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Educação inclusiva como direito de todos.

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Agenda 04/10/2020 às 22:40

INCLUSÃO COMO DEVER DE TODOS

Nos termos do art. 205. da Constituição Federal, a educação constitui um dever do Estado, da família e da sociedade:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Ou seja, ao direito subjetivo da pessoa com deficiência corresponde um dever a ser exigido das autoridades e dos particulares:

“Educação inclusiva é política de Estado, compromisso reiterado quando da ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, não cabendo mudança de conceito e privação de direitos que podem gerar consequências gravíssimas no que diz respeito à vida independente e autonomia, inclusive. Educação é direito indisponível e inalienável; a criança deve estudar, os pais e o estado assumem este compromisso por obrigação de fazer . Não cabe decisão contrária ao acesso e permanência na escola de todos e de cada um, sob risco de se violar gravemente a lei.” 36

Assim, a matrícula na rede regular de ensino não pode depender de uma “escolha” da família ou mesmo do próprio aluno, por se tratar de uma obrigação incondicional prevista nos arts. 4º e 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), que não permitem exceções:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 55. Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino.

A doutrina frisa que, por decorrer de um interesse público e social, esse dever é oponível a todos, inclusive aos próprios familiares:

“É sabido que privar uma pessoa em idade escolar (4 a 17 anos) do acesso à escola comum se configura abandono intelectual por parte da família e grave afronta ao marco legal do país, se praticado pelo poder público. [...] Nesse caso, configura uma discriminação por motivo de deficiência, uma vez que a decisão de não matricular na escola comum impede o reconhecimento, o gozo e o exercício de um direito humano fundamental , em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.” 37

Portanto, a inclusão escolar é um direito de todos, indistintamente, e da mesma forma é obrigação de todos lhe dar máxima efetividade.


INCLUSÃO COMO DEVER DO ESTADO

A Convenção de Nova York dispõe expressamente que o Estado Parte tem a obrigação de dar efetividade às suas normas, que proíbem qualquer discriminação, inclusive nas esferas administrativa e judicial:

Artigo 4 – Obrigações gerais

1. Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência. Para tanto, os Estados Partes se comprometem a:

a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção;

b) Adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência;

c) Levar em conta, em todos os programas e políticas, a proteção e a promoção dos direitos humanos das pessoas com deficiência;

d) Abster-se de participar em qualquer ato ou prática incompatível com a presente Convenção e assegurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com a presente Convenção; [...]”

O Comentário Geral nº 4 (2016) 38 frisa que o dever de eliminar obstáculos à inclusão deve ser cumprido imediatamente:

“41. A realização progressiva não prejudica as obrigações imediatamente aplicáveis. Como o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais declarou em seu Comentário Geral nº 3 (1990) sobre a natureza das obrigações dos Estados Partes, os Estados partes têm uma obrigação principal mínima para assegurar a satisfação de níveis mínimos essenciais de cada aspecto do direito à educação. Portanto, os Estados partes devem implementar os seguintes direitos fundamentais com efeito imediato:

(a) Não discriminação em todos os aspectos da educação, abrangendo todos os motivos de discriminação internacionalmente proibidos. Os Estados partes devem assegurar a não exclusão educacional de pessoas com deficiência e eliminar as desvantagens estruturais para alcançar participação e igualdade efetivas para todas as pessoas com deficiência. Também devem urgentemente tomar medidas para remover todas as formas de discriminação, sejam legais, administrativas e de outros tipos, que impeçam o direito de acesso à educação inclusiva. A adoção de medidas de ação afirmativa não constitui uma violação do direito à não discriminação em relação à educação, desde que tais medidas não levem à manutenção de padrões desiguais ou separados para diferentes grupos. [...]” 39

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Assim, todas as normas, costumes e práticas incompatíveis, que possam implicar em tratamento discriminatório, ainda que não revogadas, devem ser interpretadas conforme a Constituição Federal:

“19. Para que o artigo 4 (1) (b) da Convenção seja implementado, os Estados partes devem tomar todas as medidas apropriadas, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas existentes que constituam discriminação contra pessoas com deficiência e que violem o artigo 24. Sempre que necessário, as leis, regulamentos, costumes e práticas discriminatórias devem ser revogados ou alterados de forma sistemática e tempestiva.”40

Com maior razão, não é admissível que o Poder Público estabeleça exceções à inclusão educacional, porque lhe compete assegurar igualdade de tratamento a todos, como diz o Comentário Geral nº 6 (2018) 41:

“12. A igualdade e a não discriminação são tanto princípios quanto direitos. A Convenção refere-se a ambos, no artigo 3 como princípios e no artigo 5 como direitos. Também são também uma ferramenta interpretativa para todos os outros princípios e direitos consagrados na Convenção. Os princípios/direitos da igualdade e da não discriminação são uma pedra angular da proteção internacional garantida pela Convenção. Promover a igualdade e combater a discriminação são obrigações transversais de realização imediata. Não estão sujeitas a cumprimento progressivo. [...]”42

No já citado ADI 5357, o STF assentou que as políticas públicas devem assegurar medidas para efetivar concretamente o acesso igualitário à educação:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. LEI 13.146/2015. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. ENSINO INCLUSIVO. CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INDEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 13.146/2015 (arts. 28, § 1º e 30, caput, da Lei nº 13.146/2015). [...]

4. [...] Assim, a igualdade não se esgota com a previsão normativa de acesso igualitário a bens jurídicos, mas engloba também a previsão normativa de medidas que efetivamente possibilitem tal acesso e sua efetivação concreta.”43

O Ministro Edson Fachin alertou para o risco de oficializar a discriminação caso fossem criadas exceções ao modelo inclusivo:

“Não se pode, assim, pretender entravar a normatividade constitucional sobre o tema com base em leitura dos direitos fundamentais que os convolem em sua negação. [...] Perceba-se: corre-se o risco de se criar às instituições particulares de ensino odioso privilégio do qual não se podem furtar os demais agentes econômicos. Privilégio odioso porque oficializa a discriminação.” 44

No mesmo feito, o Ministro Luiz Fux também ressaltou que a Constituição Federal deve permear toda interpretação normativa:

“Tecnicamente, Senhor Presidente, eu diria que, no momento em que hoje se encontra o Direito Constitucional brasileiro, e até se afirma que a Constituição Federal ela é invasiva, porque invade todos os ramos da ciência jurídica, e isso na verdade é uma característica do neoconstitucionalismo, não se pode efetivamente empreender uma leitura da legislação infraconstitucional sem passar pelo tecido normativo da Constituição.”45

A Ministra Rosa Weber transcreveu ainda o magistério da Procuradora da República Eugênia Gonzaga 46, verbis:

“Os dirigentes de ensino, teimando em dizer que querem fazer uma ‘inclusão responsável’, continuam recusando matrículas e não promovendo as transformações necessárias. Responsável é fazer o que precisa ser feito para receber os alunos com deficiência.”47

Em caso concreto também já mencionado (ARE 639.337 AgR), o STF afirmou que a efetivação do direito subjetivo à educação não pode ser restringida pela discricionariedade dos governantes:

“POLÍTICAS PÚBLICAS, OMISSÃO ESTATAL INJUSTIFICÁVEL E INTERVENÇÃO CONCRETIZADORA DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL.

A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível [...]

A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. [...]

DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL.

O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g..

A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. [...]

A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes.” 48

Em seu voto condutor, o Ministro Celso de Mello sublinhou:

“O fato que tenho por relevante consiste no reconhecimento de que a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconseqüente. [...]

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’ – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.”49

Assim, em face de ato estatal que contrarie o desígnio constitucional, compete ao Poder Judiciário assegurar a sua plena efetividade (art. 5º, XXV, da Constituição).


CONCLUSÃO

Em resumo, as normas constitucionais que asseguram a todos o direito fundamental a um sistema educacional inclusivo, que é obrigatório, incondicional e irrenunciável, estão albergadas em cláusulas pétreas e devem ser imediatamente aplicáveis no plano interno e interpretadas de modo a lhes conceder máxima efetividade.

Todas as normas jurídicas devem respeito à Convenção de Nova York. Qualquer regulamento posterior que impuser restrições ao seu alcance incorre em flagrante inconstitucionalidade, a ser declarada pelo Poder Judiciário, mediante controle concentrado ou difuso.

Sobre o autor
Paulo Gustavo Sampaio Andrade

Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Editor de conteúdo do Jus.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Paulo Gustavo Sampaio. Educação inclusiva como direito de todos.: Inconstitucionalidade do Decreto nº 10.502/2020 frente à Convenção Internacional de Nova York sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6304, 4 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85803. Acesso em: 22 nov. 2024.

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