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Crime de maus-tratos a animais qualificado (Lei 14.064/20) – primeiros apontamentos

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3-AS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 14.064/20

A Lei 14.064/20 incluiu um § 1º. – A, no artigo 32 da Lei 9.605/98, criando com isso uma figura qualificada de maus – tratos a animais. A pena prevista para o artigo 32, “caput” e para a conduta equiparada de seu § 1º., é de “detenção, de 3 (três) meses a 1(um) ano, e multa”. Já para os casos agora previstos no novel § 1º. – A, a reprimenda é de “reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda”.

A conduta a ser perpetrada pelo infrator contra os animais não se altera, já que o §1º. – A faz referência àquelas descritas no “caput” do dispositivo em destaque. O que muda é a espécie de animal objeto das referidas condutas já anteriormente incriminadas e a pena maior agora prevista.

A Lei 14.064/20 cria uma proteção diferenciada para “cães e gatos”, em detrimento de todos os demais animais. Tanto a pena mais gravosa como a proibição de guarda são aplicáveis somente quando forem maltratados “cães ou gatos”. Para outros animais nada mudou.

Essa escolha arbitrária de duas espécies parece ser uma continuação de certa “mania” (que já tem foros patológicos) do legislador brasileiro em atomizar, distinguir e inaugurar tratamentos diversos para situações para as quais caberia uma abordagem universalizante. O tribalismo e o identitarismo divisores, depois de contaminarem o pensamento com relação aos humanos, agora chegam aos animais. [21] Esse tipo de “lógica ilógica” tem o condão de fazer com que mais e mais leis tenham de ser editadas ao sabor dos grupos que se pretenda defender ou satisfazer em dado momento, devido a fatores circunstanciais políticos, econômicos, sociais, midiáticos etc. No caso específico, daqui a algum tempo, poderá ser criado, então, um novo parágrafo para tratar de cavalos, outro para girafas e rinocerontes, mais um para lacraias, outro para onças e por aí vai “ad infinitum”.

Entretanto, o equívoco mais grave sob o prisma jurídico dessa eleição de certos animais para um tratamento diferenciado não é o tribalismo ou identitarismo animal, mas algo que, juridicamente, deriva dessas posturas “intelectuais”. O pior erro se dá por infração ao Princípio Constitucional da Igualdade ou da Isonomia. Não há motivo plausível para um tratamento diferenciado para os atos de maus – tratos, envolvendo cães e gatos, deixando os restantes animais numa vala comum de indiferença.

A suposta alegação que, segundo consta, justificaria esse tratamento diversificado, seria a de que os cães e os gatos são mais comumente vítimas desses atos de barbárie. Ora, essa tese não se sustenta de forma alguma, pois conforme aduz Argachoff, “basta uma rápida busca através da internet e serão encontrados diversos casos de maus – tratos e mutilações contra cavalos, aves ou diversos outros animais silvestres, domésticos ou domesticados”. [22]   

Para que um tratamento diferenciado seja dado a uma categoria qualquer, tendo em vista até mesmo a concretização do Princípio da Igualdade por meio do que se convencionou chamar de “discriminação positiva”, são necessários fundamentos sustentáveis a justificarem tal diversificação.

Conforme escorreito escólio de Mello:

As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição (grifos no original). [23]

Por mais que se procure algum fundamento para tratar diversamente cães e gatos, os únicos motivos são de índole discriminatória injustificável, marcados por subjetivismos e sentimentalismos. A proteção conferida a um ou outro animal não se pode basear no fato de que consideramos alguns mais bonitos, “fofos”, amigáveis. Essa proteção contra maus – tratos está ligada, não a qualquer subjetivismo ou sentimentalismo, mas ao fato concreto e indiscutível de que os animais, universalmente falando, são passíveis de sofrimento e dor, razão pela qual merecem a consideração de não serem tratados como coisas inanimadas ou mecanismos meramente reativos, conforme já os considerou Descartes e, ainda mais radicalmente, La Mettrie, que expandiu tal conceito mirabolante para abranger também os homens. [24]

O exemplo exposto por Argachoff é extremamente oportuno e esclarecedor:

A título de exemplo tratemos de uma situação hipotética de dosimetria de pena, onde um cachorro e um cavalo sofram mutilação. O autor do crime contra o cão estará sujeito, devido à alteração legislativa, a pena variando entre dois a cinco anos de reclusão, multa e perda da guarda do animal, se a tiver. Já com relação ao agressor do cavalo a legislação é bem mais benevolente, sujeitando-o a uma pena de detenção de três meses a um ano e multa. [25]

E o autor em destaque, com absoluta agudez, ainda arrola outras consequências de natureza processual penal mais gravosas para o agressor de cães e gatos, tais como o afastamento das benesses da Lei 9.099/95, a possibilidade de Prisão em Flagrante e a impossibilidade de arbitramento de fiança criminal pelo Delegado de Polícia, sendo fato que nenhuma dessas consequências mais gravosas se aplica ao violentador de outros animais que não cães e gatos (a infração do artigo 32, “caput”, da Lei 9.605/98 é de menor potencial ofensivo; afiançável pelo Delegado de Polícia e sequer, em regra, se lavrará auto de prisão em flagrante e sim mero Termo Circunstanciado, com liberação do infrator, independentemente de fiança). [26] Também com idêntica perspicácia Leitão Júnior faz menção a essas limitações impostas ao infrator do novo § 1º. –A, acrescentando oportunamente a vedação do Acordo de Não Persecução Penal, atualmente regulado no artigo 28 – A, CPP com redação dada pela Lei 13.964/19 (Lei Anticrime), isso tendo em vista que a pena máxima de 5 anos ora prevista desborda a pena de 4 anos exigida como máxima para que se faça jus ao acordo. [27]

Nem se cogite o emprego de analogia para equiparar as penalidades, ainda que em casos mais gravosos que envolvam animais diversos de cães e gatos. A redação do § 1º. – A, em estudo é taxativa (“numerus clausus”), aliás, como é de boa técnica na redação de normas de caráter penal. Qualquer intento de analogia seria “in  mallam partem” e, portanto, absolutamente vedada para a seara criminal.

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Note-se que a pena mais gravosa para os maus – tratos de cães e gatos somente é aplicável para as condutas previstas no “caput” do artigo 32 da Lei Ambiental. Isso é expressa e induvidosamente estabelecido na redação do § 1º. – A. Portanto, não são alcançadas as situações de imposição de experiência dolorosas, ainda que a cães ou gatos, quando existirem recursos alternativos, conforme consta da conduta equiparada prevista no § 1º., do artigo 32 da Lei 9.605/98. Nesse caso, a pena aplicada é a do “caput”, e não a nova pena do § 1º.-A. Aqui também não se vê razão plausível para discriminação.

Mesmo o fato de que tal conduta, eventualmente, se dê para fins didáticos ou científicos, não justifica, bioeticamente e, consequentemente, no campo do Biodireito, tratamento diversificado. É irrelevante se a crueldade perpetrada contra um cão ou um gato se dá em uma experiência ou em outras circunstâncias; tanto é fato que a conduta sempre foi equiparada ao “caput”. Dessa forma, se o § 1º. – A, prevê nova pena para os casos envolvendo cães ou gatos para o “caput”, isso deveria valer normalmente para o § 1º., até por uma questão de coerência com o histórico legislativo. Infelizmente, não foi assim, pois a redação do § 1º. – A é restritiva e indica sua aplicação somente ao “caput”, de modo que o Princípio da Legalidade exclui a possibilidade de aplicação da pena mais gravosa aos casos abrangidos pelo § 1º. Portanto, além da impropriedade de restrição da reprimenda mais grave apenas para os “eleitos” cães e gatos, exsurge mais uma incoerência, que é a subproteção, mesmo de cães e gatos, no que se refere a experiências dolorosas desnecessárias.

Doutra banda, não se pretende também apregoar aqui o reconhecimento da inconstitucionalidade para invalidar a pena mais gravosa erigida pela Lei 14.064/20. Na verdade, havia uma inconstitucionalidade por insuficiência protetiva quanto à pena prevista no “caput” do dispositivo em comento, a qual foi parcialmente consertada com a previsão de pena mais adequada no § 1º. – A pela Lei 14.064/20. A proposta é de “lege ferenda” para que se possa pensar em ampliar a pena mais gravosa e a proibição de guarda para todos os casos, realmente reparando de vez de forma completa a insuficiência protetiva. Declarar a inconstitucionalidade do § 1º.-A para retornar ao “status quo ante”, seria equivalente a repristinar uma inconstitucionalidade por insuficiência protetiva que agora está, ao menos em parte, solvida. Tal opção seria um desatino. Por isso, a única proposta coerente é a de ampliação do tratamento dado pela Lei 14.064/20 para cães e gatos a todos os demais animais, pela via legislativa, já que a analogia “in mallam partem” é inviável, resolvendo de uma vez por todas a questão da insuficiência protetiva e ajustando a legislação de acordo com o Princípio da Igualdade ou Isonomia.

Segundo consta, a Presidência da República teria ficado reticente em sancionar a legislação, considerando que a nova pena prevista seria muito alta. [28] Ao final, a nosso ver acertadamente, a legislação foi sancionada. Ocorre, porém, que certa razão assistia à Presidência da República em suas reservas. Comparando a reprimenda de reclusão, de dois a cinco anos prevista para a violência contra animais com, por exemplo, a pena para a lesão corporal de natureza grave praticada contra humanos, se verifica que uma lesão leve, ainda que cruel, perpetrada contra um animal, terá penalidade maior que a lesão grave em um humano, cujo preceito secundário prevê pena de reclusão, de um a cinco anos somente. Isso sem falar nas penas para lesões leves em humanos que não passam do máximo de um ano de detenção e, mesmo no caso de violência doméstica, não ultrapassam o máximo abstrato de três anos (vide artigo 129, “caput”, § 1º., I a IV e § 9º., CP). E a coisa pode ainda piorar.

Há crimes contra a vida de seres humanos que são apenados de forma muito mais branda do que a violência contra cães e gatos. Os casos de autoaborto e aborto consentido, previstos no artigo 124, CP têm a ridícula pena de detenção, de um a três anos. Mesmo o aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante (artigo 126, CP), apresenta pena menor que a do artigo 32, § 1º. – A da Lei Ambiental (reclusão, de um a quatro anos). O Infanticídio (artigo 123, CP) tem pena mínima igual à crueldade contra animais (2 anos) e pena máxima apenas um ano maior (seis anos). Tudo isso sem levar em conta toda a movimentação existente em nossa sociedade para a descriminalização do aborto a nos lembrar do “amor” dos nazistas, inclusive do próprio Hitler, aos animais, enquanto liberava abortos e toda espécie de genocídio e crueldades contra humanos.

Essas lembranças deveriam chocar todos aqueles que se sentem gravemente ofendidos e estarrecidos com a destruição de um feto de tartaruga marinha, mas não alimentam qualquer empatia por um embrião, feto ou até mesmo um bebê humano, já em vias de nascimento ou mesmo nascido, defendendo a legitimidade absurda, até mesmo do eufemisticamente chamado “aborto tardio”, que, na verdade, não passa de homicídio cruento. [29] E ainda têm a capacidade incrível de atribuir o epíteto de “nazista” e “genocida” a outros, o que somente se pode explicar por uma esquizofrênica briga em frente ao espelho, naquilo que a psicologia chamaria de “projeção”. [30]

Isso é um resultado da falta da mais mínima noção ou mesmo pretensão de um exame das origens das ideias defendidas, conformando-se o indivíduo, normalmente, com sua mera simpatia por determinada convicção, substituindo totalmente a racionalidade pelo sentimentalismo raso, sem jamais perscrutar para saber de onde aquilo surgiu, quais suas conexões com ideologias, filosofias, sistemas éticos, políticos etc. É a ignorância gerando seus frutos malsãos.  

Mas, a cereja do bolo da desproporção ainda está por vir. O artigo 32, § 1º. – A da Lei 9.605/98, com nova redação dada pela Lei 14.064/20 coíbe, mediante pena de reclusão, de dois a cinco anos, multa e proibição de guarda, os “maus – tratos contra animais”, mais especificamente ainda, contra cães e gatos. Por seu turno, o artigo 136, “caput”, CP prevê a punição dos “maus – tratos contra seres humanos”, sendo a pena do delito simples somente de “detenção, de dois meses a um ano, ou multa” (note-se que há multa alternativa, ou seja, a pena pode ser somente pecuniária de acordo com a individualização judicial). Ainda que resulte dos maus – tratos a humanos lesões graves ou mesmo gravíssimas, a pena prevista no artigo 136, § 1º., é só de “reclusão, de um a quatro anos”, sem nem mesmo previsão de multa!

Assim sendo, a Presidência da República deu mostras de sensibilidade para essa realidade incoerente da nossa legislação, a qual retrata uma cultura decadente na qual se opera uma desumanização silenciosa sob o manto forjado de supostas sensibilizações humanitárias, ecológicas etc. Mas, então por que se afirma neste texto que a opção pela sanção foi correta no final das contas? É simples. Porque, na verdade, não é a pena prevista para os maus – tratos contra animais que é, em si e por si, alta demais. Não, ela é adequada. O problema se apresenta na sua relação com outros tipos penais, tais como os elencados em exemplos acima. Então, não é a crueldade contra animais que tem pena muito alta com a Lei 14.064/20 e sim muitos crimes contra a pessoa humana que apresentam penas por demais irrisórias comparativamente falando. Se há uma revisão a ser feita, é neste sentido. Os animais merecem consideração como seres sencientes que induvidosamente são. Mas, os humanos merecem ainda maior consideração não somente como seres sencientes que também são, mas como seres “espirituais”, quer se interprete a espiritualidade em termos religiosos, metafísicos ou mesmo estritamente científicos.

Considerando que a Lei 14.064/20 cria uma qualificadora para os casos de maus – tratos de cães e gatos, propiciando um aumento considerável da pena “in abstracto”, somente poderá ter aplicação a partir de seu vigor, sem possibilidade de retroatividade.  

O legislador, dentre as reprimendas previstas para a crueldade contra animais, manteve, para os casos do § 1º. – A, envolvendo cães ou gatos, a pena de multa. Certamente perdeu uma grande oportunidade de dar um destino mais adequado aos valores recolhidos com pagamentos dessas multas, destinando-os a um fundo especial para auxiliar programas e entidades protetoras. Tendo em vista a falta de uma previsão expressa, a pena de multa se destinará à vala comum do FUNPEN (Fundo Penitenciário Nacional), nos termos do artigo 49, CP.

Inovação prevista no novo §1º. – A é a “proibição da guarda” de cães e gatos. Novamente, infelizmente, tal penalidade se reduz aos cães e gatos, não havendo previsão similar no que tange aos demais animais. Por força do Princípio da Legalidade, enquanto limitador do poder punitivo estatal, não é viável a aplicação dessa sanção em casos de maus – tratos infligidos a animais que não sejam cães ou gatos. Cabem aqui as mesmas críticas erigidas quanto à limitação da pena privativa de liberdade somente a duas espécies “privilegiadas” de animais.

Quanto à penalidade de “proibição da guarda” de cães e gatos, uma dúvida pode surgir. Seria tal proibição referente somente àquele cão ou gato maltratado pelo infrator especificamente ou essa proibição seria abrangente da guarda de qualquer outro cão ou gato. Poderão surgir na doutrina e jurisprudência incipientes sobre o tema ambas as interpretações expostas. Contudo, entende-se que não tem sentido que tal proibição venha a ser específica para um determinado animal. O indivíduo capaz de infligir maus – tratos ou agir cruelmente contra certo animal, quase que invariavelmente atuará da mesma forma com outro espécime, de forma que autorizar tal pessoa a ter a guarda de outro cão ou gato é o mesmo que tão somente alterar a vítima, mantendo o algoz. 

E não se confunda essa situação com medidas protetivas conferidas para a preservação de seres humanos (v.g. Lei 11.340/06 e artigo 319, CPP). Acontece que os seres humanos são extremamente individualizáveis, enquanto que os animais se manifestam de forma determinada pela espécie e pela sua condição natural. Um indivíduo que age de forma agressiva com uma pessoa determinada, não necessariamente atuará da mesma maneira com outra, embora isso não seja descartável. Já um violentador de animais certamente não muda sua conduta de um espécime para outro.

Além disso, as pessoas potencialmente vitimizáveis por um agressor são dotadas de poder de escolha em dele se aproximar e conviver, enquanto que os animais não têm essa opção existencial. Afora essa fundamentação com fulcro na razoabilidade, também a própria interpretação gramatical da lei está a indicar uma proibição genérica e não particular. A lei usa a expressão “proibição da guarda” e não “perda da guarda” ou “retirada da guarda”. A expressão usada na lei é claramente abrangente e genérica. As outras duas, que poderiam ter sido usadas pelo legislador e não o foram, teriam um sentido mais restritivo, implicando, inclusive na existência de guarda anterior a ser “perdida” ou “retirada”. Mas a lei se refere a “proibição”.

Essa proibição da guarda por ordem judicial deverá ser cumprida pelo infrator condenado e se descumprida configurará crime contra a administração da justiça de “Desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito”, nos termos do artigo 359, CP.

É de ressaltar que a proibição de guarda deveria ser também prevista como uma cautelar urgente e preventiva, para além de sua aplicação definitiva quando da condenação transitada em julgado, conforme consta do § 1º. – A. Fato é que tal cautelar não é prevista expressamente no Código de Processo Penal (artigo 319), nem na própria Lei Ambiental (Lei 9.605/98). Quanto ao animal (e neste caso não somente cães e gatos) especificamente vitimizado, é certamente suficiente a medida cautelar geral de apreensão e encaminhamento a locais adequados, conforme artigo 25, §§ 1º. e 2º., da Lei 9.605/98. Além disso, há a possibilidade de aplicação da medida administrativa de apreensão de animais, conforme estabelecido no artigo 72, IV do mesmo diploma ambiental.

A lacuna que fica - e que sempre esteve presente - é aquela com relação à guarda de outros animais, o que leva ao reforço do entendimento de que a ordem de proibição de guarda agora prevista é geral e não particular, conforme anteriormente exposto. Acontece que tal ordem restritiva de direitos somente se dará ao fim do processo e será cumprida com o trânsito em julgado. Seria salutar que tal interdição já pudesse ser aplicada em certos casos concretos que a justificassem, de imediato, como providência cautelar, o que, infelizmente, não é legalmente previsto. A única saída neste caso seria que o magistrado apelasse para o chamado “poder geral de cautela”, o qual, porém, é bastante discutível quanto à sua aplicação na seara processual penal, de modo que a previsão expressa dessa cautelar teria sido muito bem vinda.

Outra questão importante sobre a “proibição da guarda” é que a lei não prevê um tempo mínimo e máximo para tal proibição. Não é possível entender que essa restrição de direito seja aplicável de forma indefinida no tempo, pois isso equivaleria à previsão de pena de caráter perpétuo, o que é vedado pela Constituição Federal (inteligência do artigo 5º., XLVII, “b”, CF).

No silêncio da lei, algumas soluções podem ser propostas:

a) A interdição teria a mesma duração do tempo de pena privativa de liberdade aplicada no caso concreto, por analogia às penas restritivas de direito quando substitutivas das privativas de liberdade (artigo 44, CP);

b) A interdição teria a duração do tempo da pena privativa de liberdade aplicada “in concreto”, acrescido, após sua extinção, de mais 2  (dois) anos, tendo em vista a necessidade de o condenado requerer sua “reabilitação” , nos termos dos artigos 93 a 95, CP.

c) O prazo seria variável, aplicando-se por analogia o sistema de “Medidas de Segurança”, de modo que ao juiz sentenciante caberia estabelecer um prazo mínimo de interdição entre 1 (um) e 3 (três) anos, submetendo o interessado a um exame multidisciplinar (psiquiátrico, psicológico e social) para verificar se tem condições de ter novamente a guarda de animais. Em caso positivo, seria liberado. Em caso negativo, a interdição seria renovada por mais 1 (um) a 3 (três) anos e assim sucessivamente, nos termos do artigo 97, § 1º., CP.

De todas essas hipóteses, a mais plausível, segundo se entende seria a do item “b”, ou seja, usando o critério da reabilitação.

A hipótese menos aceitável seria a do item “c”, pois que, desde a reforma da Parte Geral do Código Penal, em 1984 (Lei 7.209/84), foi extinto o sistema “duplo binário”, adotando-se o sistema chamado “vicariante”, não sendo possível a concomitância, sucessão ou a confusão entre pena e medida de segurança (inteligência do artigo 96, Parágrafo Único, CP). [31]

Contudo, tendo em vista as características dos maus – tratos a animais, parece que o ideal seria ter a legislação inovado para estabelecer um prazo mínimo para a “proibição da guarda”, devendo o implicado, se tivesse interesse, requerer ao juízo uma avaliação, após tal prazo, a qual seria multidisciplinar (psiquiátrica, psicológica e social). Não havendo deferimento, a interdição seria renovada por igual período, dependendo sempre de pedido de reavaliação para sua extinção. Esse procedimento, se estabelecido na lei ambiental, seria muito semelhante ao mecanismo da medida de segurança, mas com ela não se confundiria. Não obstante, essa previsão inexiste, sendo, portanto, inaplicável, porquanto no cenário jurídico disponível se confundiria com uma medida de segurança aplicada em duplo – binário, o que é hoje inviável.

Por fim, cabe observar que o aumento de pena da ordem de um sexto a um terço, conforme previsto no artigo 32, § 2º., da Lei Ambiental, quando ocorre a morte do animal, é aplicável não somente aos casos do artigo 32, “caput” da Lei 9.605/98, mas também aos casos abrangidos pelo novo § 1º. – A do artigo 32 do mesmo diploma. Não há razão alguma para limitação desse aumento apenas à figura simples, mesmo porque o § 2º., por obviedade, se acha abaixo do § 1º. – A e, conforme regra de técnica legislativa, os parágrafos se aplicam naturalmente a tudo que está acima deles na disposição topográfica da lei.

Assim também pensa Leitão Júnior, ao asseverar que o aumento e a qualificadora “convivem perfeitamente entre si”. [32] Mesmo antes da Lei 14.064/20 já ensinavam Gomes e Maciel que o aumento de pena do § 2º., era aplicável tanto ao “caput” como ao § 1º., de forma que a inclusão de um § 1º. – A em nada altera o quadro. Ademais, importa lembrar que os mesmos autores esclarecem que o aumento pela morte do animal será aplicável se o animal for “doméstico, domesticado ou exótico”, seja decorrente de dolo ou preterdolo.

Já se o animal for silvestre, somente se aplicará o aumento se a morte for preterdolosa, pois em caso de dolo, se caracteriza “o delito do art. 29, “caput” com a agravante do art. 15, II, “m” (emprego de método cruel)”. [33] Para o artigo 32, § 1º. – A, da Lei Ambiental, invariavelmente, seja a morte decorrente de dolo ou preterdolo, será possível aplicar o aumento do § 2º., pois que o dispositivo se refere específica e exclusivamente a “cães e gatos”, que são animais domésticos.

Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Bianca Cristine Pires dos Santos Cabette

Advogada, Pós – graduada em Direito Público, Direito Civil e Direito Processual Civil e Bacharelanda em Psicanálise.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; CABETTE, Bianca Cristine Pires Santos. Crime de maus-tratos a animais qualificado (Lei 14.064/20) – primeiros apontamentos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6307, 7 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85808. Acesso em: 25 nov. 2024.

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