilizar o estuprador pelo crime de aborto previsto no artigo 125, CP, conforme defendido por Bitencourt. O aborto deriva da decisão da gestante e seus representantes legais. Ele não é “necessário” e sim eletivo ou contingente. Assim sendo, inexiste liame subjetivo entre a conduta do infrator e a prática abortiva levada a termo.

No caso da pretensa responsabilização por crime de aborto, nos termos do artigo 125, CP, também é impossível a imputação por outra razão relevante. A conduta do estuprador, com relação ao crime de aborto seria atípica. Não há possibilidade alguma de subsumir sua conduta às descrições típicas dos crimes de aborto previstos no Código Penal Brasileiro.

O “auto – aborto” e o “aborto consentido”, previstos no artigo 124, CP, são crimes próprios da gestante, de modo que jamais poderiam ser imputados ao acusado. O aborto que ocorreu foi praticado por terceiros com o consentimento da gestante e de seus representantes legais. Acaso houvesse um crime, seria aquele previsto no artigo 126, CP. Não houve devido à aplicação do disposto no artigo 128, II, CP, excluindo a ilicitude. Ora, quem praticou aborto com o consentimento da gestante foi a equipe médica respectiva e não o acusado. Dessa forma, também inviável sua responsabilização por esse crime. Finalmente, não houve em momento algum aborto sem o consentimento da gestante.  Esse fato simplesmente jamais ocorreu, não podendo ser imputado não somente ao acusado praticante de estupro, mas a absolutamente ninguém, nem mesmo que, por algum motivo, se afastasse a excludente prevista no artigo 128, II, CP. Não houve, em momento algum, aborto sem o consentimento da gestante, mas apenas um aborto com o consentimento da vítima e de seus representantes legais. A pretensão de Bitencourt de imputar ao acusado a prática do crime previsto no artigo 125, CP é totalmente inviável porque sua conduta é desbragadamente atípica com relação a esse dispositivo. A imputação pretendida violaria frontal e escandalosamente o “Princípio da Legalidade”.

Com o mais absoluto respeito, é ainda preciso atentar para o fato de que quando o acusado abusou sexualmente da sobrinha esta sequer estava grávida. Isso é óbvio, pois que quem a engravidou teria sido o próprio infrator. Dessa forma não é possível pretender sequer que o aborto sem o consentimento da gestante tivesse derivado do ato de estupro. Isso porque no momento do estupro a vítima, por obviedade, não estava grávida. Trata-se de absoluta impropriedade do objeto[14] de forma a configurar-se crime impossível nos estritos termos do artigo 17, CP. É o próprio Bitencourt que, a exemplo de toda a doutrina, ensina que “há crime impossível quando manobras abortivas são praticadas “em mulher que não está grávida”. [15]

É evidente que em seu vídeo Bitencourt não pretende dizer que o aborto foi ocasionado na oportunidade do estupro. Entretanto, para que a prática do aborto pudesse ser, de qualquer forma, imputada ao acusado, seria imprescindível que houvesse liame subjetivo, conduta objetiva e relação de causalidade entre o ato do estupro e a prática do aborto sem o consentimento da gestante. Não há nada disso. Como visto, sequer há a ocorrência de um aborto sem o consentimento da gestante.

Em verdade, a questão sequer resiste a uma análise mais detida do dolo. Este elemento subjetivo do tipo se constitui da finalidade principal e direta do agente, dos meios escolhidos para se realizar o fim pretendido e os efeitos colaterais típicos necessários ou possíveis.

Isso significa dizer que o denominado dolo penalmente relevante é o atual[16] ou concomitante, ou seja, a consciência e a vontade do agente no exato momento que realiza a conduta típica, momento da execução do verbo do tipo, consequentemente, visando atingir um bem jurídico penalmente tutelado.

Assim sendo, no crime de aborto, que possui como elemento constitutivo da tipicidade, independente da modalidade, a conduta “provocar aborto”, consistindo no extermínio da vida intrauterina, o que pressupõe, logicamente uma vítima grávida. Faz –se necessário estar configurada na consciência e vontade, a antevisão do agente de que, ao empregar o meio escolhido da conjunção carnal para o estupro, a vítima estava grávida, isso no momento da execução do abuso. Somente assim é possível transmudar esse comportamento na causa direta do resultado morte da vida intrauterina, bem jurídico protegido, o que não seria possível ocorrer pelas razões já expostas.

Admitir o dolo de aborto no momento do estupro seria aceitar como relevante o mero desejo, que em outras palavras seria o dolo anterior, que nada mais é do que a fase de cogitação, impunível no Direito Penal.

O próprio Bitencourt nos alerta que o simples desejo distingue-se da vontade:

O dolo eventual não se confunde com a mera esperança ou simples desejo de que determinado resultado ocorra, como no exemplo trazido por Welzel, do sujeito que manda seu desafeto a um bosque, durante uma tempestade, na esperança de que seja atingido por um raio. [17]

No plano da vontade, também assevera o referido autor:

A vontade de realização do tipo objetivo pressupõe a possibilidade de influir no curso causal, pois tudo o que estiver fora da possibilidade de influência concreta do agente pode ser desejado ou esperado, mas não significa querer realizá-lo. [18]

O trágico aborto provocado pelo médico, mas com consentimento dos representantes legais da gestante, tem como elemento causal a decisão sobre o abortamento, que poderia ocorrer ou não, o que por si só representa um rompimento com a necessária influência concreta do agente para o aborto, rompendo-se, desta forma, com o nexo causal entre este e o crime de estupro.

Nosso ordenamento admite uma exceção ao dolo anterior como relevante, ou seja, que seja praticado no futuro, consequentemente, um resultado ulterior. Ocorre quando o agente se embriaga voluntariamente e de forma preordenada, para a prática do ilícito penal, fazendo incidir a teoria da actio libera in causa.[19]

Nesse caso, o agente no momento da prática da conduta, está transitoriamente desprovido de voluntariedade atual, em razão da embriaguez. Contudo, considera-se o dolo no momento da ingestão da bebida alcoólica, que foi voluntária, portanto, livre na causação da conduta posterior, restando sua punição com agravamento previsto no artigo 61, II, “1”, do Código Penal.

Essa teoria não se aplica ao caso da forma que ele ocorreu, porquanto o agente na “actio libera in causa” precisa ter previsão do resultado aborto (e não da gravidez), o querer ou assumir o risco, frisamos, do aborto e não da gravidez, que por si só é exaurimento do crime de estupro. O exaurimento é passível de ser punido como causa de aumento, conforme art. 234-A, III do CP, técnica comum adotada pelo legislador, conforme também encontramos a título de exemplo, no crime de corrupção passiva, à luz do art. 317, §1º do CP, também com causa de aumento de pena.

Ainda que não tenha previsto o resultado aborto, mas esse resultado aborto (não gravidez) fosse previsível, ou seja, que se a vítima engravidasse ocorreria um aborto, por deliberação dos seus responsáveis legais, a punição seria a título de culpa e não de dolo eventual, o que também não ensejaria tipicidade porque não há o tipo penal de aborto na modalidade culposa. Seria, em verdade, o caso do preterdolo (dolo no antecedente, culpa no consequente) que configuraria a qualificadora do estupro pelo aborto enquanto lesão corporal gravíssima, conforme será melhor exposto neste texto no seguimento e, jamais, o crime de aborto em concurso material.

Finalmente, com relação à questão do aborto há outro equívoco, “data maxima venia”, de Bitencourt.

Sua tentativa de fundamentar o concurso material entre “Estupro de Vulnerável” e “Aborto sem o consentimento da gestante” é absolutamente inviável diante do ordenamento jurídico brasileiro. Explica-se:

No crime de “Estupro de Vulnerável” existe a qualificadora prevista no artigo 217 – A, § 3º., CP, referente ao resultado “lesões graves”. É exatamente a esta qualificadora que faz menção Bitencourt ao pretender sua ligação com o perigo e vida e a incapacitação da menor devido à prática do aborto “sentimental”. Já vimos que essa ligação é inviável.

No entanto, é a previsão dessa mesma qualificadora das lesões graves no “Estupro de Vulnerável” que impede o intento de Bitencourt de punir o infrator em concurso material por “Estupro de Vulnerável” e “Aborto sem o consentimento da gestante”. Isso porque, como visto, a presença de “lesões graves” com relação de causalidade com o estupro, conduz à qualificadora em destaque. Frise-se que quando a lei se refere a “lesões graves”, a expressão é ampla, abrangendo as “lesões graves” e também as “lesões gravíssimas”. Sabe-se que o único “nomen juris” existente no Código Penal é o de “lesões graves”, sendo a expressão “lesões gravíssimas” forjada e aceita pela doutrina, salvo as recentes alterações do Código Penal, que passaram a adotar essas classificações terminológicas (art. 122, §§1º e 6º do CP). Não obstante, quando o legislador se refere a “lesões graves”, está claramente se reportando também às “gravíssimas”, até por uma questão de proporcionalidade e razoabilidade.

Ora, uma das lesões graves (na verdade gravíssima) prevista em lei, mais precisamente no artigo 129, § 2º., V, CP, é exatamente o “aborto”. Observe-se, portanto, que se de um “Estupro de Vulnerável” resulta “aborto” o crime é qualificado nos termos do § 3º., do artigo 217 – A, CP. Isso com certeza afasta a possibilidade de concurso material ou mesmo formal de crimes com o aborto, conforme proposto por Bitencourt. Esse suposto concurso configuraria dupla punição pelo mesmo fato, o conhecido “bis in idem”, que jamais pode ocorrer. Então, se realmente da conduta do estuprador tivesse decorrido aborto, a tipificação seria a da qualificadora do § 3º., do próprio artigo 217 –A, CP e nunca o concurso de crime entre “Estupro de Vulnerável” e “Aborto”.

Acontece que nem mesmo a qualificadora é reconhecível no caso concreto. Isso porque, como já visto, a vítima não estava grávida e não podia abortar em razão de eventual violência do ato sexual e isso é imprescindível para configurar a qualificadora em questão. O aborto ocorre somente posteriormente, quando a vítima é engravidada pelo próprio violador e decide, com seus representantes legais, autorizar um aborto praticado por médico.

Ninguém menos do que o próprio Cezar Roberto Bitencourt é quem ensina que as lesões graves ou gravíssimas que qualificam o “Estupro de Vulnerável” devem decorrer da violência aplicada no ato. Isso nos conduz à conclusão de que a vítima dessas lesões graves, quando consistentes em aborto, deve estar grávida no momento do abuso e abortar em razão deste. Vejamos “in verbis” o que nos ensina Bitencourt:

Neste tópico, examinaremos as qualificadoras que resultam da violência na execução do crime, propriamente. Nessas qualificadoras (que só podem decorrer da violência empregada, embora o legislador tenha preferido a locução “da conduta”), o maior desvalor do resultado (lesão grave ou morte da vítima) é real e não presumido. O desvalor da ação já está valorado no preceito primário do caput do artigo sub examen. [20]

E esse ensinamento de Bitencourt que inviabiliza sua própria tese advogada em seu vídeo nas redes sociais, não destoa da melhor doutrina, o que reforça que sua mais atual manifestação sobre o caso enfocado não encontra sustento. Senão vejamos o que nos diz a respeito Greco:

Por lesão corporal de natureza grave devemos entender aquelas previstas pelos §§ 1º. e  2º. do art. 129 do Código Penal.

A Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, diz, claramente, que a lesão corporal de natureza grave, ou mesmo a morte da vítima, devem ter sido produzidas em consequência da conduta do agente, vale dizer, do comportamento que era dirigido finalisticamente no sentido de praticar o estupro (grifo nosso).  [21]

Compreende-se claramente que as lesões graves ou gravíssimas de incapacitação, perigo de vida ou mesmo do aborto, devem decorrer da violência usada como meio para o estupro e não de fatores ulteriores dependentes da atuação volitiva da própria vítima ou de terceiros.

Ademais, tanto a incapacitação da vítima para suas atividades por mais de 30 dias quanto o perigo de vida se sujeitam a uma análise médico-legal, pois são consideradas vestígios do crime, por força do novo art. 158 do CPP, cujo conceito foi complementado pela inclusão do art. 158-A, §3º, introduzido pela Lei 13.964/19, ipsis literis:

“§ 3º Vestígio é todo objeto ou material bruto, visível ou latente, constatado ou recolhido, que se relaciona à infração penal.”

A concepção de objeto no dispositivo supra é aquele relacionado à infração penal que deixa vestígios (art. 158, do CPP), consequentemente o objeto jurídico do crime, no caso em estudo, o corpo da vítima.

Por essa razão, as circunstâncias que qualificam a lesão corporal se sujeitam a exame pericial, o que não nos permite afirmar suas existências  antes da análise de um médico legista.

Com respeito à incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias, por se tratar de uma criança as consequências são distintas dos adultos, contudo  em geral a gestante que se sujeita a um procedimento cirúrgico dessa natureza,  retoma as atividades habituais em menos de 30 dias. Entretanto, essa conclusão é de ordem médico-legal, portanto somente pode ser avaliada por meio de exame pericial, em especial, no caso concreto, mediante exame complementar conforme apregoa o art. 168, §2º do CPP:

“§ 2º  Se o exame tiver por fim precisar a classificação do delito no art. 129, § 1º, I, do Código Penal, deverá ser feito logo que decorra o prazo de 30 dias, contado da data do crime.”

Em se tratando da circunstância perigo de vida, na realidade  perigo de morte, que por sua vez não se confunde com risco de morte, um procedimento cirúrgico pode sujeitar o paciente a um risco de morte, mas o perigo é uma constatação aferível em seu aspecto clínico e médico-legal. Frise-se, é este que importa para o direito penal e o processo penal.

Não nos deixa mentir a doutrina de Delton Croce[22]:

O perigo de vida é uma situação atual, ou surgida no curso de processo patológico, consequente à ofensa, em que, pelo estado do ofendido, há o perigo de morte, se não for socorrido adequadamente em tempo hábil. O perigo de vida pode apresentar-se no momento da lesão ou depois de horas ou dias, em qualquer fase da evolução clínica, antes dos 30 dias.

No mesmo sentido Wilson Luiz Palermo Ferreira[23]:

“O diagnóstico de perigo de vida precisa ser concreto, real, existente, comprovado através de documentos médicos especializados.”

O perigo de vida deve ser relacionado ao comportamento do agente e por essa razão, além da necessária seriedade deve ser atual e que sujeite a vítima a uma quase morte. A sujeição de alguém a um procedimento cirúrgico, por si só, não pode ser considerado perigo de vida, que geralmente se caracteriza pela inoperância de uma função vital recuperada após necessária intervenção médica, como ocorre em uma parada cardíaca, estado de coma, parada cerebral etc.

De qualquer forma, ainda que o aborto pudesse ser imputado à conduta do abusador, não seria jamais o caso de concurso de crimes, mas sim o de reconhecimento de uma qualificadora, nos termos do artigo 217 – A, § 3º., CP, com as ressalvas processuais penais e médico-legais referidas, cabíveis também às qualificadoras da incapacitação e do perigo de vida.

Destaque-se, por oportuno, que não se pretende aqui, no que tange às observações de natureza processual, atribuir a Bitencourt alguma precipitação na classificação das lesões graves sem o devido respaldo de materialidade. É evidente que o autor se manifestou em um vídeo rápido e fez suas afirmações embasado na experiência geral de casos similares, pressupondo certamente a futura presença da materialidade propiciada pelos devidos exames e laudos periciais. Vale ainda dizer que essas questões processuais são expostas somente a título de maior esclarecimento, vez que, na verdade, as qualificadoras não seriam reconhecíveis, independentemente da materialidade discutida devido aos outros problemas já expostos, tais como relação de causalidade, legalidade, crime impossível, responsabilidade penal subjetiva etc.

Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Ruchester Marreiros Barbosa

Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal. Foi aluno especial do programa de Mestrado em Direito Penal e Criminologia (UCAM/RJ). Foi aluno do programa de doutoramento em Direitos Humanos (Universidad Nacional Lomaz de Zamora, Argentina) Ex Coordenador da Pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal da Universidade Estácio de Sá/RJ. Membro da Subcomissão do projeto de lei do Novo Código de Processo Penal na Câmara dos Deputados. Premiado 6 vezes consecutivas “Melhor Delegado de Polícia do Brasil”. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Direitos Humanos. Autor de livros e artigos. Colunista do site Consultor Jurídico. Colaborador da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; BARBOSA, Ruchester Marreiros. O estupro da menina de dez anos e a tipificação:: uma visão crítica ao posicionamento de Cezar R. Bitencourt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6374, 13 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85198. Acesso em: 22 dez. 2024.

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