A mais recente polêmica instaurada no Supremo Tribunal Federal e encabeçada pelo atual Presidente da Corte Constitucional brasileira demonstra o decisionismo judicial que lá se instaurou, o desrespeito à legislação e o elevado grau de insegurança jurídica que hoje vige no ordenamento brasileiro.
Como amplamente noticiado nas mídias, o Ministro Marco Aurélio concedeu medida cautelar nos autos do Habeas Corpus 191.836/SP para liberar o suposto traficante conhecido como André do Rap, pois o juízo que emitiu sua ordem de prisão preventiva, ultrapassados 90 (noventa) dias, não teria reavaliado a necessidade da prisão, tal qual determina expressa e literalmente o art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 13.964/19 (Pacote Anticrime).
O Min. Marco Aurélio, hoje o mais antigo ministro do STF, nada mais fez do que aplicar ao caso concreto à previsão legislativa que, destaque-se mais uma vez, é expressa e literal nesse sentido.
Aliás, quanto ao ponto, vale transcrever o famigerado dispositivo do Código de Processo Penal sob o qual se entabularam os recentes debates no Pretório Excelso.
Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem
Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.
Em virtude da decisão concessiva o Ministério Público apresentou petitório denominado Suspensão de Liminar ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, atualmente o Min. Luiz Fux, que quase imediatamente deferiu a suspensão para cassar a decisão do Ministro Marco Aurélio e restabelecer a prisão de André do Rap. Dentre os fundamentos da concessão, além da suposta supressão de instância, estaria a inviabilidade da revogação “automática” da prisão cautelar quando não revisada no prazo de 90 (noventa) dias, especialmente considerado o risco à ordem pública e periculosidade do agente.
A Suspensão da Liminar, tombada sob o nº 1395 MC, foi incluída em pauta para referendo do plenário e, por maioria de 09 a 01 (vencido o Min. Marco Aurélio que concedia a liberdade), foi confirmada.
Além disso, os i. Ministros, em verdadeira atividade legiferante, fixaram a seguinte tese de orientação "a inobservância do prazo nonagesimal do art. 316 do CPP não implica em automática revogação da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e atualidade de seus fundamentos".
Esse julgamento é preocupante!
De um lado, mais uma vez, demonstra o completo desrespeito dos ilustres ministros à Lei e a insegurança jurídica que se instaurou no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente, no âmbito do direito criminal.
O julgado, com argumentos retóricos, substituiu o texto normativo pela norma que a eles parecia mais adequada. Atividade legiferante que extrapola a competência constitucionalmente conferia ao Supremo Tribunal Federal. No ponto merece nota que tese fixada no julgamento – em via processual inadequada, inclusive – não encerra um exercício hermenêutico.
A atual redação do artigo 316 do CPP não é lacunosa, nem sugere qualquer abertura interpretativa. O dispositivo tem redação direta e o seu sentido literal. Não há espaços para se dizer aquilo que lá não está dito. Não há espaços para não considerar ilegal a prisão quando ultrapassado o prazo nonagesimal. Sendo assim, jamais poderia a Corte Constitucional ter afastado a sua aplicabilidade ao caso e, pior, fixar um novo sentido – na verdade uma nova redação – ao texto de lei por completa ilegitimidade para tanto.
Não bastasse, o julgamento ainda chancelou um verdadeiro juízo de exceção e as manobras adotadas pelo atual presidente da Corte para fazer sobrepor a sua vontade sobre a do seu par.
Isto porque, apesar de a imensa maioria dos integrantes do Supremo Tribunal ter reconhecido que o Presidente não poderia, em procedimento anômalo e sem previsão regimental, cassar uma decisão de outro membro da Corte, especialmente no âmbito do direito criminal, resolveram referendar a decisão em razão do sujeito (André do Rap) que seria beneficiado com o restabelecimento de sua liberdade caso não fosse confirmada a decisão da presidência.
Mais uma vez lançaram mão de argumentos retóricos a respeito da periculosidade, garantia da ordem pública, desrespeito ao Judiciário. Argumentos que não possuíam e não possuem qualquer pertinência com a questão objeto de apreciação que é eminentemente objetiva.
O quadro de insegurança jurídica que se instaurou no Supremo Tribunal Federal e, por reflexo, nos demais órgãos do Poder Judiciário, é notório, e os nossos mais sábios juristas se transformaram em verdadeiros justiceiros que pouco se importam com a vontade legislativa e mais se importam com o que bem entendem por correto.