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Educação inclusiva como direito de todos.

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Agenda 04/10/2020 às 22:40

INCLUSÃO E VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL

O retorno aos modelos primitivos de educação especial em escolas ou classes diferenciadas, além de não encontrar amparo na ordem constitucional vigente, esbarra no princípio da proibição do retrocesso social.

Segundo Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer, a garantia da proibição de retrocesso tem por finalidade “preservar o bloco normativo – constitucional e infraconstitucional – já construído e consolidado no ordenamento jurídico, especialmente naquilo em que objetiva assegurar a fruição de direitos fundamentais, impedindo ou assegurando o controle de atos que venham a provocar a supressão ou restrição dos níveis de efetividade vigentes dos direitos fundamentais .” 19

Ao julgar caso concreto em que o Estado de São Paulo se recusava a matricular crianças em unidades de ensino infantil próximas à sua residência (ARE 639.337 AgR), o STF assentou ser vedada a redução ou a supressão do direito à educação, cuja efetivação é compulsória:

“A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS.

O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive.

A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina.

Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.” 20

Como frisaram os Ministros Edson Fachin e Celso de Mello, nos votos condutores dos mencionados precedentes do STF sobre o direito à educação, o Poder Público deve agir sempre pela efetivação dos direitos fundamentais, e não para lhe frustrar o exercício:

“O ensino inclusivo é política pública estável, desenhada, amadurecida e depurada ao longo do tempo em espaços deliberativos nacionais e internacionais dos quais o Brasil faz parte. Não bastasse isso, foi incorporado à Constituição da República como regra. E ainda, não é possível sucumbir a argumentos fatalistas que permitam uma captura da Constituição e do mundo jurídico por supostos argumentos econômicos que, em realidade, se circunscrevem ao campo retórico. Sua apresentação desacompanhada de sério e prévio levantamento a dar-lhes sustentáculo, quando cabível, não se coaduna com a nobre legitimidade atribuída para se incoar a atuação desta Corte.” (Min. Edson Fachin) 21

“[...] as normas programáticas vinculam e obrigam os seus destinatários, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. [...] Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político- -administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004). [...]” (Min. Celso de Mello) 22

Os Artigos 34 a 39 da Convenção de Nova York instituíram o Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da Organização das Nações Unidas, a quem compete receber e analisar relatórios periódicos dos Estados-partes sobre a sua efetiva implementação. Em 2015, o Comitê apresentou suas Observações finais sobre o relatório inicial do Brasil , nas quais denunciou a necessidade de adequação das práticas nacionais à Convenção:

“7. O Comitê recomenda que o Estado Parte desenvolva uma estratégia voltada para a deficiência para implementar o modelo de direitos humanos de deficiência. O Comitê recomenda ainda que, em coordenação com as organizações de pessoas com deficiências, o Estado Parte inicie uma revisão sistemática da legislação, políticas e programas existentes e, se necessário, ajuste-os de acordo com a Convenção. Isto deve incluir uma revisão de toda a legislação, políticas ou programas em que os direitos das pessoas com deficiência sejam limitados ou negados com base na deficiência, ou em que os serviços e benefícios para as pessoas com deficiência levem à sua segregação ou exclusão.” 23

No Comentário Geral nº 4 (2016) 24, o Comitê repudiou políticas diferenciadas que, a pretexto de facilitar o acesso ao ensino, impliquem em perpetuação da exclusão:

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“41. [...] (a) Não discriminação em todos os aspectos da educação, abrangendo todos os motivos de discriminação internacionalmente proibidos. Os Estados partes devem assegurar a não exclusão educacional de pessoas com deficiência e eliminar as desvantagens estruturais para alcançar participação e igualdade efetivas para todas as pessoas com deficiência. Também devem urgentemente tomar medidas para remover todas as formas de discriminação, sejam legais, administrativas e de outros tipos, que impeçam o direito de acesso à educação inclusiva. A adoção de medidas de ação afirmativa não constitui uma violação do direito à não discriminação em relação à educação, desde que tais medidas não levem à manutenção de padrões desiguais ou separados para diferentes grupos.” 25

“70. O Comitê insta os Estados partes a transferir recursos de ambientes segregados para ambientes inclusivos. Os Estados Partes devem desenvolver um modelo de financiamento que aloque recursos e incentivos para ambientes educacionais inclusivos, a fim de fornecer o apoio necessário às pessoas com deficiência. A determinação da abordagem mais adequada ao financiamento será, em grande medida, determinada pelo ambiente educacional existente e pelas necessidades dos possíveis alunos com deficiência afetados.”26

Atualmente, a legislação brasileira favorece a inclusão nas escolas públicas regulares, as quais recebem em dobro a verba correspondente à pessoa com deficiência, pelo chamado sistema da “dupla matrícula” (art. 9º-A do Decreto nº 6.253/2007). De modo perverso, o recente Decreto institucionaliza o desvio desses recursos públicos para destinação a instituições privadas que fomentam a exclusão educacional, em “escolas especializadas” e “classes especializadas” que substituem as escolas regulares. Passou-se a ter uma política oficial de incentivo e subsídio financeiro estatal à exclusão escolar. Mutatis mutandis, vale o ensinamento de Meire Cavalcante:

“Desta forma, o novo decreto permite que escolas especiais ofertem a Educação, ou seja, que sejam espaços segregados de escolarização regulamentados por lei. Isso significa que elas poderão substituir a escolarização em classes comuns de escolas regulares, fato já superado no nosso país. Além disso, poderão receber duplamente pela matrícula do aluno na escola especial e no AEE. A força motriz da inclusão (a dupla matrícula no Fundeb) tornou-se, agora, a força motriz da exclusão.” 27

A inaceitável reinstituição da educação especial terceirizada, em prejuízo da ampliação do investimento no ensino regular inclusivo, defende interesses opostos àqueles das pessoas com deficiência, pois alivia as escolas particulares e os governantes que nunca assumiram suas responsabilidades, além de beneficiar instituições privadas que adotam um modelo educacional retrógrado28.

Cabe ao Estado proporcionar meios para a escolarização inclusiva dos alunos com deficiência, que é obrigatória e não somente “preferencial”. Não pode, portanto,e favorecer um modelo educacional constitucionalmente proibido, ainda que a título de “decisão” ou “alternativa”. É o que enfatizou o Comentário Geral nº 6 (2018) 29 ao tratar da vedação de sistemas paralelos de ensino:

“18. Para que o artigo 24 (2) (a) seja implementado, a exclusão de pessoas com deficiência do sistema geral de ensino deve ser proibida, inclusive por meio de quaisquer disposições legislativas ou regulamentares que limitem sua inclusão com base em sua deficiência ou no grau de sua deficiência, tal como o condicionamento da inclusão ao tamanho do potencial do indivíduo ou a alegação de um ônus desproporcional e indevido para evitar a obrigação de fornecer adaptação razoável.30 [...]

29. As medidas específicas adotadas pelos Estados partes, de acordo com o artigo 5 (4) da Convenção, devem ser consistentes com todos os seus princípios e disposições. Em particular, não devem resultar na perpetuação do isolamento, da segregação, dos estereótipos, da estigmatização ou da discriminação das pessoas com deficiência. Assim, os Estados partes devem consultar de perto e envolver ativamente as organizações representativas das pessoas com deficiência quando adotarem medidas específicas. 31

40. O Artigo 4 (2) exige que os Estados Partes tomem medidas, no limite máximo dos recursos disponíveis para direitos econômicos, sociais e culturais e, quando necessário, dentro de uma estrutura de cooperação internacional, com vistas a atingir progressivamente a plena realização desses direitos. A realização progressiva significa que os Estados-partes têm a obrigação específica e contínua de agir da forma mais rápida e eficaz possível para a plena realização do artigo 24. Isso não é compatível com a manutenção de dois sistemas de educação: um sistema de ensino regular e um sistema de ensino especial/segregado. A realização progressiva deve ser entendida em conjunto com o objetivo geral da Convenção de estabelecer obrigações claras para os Estados partes em relação à plena realização dos direitos em questão. Da mesma forma, os Estados partes são encorajados a redefinir as alocações orçamentárias para a educação, inclusive transferindo parte de seus orçamentos para o desenvolvimento da educação inclusiva. [...]” 32

À vista de tamanho retrocesso, a professora Maria Teresa Eglér Mantoan, da Unicamp, lamenta que “o Brasil, mais uma vez, seja desonrado por descumprir e ignorar seus compromissos internacionais, visto que o país é signatário de documentos que pugnam pela inclusão, incondicionalmente”. 33


INCLUSÃO COMO DIREITO DE TODOS

Sem dúvida, a educação inclusiva constitui um direito constitucional fundamental, incondicional, indisponível e inalienável de cada aluno.

Esse direito merece proteção ainda maior quando se trata de criança ou adolescente com deficiência, por sua posição de dupla vulnerabilidade: “[o] seu filho com deficiência tem tanto direito de acesso à escola comum como qualquer outra criança sem deficiência. Esse direito, em nível de ensino fundamental, principalmente, é INDISPONÍVEL . Ou seja, ninguém pode abrir mão, nem ele e nem você por ele. É um direito humano , fundamental e ele não pode ser tolhido disso.” 34

Porém, o direito à inclusão não é apenas dos alunos com deficiência, mas de todas as pessoas que podem ser privadas de seu convívio, ou seja, da sociedade como um todo: “[...] a educação inclusiva é boa, possível, necessária e, mais que isso, um direito de TODOS [...] A escola inclusiva, que é uma escola de TODOS, ensina não apenas conhecimento técnico-científico, mas valores, princípios e atitudes. Ensina a viver junto, a conviver com um ambiente de tolerância e harmonia em meio à diversidade . [...]o ambiente de segregação não é bom para NINGUÉM! Nem para quem tem deficiência, nem para quem não tem.” 35

Hodiernamente, as escolas destinadas às pessoas com deficiência não podem mais ser “escolas especializadas” ou “classes especializadas”, específicas, exclusivas e substitutivas do ensino regular; são, agora, as mesmas escolas e classes destinadas às pessoas sem deficiência. No atual panorama constitucional, as escolas são de todos!

Sobre o autor
Paulo Gustavo Sampaio Andrade

Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Editor de conteúdo do Jus.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Paulo Gustavo Sampaio. Educação inclusiva como direito de todos.: Inconstitucionalidade do Decreto nº 10.502/2020 frente à Convenção Internacional de Nova York sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6304, 4 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85803. Acesso em: 22 dez. 2024.

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