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O estupro da menina de dez anos e a tipificação:

uma visão crítica ao posicionamento de Cezar R. Bitencourt

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4-DA TENTATIVA DE REFORÇO DO FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE POR ABORTO POR PARTE DE BITENCOURT COM O RECURSO À TEORIA DA RELEVÂNCIA DA OMISSÃO

Como já mencionado linhas volvidas, Bitencourt grava um segundo vídeo após algumas críticas formuladas ao seu posicionamento. Nesse vídeo procura justificar novamente o concurso material entre “Estupro de Vulnerável” e “Aborto sem o consentimento da gestante” com sustento na alegação de que o abusador seria um garante quanto ao aborto futuro e teria cometido tal crime na forma comissiva por omissão ou omissiva imprópria. [24]

Já foi visto que as teses de Bitencourt, salvo a tipificação do crime de “Estupro de Vulnerável”, não se sustentam diante de questões como relação de causalidade, tipicidade e legalidade, responsabilidade penal subjetiva e “bis in idem”.

Novamente, com todo o respeito merecido pelo autor, o manejo do argumento da conduta comissiva por omissão não serve para afastar os vícios anteriores, bem como também não se sustenta por sua própria fundamentação.

Alega o autor em discussão que o abusador, ao não utilizar preservativo e não prevenir a gravidez, causou um risco pelo qual se torna responsável por evitar os resultados daí decorrentes, quais sejam, a gravidez da vítima e eventual aborto “sentimental” (artigo 128, II c/c artigo 13, § 2º., “c”, CP).   Em suma, o acusado teria o dever jurídico de evitar a gravidez e, consequentemente, o aborto futuro.

A tese pode parecer sedutora, mas é enganosa. Certamente induziu a erro involuntário o próprio Cezar Roberto Bitencourt.

Note-se que o intento de Bitencourt é o de imputar ao abusador o crime de aborto por omissão imprópria, vez que, segundo seu entendimento, ele ocasionou o risco com sua conduta e poderia ter evitado o resultado mediante o uso de preservativo. Mas, a verdade é que não estava nas mãos do infrator impedir o aborto. É claro que se não houvesse gravidez, o aborto seria impossível. Mas, ao fim e ao cabo, o aborto somente se processou por vontade ou escolha da vítima e de seus representantes legais. A prática ou não do aborto jamais esteve nas mãos do infrator e sim da vítima, de sua família e da equipe médica. É preciso lembrar que antes de perquirir sobre a condição de garante assumida pelo infrator é sempre imprescindível avaliar se efetivamente ele “podia agir para evitar o resultado”. A omissão somente será relevante se houver essa possibilidade de ação, o que, no caso concreto, se mostra inviável, já que a decisão pelo aborto “sentimental” ou não era da incumbência da vítima e de seus representantes legais por força de lei (artigo 128, II, CP). Como leciona Galvão:

O Código Penal brasileiro enfrentou de maneira expressa o tema dos crimes comissivos por omissão, estabelecendo, no § 2º. do art. 13, que a omissão é relevante quando o omitente tiver o dever e o poder de agir para evitar o resultado. Satisfeitas as exigências do dever de agir e do poder de agir, haverá o nexo de causalidade normativo entre a omissão e o resultado (grifos no original). [25]

Outrossim, a pretensão de Bitencourt de que caberia ao estuprador o dever de evitar a gravidez se choca com o fato de que para os crimes contra a dignidade sexual perpetrados contra mulheres já é prevista uma causa de aumento de pena, aplicável ao caso concreto em estudo, sempre que do abuso sexual resulte gravidez, nos termos do artigo 234 – A, III, CP (aumenta-se a pena de metade).

Nesse passo, pretender responsabilizar o implicado, mediante o artifício do recurso ao suposto crime comissivo por omissão, consistiria novamente em reprovável e inviável “bis in idem” ou responsabilização dupla pelo mesmo fato. Sua conduta de não evitar a fecundação já lhe ensejará um aumento considerável na pena (metade). Não é possível que venha a ser apenado novamente pelo mesmo fato, imputando-se-lhe um crime de aborto por suposta omissão imprópria. Isso sem contar nos demais e decisivos argumentos pelos quais o crime de aborto não pode jamais ser imputado ao envolvido, conforme já fartamente demonstrado neste trabalho.


5-ASPECTOS OLVIDADOS POR BITENCOURT EM SUA EXPOSIÇÃO A RESPEITO DA RESPONSABILIZAÇÃO DO ACUSADO

Como visto logo acima, Bitencourt se esqueceu de imputar ao infrator o aumento de pena da ordem de metade no crime de “Estupro de Vulnerável” por ter provocado a gravidez da vítima, nos estritos e induvidosos termos do artigo 234 – A, III, CP.

Também deixou de lado outra causa de aumento de pena, prevista no artigo 226, II, CP, também da ordem de metade, tendo em vista ser o autor do ilícito “tio” da vítima.

A primeira causa de aumento pode ser comprovada nos autos pelos prontuários médicos da menor e pela própria realização do ato abortivo, afora a necessária prova pericial. A segunda causa de aumento, pela relação de parentesco, será comprovada facilmente por meio de documentos a serem juntados aos autos, “in casu” respeitando-se as restrições da lei civil em relação à prova sobre estado de pessoa, conforme art. 155, parágrafo único do CPP.

Também poderia ter abordado o autor a questão da possibilidade antevista por parte da doutrina e jurisprudência da ocorrência de concurso material ou concurso formal entre os vários abusos perpetrados pelo infrator ao longo do tempo contra a vítima. Outra opção seria o reconhecimento da figura da continuidade delitiva. Para todas essas hipóteses haveria ou o cúmulo material de penas por vários “Estupros de Vulnerável” perpetrados há anos contra a vítima ou ao menos um incremento penal. É verdade que tem predominado a tese de que seria de se considerar em geral a ocorrência de crime único, inobstante os variados atos abusivos, sendo essa a posição já adotada inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal (v.g. STJ, AgReg HC 252144 SP; HC 167517/SP e HC 105533/PR). [26]

Não obstante ser essa posição dominante nas cortes superiores, a discussão doutrinária poderia ser interessante no caso concreto, eis que a prática reiterada de abusos pelo infrator nos parece remanescer senão impune, viciada por insuficiência protetiva dada a gravidade da situação específica, ferindo de morte o princípio da vedação ou proibição da proteção deficiente, decorrente do princípio da proporcionalidade[27], não sendo despicienda a discussão acerca até mesmo de possível cúmulo material. Mas, também essa questão foi deixada à margem pelo autor em destaque em seu vídeo nas redes sociais.


6-CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho foi estudada a questão da devida tipificação da conduta do tio que abusava sexualmente da própria sobrinha, dos 6 aos 10 anos de idade, chegando a engravidá-la.

A análise se fez com base na discussão crítica respeitosa das sugestões elaboradas pelo jurista Cezar Roberto Bitencourt em dois vídeos gravados e divulgados na rede social instagram.

O entendimento advogado pelo autor em destaque foi submetido ao escrutínio teórico sob o ponto de vista exclusivamente técnico – jurídico, chegando-se à conclusão de que suas indicações, salvo a tipificação inconteste do crime de “Estupro de Vulnerável” (artigo 217 – A, CP), não encontram abrigo na melhor interpretação e aplicação lei, bem como na subsunção do caso às tipificações à disposição na legislação brasileira.

Há infrações, no raciocínio do autor em destaque, ao dolo, à relação de causalidade, tipicidade, legalidade, proibição de dupla imputação pelo mesmo fato (“bis in idem”) e responsabilidade penal subjetiva.

Noutra banda, verifica-se que Bitencourt olvida importantes temas como a presença de duas causas especiais de aumento de pena da ordem de metade, bem como a questão da discussão sobre possível concurso de crimes material ou formal, considerando os reiterados abusos perpetrados pelo tio da menor ao longo do tempo, o que, inclusive, feitas as contas, principalmente considerando o concurso material, levaria a apenação até mais gravosa do que aquela a que se chegaria pela sugestão formulada pelo ínclito jurista.

Não poderíamos nos furtar a indicar nosso entendimento a respeito da devida tipificação da conduta do infrator. A nosso ver seria o caso de responsabilização unicamente pelo crime de “Estupro de Vulnerável” com dois aumentos de pena da ordem de metade pela condição do autor de “tio” da vítima e pelo resultado gravidez. Além disso, seria defensável, embora haja, como exposto anteriormente, divergências a respeito, o reconhecimento do concurso material delitivo, tendo em vista o número de infrações praticadas e apuradas devidamente comprovadas nos autos (artigo 217 –A, “caput”, CP c/c artigo 226, III, CP e 234-A, III, CP, bem como artigo 69, CP).

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REFERÊNCIAS

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Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Ruchester Marreiros Barbosa

Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal. Foi aluno especial do programa de Mestrado em Direito Penal e Criminologia (UCAM/RJ). Foi aluno do programa de doutoramento em Direitos Humanos (Universidad Nacional Lomaz de Zamora, Argentina) Ex Coordenador da Pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal da Universidade Estácio de Sá/RJ. Membro da Subcomissão do projeto de lei do Novo Código de Processo Penal na Câmara dos Deputados. Premiado 6 vezes consecutivas “Melhor Delegado de Polícia do Brasil”. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Direitos Humanos. Autor de livros e artigos. Colunista do site Consultor Jurídico. Colaborador da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos ; BARBOSA, Ruchester Marreiros. O estupro da menina de dez anos e a tipificação:: uma visão crítica ao posicionamento de Cezar R. Bitencourt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6374, 13 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85198. Acesso em: 26 abr. 2024.

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