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Covid-19 e a possibilidade de prisão em flagrante e persecução penal em face dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal do Brasil

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Durante a pandemia, governadores e prefeitos alardearam a possibilidade de prisão em flagrante em razão de descumprimento às medidas de isolamento. Há respaldo jurídico para tanto?

Introdução

Com a rápida disseminação do vírus Sars-Cov-2, responsável pela atual pandemia da doença Covid-19, muitas são as instabilidades geradas pelas medidas públicas adotadas pelo Poder Público nesse ínterim. As principais delas, cujos impactos têm sido maiores em toda a mídia, são as medidas trabalhistas e tributárias, pois que afetam diretamente a economia, quer seja abarcando os empresários, quer seja abarcando os trabalhadores.

No entanto, com bem menos destaque público, vicejam as inúmeras — e polêmicas — declarações de representantes do Poder Público sobre o emprego de força policial e possível persecução criminal nos casos de desrespeito à quarentena. Ademais, marcante nas redes sociais uma recente onda de exposição daqueles que não têm seguido à risca a orientação do isolamento. Ao verem suas imagens expostas nos perfis e questionarem sobre a divulgação destas sem a devida autorização, tem-se costumeiramente aventado a possibilidade de enquadrar tal comportamento à égide da conduta descrita pelo artigo 268 do Código Penal, qual seja:

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Com efeito, o escopo desse trabalho é o de realizar uma análise um pouco menos perfunctória acerca do tema, analisando pelo prisma da Constituição Federal, Código Penal, Código Civil e Decretos dos Estados e Municípios, a possibilidade da prisão em flagrante ou de instauração de inquérito nos casos assim pretensamente enquadrados, bem como sobre a validade da exposição da imagem de terceiros que estão descumprindo o isolamento social sugerido pelo Poder Público.


Dos Direitos e Garantias fundamentais da Constituição Federal

Ao cogitarmos o cenário explicitado pelo tópico introdutório, há que analisarmos alguns dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, base do nosso Estado Democrático de Direito. Ora, conforme acima descrito, caso houvesse uma decretação pelo poder público de quarentena, onde nenhum cidadão pudesse, sob nenhuma circunstância, sair de sua casa, claramente haveria violação aos incisos II, X, XV e XXII, artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil. Passemos então a análise dos incisos acima citados:

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Trata-se aqui do famígero princípio da legalidade, uma verdadeira garantia constitucional, por meio da qual procura-se proteger os indivíduos de atos arbitrários cometidos pelo Estado e até de outros particulares, sendo-lhes facultados de realizarem o que quiserem, desde que não conflitem com a disposição legal[1]. Desse modo, ante a ausência de lei que determine a estadia absoluta da população dentro de casa, não há que se falar em desobediência à ordem legal. Isso porque, os Estados e Municípios não possuem competência legislativa para editar normas acerca do direito de ir e vir dos cidadãos. En passant, sequer o legislativo federal teria tal competência, vez que violaria direito e garantia fundamental, o qual apenas pode ser tolhido em uma única situação, que será explicitado em tópico próprio.

Em que pese a edição da lei de n. 13.979/2020, a qual prevê medidas a fim de impedir o contágio e propagação do novo Coronavírus, esta não abrange toda a população, mas somente aqueles que demonstrarem que possuem os sintomas da doença ou que possam estar contaminados[2]. A estes, a segregação e isolamento compulsório, a fim de evitar a propagação do vírus, urgem como medidas cabíveis. Aos demais que não se enquadram nas situações previstas na lei, a determinação do poder público dos estados e municípios caracterizaria grave violação ao princípio esculpido no inciso II do artigo 5º da Carta Magna.

X – são invioláveis a intimidade, vida privada, a honra, e a imagem de pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Como trazido na introdução desse artigo, grande é a mobilização pela manutenção do isolamento social pelos cidadãos, haja vista as amplas campanhas publicitárias, nas quais se envolvem influenciadores, criadores de conteúdo e até mesmo artistas, que produzem verdadeiros shows transmitidos ao vivo dentro de suas residências, como forma de incentivo à permanência em casa. Em que pese o predomínio da mobilização positiva, há quem ultrapasse os limites legais ao tentar impor aos demais cidadãos a obrigatoriedade do isolamento social, sem que haja de fato respaldo jurídico para a permanência compulsória em local determinado.

Assim, surgem os defensores da boa conduta durante o período, que criam páginas com o objetivo de realizar denúncias aleatórias de pessoas que supostamente não estariam cumprindo bem a quarentena, de modo que seus nomes, imagens, intimidades e até mesmo localização tornam-se subitamente expostas.

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Todavia, conforme elucida o inciso deste tópico, a intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas são invioláveis, cabendo, a depender do caso, a devida indenização. Dos pontos expostos, vem o seguinte questionamento: se a pessoa gravou ou fotografou a sua conduta e colocou em seu perfil pessoal, então como podemos falar em quaisquer tipos de violações? Sobre isso, dois pontos merecem maior atenção.

O primeiro diz respeito àqueles que mantiverem suas contas pessoais desbloqueadas, ou seja, com livre acesso de qualquer pessoa ao seu perfil. Em que pese este fato, pouco importa a publicidade de seu perfil nas redes sociais, pois, ainda que o usuário não tenha controle sobre o que pode acontecer com a sua imagem, a divulgação indiscriminada não anula o direito à preservação de sua imagem e honra, de modo que a divulgação por ele feita jamais fora com o intuito de constranger a si mesmo.

O segundo ponto que merece destaque é o de que, por mais que os criadores das páginas divulguem que o intuito seja o de realizar denúncias, o que se pode observar é o evidente constrangimento experimentado pelo alvo da chacota, bem como a geração de onda de ataques que se sucedem contra aqueles que não estão seguindo o isolamento social. Ora, no beligerante cenário atual, a hiperexposição pode acarretar uma série de ataques à dignidade e à honra, tendo em vista que o ânimo de todos se encontram cada vez mais sensíveis, de modo que qualquer conduta, fora do recomendado nesses tempos, pode produzir incontáveis reações, não raras vezes, criminosas.

Assim, a exposição da imagem de terceiros sem a devida autorização, e com o claro e evidente intuito de constranger o seu íntimo, bem como direitos e garantias fundamentais, configura a possibilidade de indenização nos termos do artigo 186 do Código Civil[3].

XV – é livre a locomoção no território nacional em tempos de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

Conforme se pode extrair da leitura do inciso acima, ao cidadão é lícito se locomover livremente pelo território nacional, desde que o país esteja em tempos de paz. Esse é o insigne direito de ir e vir, consolidado na Carta Magna após anos de tolhimento[4].

Assim, pela análise fria do texto da lei, bem como do cenário atual, não há que se falar em proibição de circulação de pessoas pelo país, pois, por mais catastrófico que o cenário atual se apresente, não há que se falar em cenário de guerra e/ou ausência de paz. O que se observa, contudo, é o evidente despreparo por parte do Poder Público para a elaboração de políticas eficientes para evitar a disseminação do vírus, sem que seja prejudicada a economia do país.

Contudo, o fato de um cidadão se locomover nas vias públicas não fornece o direito de divulgação de sua imagem em páginas de redes sociais; ou ainda pior, não dá direito a estas mesmas de alegarem uma suposta infração ao artigo 268 do Código Penal — alegação, portanto, que poderia se enquadrar à conduta de calúnia descrita pelo artigo 138 do mesmo diploma[5].

XXII – é garantido o direito de propriedade

Não menos importante é a recriminação às pessoas que, durante esse período de pandemia, se mantêm recebendo amigos, prestadores de serviços, dentre outros, nas dependências de sua propriedade. Insta ressaltar que, tanto o proprietário, quanto o possuidor, podem gozar e fruir de seus bens, respeitando a função social da propriedade. Por se tratar de um direito e garantia fundamental sacramentada na Constituição, o que o proprietário faz ou deixa de fazer nos limites da propriedade, ressalvado os limites impostos pelo imperativo da função social, não incorre em desrespeito à determinação do poder público.

Desta feita, demonstrados os direitos e garantias fundamentais que nossa Constituição consagrou em seu texto, onde se resguarda a conduta daqueles que não se submeteram ao isolamento social sugerido, questiona-se: há alguma possibilidade de haver a decretação absoluta de isolamento?

Pelo que se apreende da Constituição, há apenas um cenário onde tais direitos e garantias poderiam ser violados, impondo à população a uma quarentena compulsória, aplicando, a partir de então, as sanções cabíveis. Aos moldes do previsto pelo jurista alemão Carl Schmitt, a hipótese seria o de decretação do estado de sítio pelo Poder Executivo Federal, nos termos dos artigos 137 a 139 da Constituição[6], cenário esse que, ainda assim, não permitiria uma violação ilimitada dos direitos.[7]

Isso porque, caso o estado de sítio venha a ser decretado devido à comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia da medida tomada durante o estado de defesa, somente poderão ser tomadas as medidas em conformidade com artigo 139, quais sejam:

I - obrigação de permanência em localidade determinada;

II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns;

III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;

IV - suspensão da liberdade de reunião;

V - busca e apreensão em domicílio;

VI - intervenção nas empresas de serviços públicos;

VII - requisição de bens.

Desse modo, mesmo utilizando-se do instrumento mais incisivo de defesa do estado e de suas instituições democráticas, tem-se que a violação dos direitos e garantias não é universal e ilimitada. A Constituição prevê o instrumento necessário a ser utilizado em tempos de dificuldade e ameaça à soberania do Estado, sem contudo deixar de impor limites à esta mesma atuação estatal frente aos cidadãos. Assim, por si só, resta latente o direito à imagem, honra, vida privada e intimidade, bem como a garantia de que não será obrigado, o cidadão, a cumprir determinações arbitrárias sem o respaldo legal.

No caso do Brasil, uma vez decretado o estado de defesa e calamidade pública —onde as medidas de isolamento sejam consideradas insuficientes para a prevenção da propagação do vírus Sars-Cov-2 –, nos termos do inciso I do artigo 137 da Constituição, poderia ser decretado o estado de sítio que, sim, importaria em violação (prevista) de direitos sem, contudo, olvidar-se dos limites impostos pela própria Carta Magna. Somente à luz desse crítico cenário, seria possível a narrativa aventada por alguns representantes do poder executivo dos estados e municípios, isto é, a possibilidade de encarcerar aqueles que estivessem nas ruas descumprindo flagrantemente a quarentena.


Da competência dos estados da federação

Ante o cenário trazido pela pandemia da Covid-19, os estados da federação e os municípios têm editado diversos decretos, determinando o fechamento de comércios, centros religiosos etc, com o fito de evitar a conglomeração de pessoas e, portanto, evitar uma maior propagação do vírus. A questão que se levanta é se teriam os estados e municípios competência para dirimir sobre tais assuntos. Ou ainda, teriam competência para determinar, por intermédio de atos normativos, que a população cumpra quarentena compulsória?

Antes de respondermos a tais indagações, cumpre uma análise um pouco mais aprofundada sobre o tema de competência, conforme estabelecido na Carta Maior, em seus artigos 21, incisos V e XVIII e 23, inciso XII e parágrafos 1º a 4º. O artigo 21 elenca uma série de obrigações que são de competência exclusiva da União, em destaque para os incisos V e XVIII, que dizem respeito à decretação de estado de sítio, de defesa e intervenção federal, bem como a obrigação de planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas.

O primeiro inciso diz respeito à decretação de estado de sítio que, como acima demonstrado, poderia ser decretado em caso de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida adotado durante o estado de defesa. No caso deste último, poderá se decretado caso se faça necessária a preservação da ordem pública ou paz social ameaçadas por grave e iminente estabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.[8]

Havendo a ineficácia do estado de defesa sendo decretado pela União, a medida do estado de sítio poderia ser decretada e, então, poderiam ser tolhidos direitos e garantias fundamentais, conforme determina a seção II, do capítulo I, do Título V da Constituição da República.

Assim, estando presentes os requisitos, entende-se que apenas o Poder Executivo Federal, com o respaldo devido do legislativo durante o procedimento de instauração do instrumento de defesa, poderia decretar o estado de sítio e, portanto, impedir a livre circulação de pessoas.

Frise-se que o dispositivo é claro quanto ao fato de que a instauração é de competência exclusiva da União, não cabendo a imposição de isolamento social por estados e municípios. Quanto ao inciso XVIII, estabelece que compete à União o planejamento e a promoção de defesa permanente contra as calamidades públicas, em especial secas e inundações. Embora o inciso tenha trazido um enfoque especial nestes tipos de calamidades, não exime a União da competência para adotar medidas a fim de promover a defesa contra as demais.

No caso da Covid-19, é patente a alta virulência do vírus. Algo fora dos padrões de tudo o que tenha se experimentado recentemente na ciência. Por ser calamidade pública e ante o grau alto de contágio, as medidas a serem adotadas devem emanar precipuamente da União. Nada obstante, temos o disposto no artigo 24, inciso XII da Constituição, que dispõe a competência concorrencial da União, Estados e Municípios para legislar sobre previdência social e proteção e defesa da saúde, o que poderia gerar um conflito entre normas expedidas em tempos de pandemia.

Apesar do que entendeu recentemente o Supremo Tribunal Federal[9], aduzindo que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória 926/2020 não afastariam a competência concorrente e a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, advogamos que a competência seria da União, ante a especificidade trazida no artigo 21 XVIII, que sobreleva o caráter de generalidade quanto à defesa da saúde, uma vez que nos encontramos em estado de calamidade pública.

Ainda que haja competência concorrente para legislar sobre questões de saúde, os casos de calamidade fazem da União o centro normativo privilegiado, de modo que aos estados e municípios resta seguir o princípio da subsidiariedade. Ademais, mesmos que os entes da federação pudessem editar normas protetivas, essas não poderiam tolher de pleno o direito de ir e vir do cidadão, ante guarida fornecida pela citada norma do inciso II do artigo 5º da Constituição.

Os parágrafos de 1 a 4 do artigo 23 da CF, estabeleçam alguns critérios em relação ao conflito de normas, os quais propugnam que, em caso de concorrência legislativa, a União limitar-se-á em estabelecer normas gerais, sem excluir a competência suplementar dos estados; em ausência de lei federal de normas gerais sobre o assunto, os estados poderão exercer sua competência legislativa, ao que a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual.[10]

O conflito de competência, portanto, seria relativo a normas gerais de proteção e defesa de saúde, sem abarcar a problemática do estado de calamidade, o qual prevê uma competência específica. Portanto, incabível a edição de normas dessa categoria pelo poder público munícipe ou estadual, seja por haver competência da União em caráter exclusivo, seja como porque tais medidas violam direitos e garantias que só poderiam ser suspensas quando da decretação do estado de sítio.

Sobre os autores
Guilherme de Camargo Medelo

Advogado graduado pela Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI), especializado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito (IBIJUS), pós-graduando em Direito Tributário e Constitucional pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI).

Bruno Lincoln Ramalho Paes

Advogado, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (FADUSP), mestre em Economia pela Universidade Francisco Marroquín (UFM), especialista em Filosofia do Direito pela PUC-MG, Bacharel em Direito na Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDELO, Guilherme Camargo; PAES, Bruno Lincoln Ramalho. Covid-19 e a possibilidade de prisão em flagrante e persecução penal em face dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal do Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6298, 28 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85594. Acesso em: 22 nov. 2024.

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