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Apontamentos aos limites de uma revisão constitucional

Agenda 13/11/2020 às 16:00

Recentemente, o líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros, manifestou-se favorável à realização de um plebiscito para revisão da atual Constituição.

I – OS FATOS

Para Roberto Campos, a Constituição de 1988 era saudavelmente libertária no político, cruelmente liberticida no econômico, comoventemente utópica no social. Para o criador do BNDE, os constituintes haviam extrapolado o mandado que o povo lhes conferira, avançado em todos os temas da vida nacional, de forma irresponsável e anacrônica, promovendo uma antinomia entre o processo de globalização e nossa estrutura constitucional.

Recentemente, o líder do atual governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros, disse:

"Eu pessoalmente defendo nova Assembleia Nacional Constituinte, acho que devemos fazer um plebiscito, como fez o Chile, para que possamos refazer a Carta Magna e escrever muitas vezes nela a palavra deveres, porque a nossa carta só tem direitos e é preciso que o cidadão tenha deveres com a nação". Ele acredita que a Constituição de 1988 tornou o país "ingovernável". O registro da declaração, feita em um evento jurídico, no dia 26 de outubro do corrente ano, é do jornal O Estado de S. Paulo.

A declaração vem de um político vinculado com a plataforma do atual governo.

Segundo Barros, a Constituição de 1988 dá muitos direitos para os cidadãos e estabelece poucos deveres. O parlamentar afirmou que o texto constitucional estabeleceu muitos benefícios que o país não pode pagar.

"Nós já esgotamos a capacidade do contribuinte brasileiro de colocar recursos para o poder público. E o poder público não consegue entregar os direitos que foram adquiridos. Então, a formula não foi adequada", afirmou o líder do governo.

Também afirmou que ela poderia ser usada para "equilibrar" os poderes, dizendo que o poder fiscalizador de juízes, promotores e outros servidores ficou "muito grande".

O deputado disse, ainda, que vai estudar propostas de construção de novos textos constitucionais, como o aprovado no Chile, para apresentar uma proposta.

Ora, o Chile acaba de dar um “não” a um entulho ditatorial que convivia com a era pós-Pinochet. No Brasil, temos uma Constituição-cidadã de 1988 que foi edificada na defesa da democracia.

Disse Ulisses Guimaraes, quando promulgava a Constituição de 1988:

“Assinalarei algumas marcas da Constituição que passará a comandar esta grande Nação. A primeira é a coragem. A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, odever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na horado perigo. Sem ela, não haveria a cruz, nem os evangelhos. A Assembleia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão saudosista do velho do Restelo, no genial canto de Camões. Suportou a ira e perigosa campanha mercenária dos que se atreveram na tentativa de aviltar legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios e especulações.

...

A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de fábrica. O inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria.

...

Em significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia, em participativa além de representativa. É o clarim da soberania popular edireta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais.

O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador, habilitado a rejeitar, pelo referendo, projetos aprovados pelo Parlamento. A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao Prefeito, do Senador ao Vereador.

A moral é o cerne da Pátria.

A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam.

...

Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria.”


II – A REVISÃO CONSTITUCIONAL E SEUS LIMITES

Certamente, o parlamentar não é um bom interlocutor da Constituição de 1988. Esquece que ela é obra vinculada à democracia e, mais ainda, que há visíveis limites para sua revisão.

Cito o artigo 290 da Constituição de Portugal, hoje 288:

As leis de revisão constitucional terão de respeitar:                     

a) A independência nacional e a unidade do Estado;                     

b) A forma republicana de governo;                     

c) A separação das Igrejas do Estado;                     

d) Os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;                     

e) Os direitos dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações sindicais;                     

f) O princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e dos latifúndios;                     

g) A planificação democrática da economia;                     

h) O sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, bem como o sistema de representação proporcional;                     

i) O pluralismo de expressão e organização política, incluindo partidos políticos, e o direito de oposição democrática;                     

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j) A participação das organizações populares de base no exercício do poder local;                    

 l) A separação e a interdependência dos órgãos de soberania;                     

m) A fiscalização da constitucionalidade por acção ou por omissão de normas jurídicas;                     

n) A independência dos tribunais;                     

o) A autonomia das autarquias locais;                     

p) A autonomia político-administrativa dos arquipélagos dos Açores e da Madeira.

Início de Vigência: 25-04-1976

Fala-se aqui no que se chama poder de revisão constitucional.

O poder de revisão constitucional é um poder constituinte, porque diz respeito a normas constitucionais. Mas é poder constituinte derivado, não originário, porque não consiste em fazer nova Constituição, introduzindo princípios fundamentais em vez de outros princípios fundamentais.

A revisão constitucional sofre o efeito dos chamados limites materiais.

Os limites materiais não podem ser violados ou removidos, sob pena de se deixar de fazer revisão para se passar a fazer Constituição nova. Uma coisa é remover os princípios que definem a Constituição em sentido material e que se traduzem em limites de revisão, outra coisa é remover ou alterar as disposições específicas do articulado constitucional que explicitam num contexto histórico determinados alguns limites.

Fala-se que não há limites absolutos. Absoluto deve ser o respeito de todos os limites, de todas as regras, tanto materiais como formais, enquanto estiverem em vigor.

Os limites materiais de revisão não se confundem com os limites materiais do poder constituinte originário; estes vinculam o órgão constituinte na formação da Constituição; aqueles apenas o órgão de revisão constitucional; estes são constitucionais ou, se preferirem constitutivos do ordenamento.

Esses limites de revisão são, ao mesmo tempo, explícitos e implícitos.

Para Jorge Miranda (Teoria do Estado e da Constituição, 2003, pág. 421), os limites materiais da revisão não se confundem com os limites materiais do poder-constituinte(originário); estes vinculam o órgão constituinte na formação da Constituição, aqueles apenas o órgão da revisão constitucional; estes são constituintes ou, se ainda constitutivos do ordenamento; aqueles constituídos.

As regras de processo de revisão são suscetíveis de modificação como qualquer outras normas.

No Brasil, as cláusulas pétreas são encontradas no artigo 60, § 4º, da Constituição Federal.

Ali se diz:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

Ora, qualquer proposta de emenda tendente a excluir os limites materiais do poder reformador se afigura inconstitucional, porquanto as cláusulas pétreas são imprescindíveis e insuperáveis.

Imprescindíveis porque simplificar as normas que estatuem limites, outrora depositados pela própria manifestação constitucional originária, é usurpar o caráter fundacional do poder criador da Constituição.

Insuperáveis, pois, alterar as condições estabelecidas por um poder inicial, autônomo e incondicionado, a fim de reformar limites explícitos à atividade derivada, é promover uma fraude à Constituição.

Essa fraude à Constituição consiste numa agressão à superioridade de atividade constituinte de primeiro grau, colocando em risco a ordem jurídica estabelecida.

As cláusulas pétreas são as que possuem uma supereficácia, ou seja, uma eficácia total, como é o caso dos incisos I a IV já traçados. Daí não poderem usurpar os limites expressos e implícitos do poder constituinte secundário.

Logram eficácia total, pois contém uma força paralisante de toda a legislação, que vier a contrariá-las, de modo direto ou indireto. Daí serem insuscetíveis de reforma. Ultrapassá-las significa ferir a Constituição.

São ainda ab-rogantes, desempenhando efeito positivo e negativo.

Tem efeito positivo, pois não podem ser alteradas através do processo de revisão ou emenda, sendo intangíveis, e logrando incidência imediata.

Possuem ainda efeito negativo pela sua força paralisante absoluta e imediata, vedando qualquer lei que pretenda contrariá-las. Permanecem imodificáveis, exceto nas hipóteses de revolução, quando ocorre uma ruptura da ordem jurídica para se instaurar uma outra.

A natureza do preceito enfocado é declarativa. Ele declara, não cria limites materiais; estes decorrem da coerência dos princípios constitucionais, sua função é de garantia, que respeita os princípios e não a preceitos. Obrigatória, enquanto vigora, mas reversível. O que os afeta é atingirem-se os princípios nucleares da Constituição.

Por fim, se dirá que a inconstitucionalidade material da revisão é fenômeno homólogo ao da ilegalidade da lei.

É certo que há quem negue a própria possibilidade de inconstitucionalidade material da revisão; pois, ficando as normas por ela criadas no mesmo plano hierárquico das normas constitucionais, seria contraditório indagar da conformidade com a Constituição de atos destinados a modifica-la. Para Jorge Miranda (obra citada, pág. 427), tudo está em compreender a função da revisão constitucional e a subordinação da competência para levar a cabo à Constituição. Ora, se ela implica em preservar os princípios vitais da Constituição, como lei fundamental, será certo que tem de ser sempre ajuizada em face desses princípios e não em face desta ou daquela norma que intente modificar ou substituir, como disse Hauriau, ao arguir o que se chama de legitimidade constitucional que estaria acima da própria supralegalidade.

Será inconstitucional a revisão que:

  1. Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais que devam reputar-se limites materiais de revisão, embora implícitos, como será o caso de uma lei de revisão que estabeleça discriminação em razão da raça, infringindo o princípio da igualdade;
  2. Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materiais expressos(como é o exemplo de uma lei de revisão que estabeleça censura à imprensa, afetando assim o conteúdo essencial de um direito fundamental de liberdade);
  3. Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materiais expressos, com concomitante eliminação ou alteração da respectiva referência ou cláusula;
  4. Estipule como limites materiais expressos princípios contrários a princípios fundamentais da Constituição.

Por outro lado, havendo além da preterição dos limites materiais, preterição de limites formais há ainda afronta à Constituição:

  1. A preterição de limites materiais de primeiro grau ou de limites do poder constituinte(originário) por forma inconstitucional equivale a uma revolução, algo dantesco dentro do sistema constitucional, como seria o caso da restauração da Monarquia por maioria simples do Congresso Nacional;
  2. A preterição de limites materiais de segundo grau por forma inconstitucional equivale a uma ruptura em sentido estrito(eliminação da fiscalização da constitucionalidade por omissão por maioria simples).

No Brasil, já tivermos exemplos tristes de fraudes à Constituição, com preterição de limites materiais de primeiro grau, como nos chamados Atos Institucionais a partir de 1964. O órgão de revisão não faz senão formalizar ou emprestar credibilidade, numa conjuntura de exceção, a uma operação política em curso ou mesmo já consumada por partes daqueles que venham, de forma ilegítima, deter o poder.

A não reação à inconstitucionalidade material de revisão constitucional ou a não reação em tempo útil irá conduzir à perda da efetividade da norma ou do princípio constitucionalmente infringido.


III – O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Ora, pela Constituição de 1988, o Ministério Público tem um papel ímpar na defesa dos interesses da sociedade, na luta contra a corrupção, na preservação do meio ambiente, na defesa dos consumidores, na infatigável defesa das comunidades indígenas, dentre outras dignas funções. Certamente o Parquet contrariou interesses, e, para muitos, deve ser reformulado.

O Ministério Público tem função primordial na defesa dos direitos humanos, que são protegidos como princípio impositivo pela Constituição de 1988.

Uma das principais funções da democracia é a proteção dos direitos humanos fundamentais, como as liberdades de expressão, de religião, a proteção legal e as oportunidades de participação na vida política, econômica e cultural da sociedade. Os cidadãos têm os direitos expressos e o dever de participar do sistema político que vai proteger seus direitos e sua liberdade.


IV – O RESPEITO ÀS GARANTIAS INSTITUCIONAIS

Esquecem que, quando se fala em Ministério Público, se fala de uma garantia institucional.

A garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais, providos de um componente institucional que os caracteriza. Temos uma garantia contra o Estado, e não através do Estado. Estamos diante de uma garantia especial a determinadas instituições, como dizia Karl Schmitt. A vitaliciedade é uma garantia constitucional que protege o Judiciário e o Ministério Público e sua perda enfoca a instituição. Ora, se assim é a garantia institucional na medida em que assegura a permanência da instituição, embaraçando a eventual supressão ou mutilação, preservando um mínimo de essencialidade, um cerne que não deve ser atingido ou violado, não se pode conceber o perecimento desse ente protegido.

J.H. Meirelles Teixeira prefere chamar de direitos subjetivos, uma vez que eles configuram verdadeiros direitos subjetivos. Tais direitos se configuram quando a Constituição garante a existência de instituições, de institutos, de princípios jurídicos, a permanência de certas situações de fato. São características desses princípios, consoante apontados por Karl Schmitt: a) são, por sua essência, limitados, somente existem dentro do Estado, afetando uma instituição juridicamente reconhecida; b) a proteção jurídico‐constitucional visa justamente esse círculo de relações, ou de fins; c) existem dentro do Estado, não antes ou acima dele; d) o seu conteúdo lhe é dado pela Constituição; penso que a Constituição não deixa margem de mudança dos direitos institucionais, garantias institucionais, por emenda constitucional, e muito mais ainda por lei ordinária. A vitaliciedade é, pois, instituto que o Constituinte originário cristalizou, impondo o seu acatamento in totum. As garantias institucionais, direitos institucionais, constituem direitos fundamentais.

Seria, pois, de interesse do país que o parlamentar arrolasse as verdadeiras motivações de seu discurso e ainda quais interesses está a proteger.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Apontamentos aos limites de uma revisão constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6344, 13 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86465. Acesso em: 2 nov. 2024.

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