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O direito-dever de visita em tempos de pandemia

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Agenda 16/04/2021 às 11:40

Refletimos sobre a realização de visitas durante a pandemia, à luz dos tipos de guarda existentes na legislação e da necessidade de segurança sanitária em prol da saúde da criança.

1.O PODER FAMILIAR

O poder familiar decorre do vínculo jurídico de filiação e é exercido pelos pais em relação aos filhos, enquanto eles não atingirem a maioridade civil, o que atualmente ocorre aos 18 anos de idade, conforme disposto no art.5º do Código Civil1. Nesse sentido, o art.1634, do referido dispositivo legal, enumera atribuições dos pais que são consideradas como verdadeiros deveres legais e, dentre elas: dirigir a criação e educação dos filhos e exercer a guarda unilateral, ou compartilhada, obrigatória. Ao tratar dos deveres relativos ao matrimônio, o art.1589 do diploma civilista também aborda o assunto quando dispõe sobre a possibilidade de os pais visitarem e terem os filhos em sua companhia, além da obrigação de fiscalizarem sua manutenção e educação.

Quando da constância do casamento ou de união estável, o poder familiar, em regra, será exercido pelos pais ou, na falta de um deles, exclusivamente pelo outro. Em caso de divergência entre eles, é possível demandar o Judiciário a fim de dirimir a discordância. Configurando-se eventual divórcio, separação judicial ou dissolução da união estável, nenhuma alteração deve ocorrer na relação de filiação, uma vez que ela não é vinculada à situação conjugal dos pais da criança, mas, tão somente, ao estado de posse de filho, conforme ratifica o art.1632: “a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos”.


2.O DIREITO-DEVER DE VISITA

Embora o Código trate como direito de visita, entendemos aqui ser mais apropriado falar em um direito-dever decorrente do exercício do poder familiar – uma vez que impõe aos pais uma obrigação, do mesmo modo que lhes concede o direito de conviver com os filhos. Nesse sentido, nos ensina Caio Mário (2017, p. 157)2: “a visita é daqueles direitos que melhor se caracterizam como deveres”. O art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente3 positiva o referido entendimento. Corrobora dessa ideia Silvio Neves Baptista4:

O direito de visita - melhor seria "direito à visita" ou "dever de visita"- não é apenas a ação do genitor ir ver o filho, mas também a de estar com ele de forma não permanente. Não se trata de direito de pai ou de mãe frente ao genitor que detém a guarda do menor, tendo o filho por objeto, muito menos direito de pai ou mãe sobre o filho. Diferentemente do que a leitura apressada do citado artigo poderia sugerir, a visitação consiste no direito do filho menor em ser visitado, não só pelo pai ou pela mãe que não detém a guarda, mas por qualquer pessoa que lhe tenha afeto - pai, mãe, parentes, amigos (BAPTISTA, 2012, p.01)

Infelizmente, a nossa legislação não escolheu o melhor termo ao utilizar o vocábulo visita5, uma vez que essa palavra nos remete a certa formalidade, ao ato de ir ver alguém durante um curto intervalo de tempo, marcado pela descontinuidade, enquanto o instituto deve assegurar o livre acesso dos pais aos filhos e o contato permanente, de modo a preservar o vínculo afetivo e de responsabilidade entre os envolvidos. Melhor seria abordar a convivência ao invés da simples ‘visita’. Não parece razoável visitar alguém com quem se conviva. Convém ressaltar que o direito também é do filho, direito de conviver com seu genitor e de ser por ele visitado, de modo a consolidar laços afetivos.

Dada a importância da matéria, a Constituição Federal de 1988, em seu art.2276, positiva o referido direito à medida que assegura a convivência familiar por parte da criança, do jovem e o do adolescente, a ser promovida pelo Estado, sociedade e família. Em consonância com esse dispositivo, o Estatuto da Criança e do Adolescente também aborda a temática nos arts.19 a 52, evidenciando que a manutenção do contato rotineiro dos filhos com os pais independe da relação existente esses últimos. No âmbito constitucional, o Artigo 2297 deixa clara a imposição aos pais do dever de assistir, criar e educar os seus filhos menores.


3.OS TIPOS DE GUARDA: UNILATERAL, COMPARTILHADA E ALTERNADA

Do mesmo modo que já fora referido acima, acerca do conceito de visita, a guarda também não constitui mera faculdade, mas sim, um poder- dever imputado ao guardião no sentido da obrigá-lo a proteger, cuidar, zelar e vigilar o menor. Assim sendo, configura-se como um complexo de deveres dos pais perante seus filhos, visando a sempre satisfazer os interesses desses últimos. É importante ressaltar aqui a diferença entre a noção física e jurídica de guarda: a primeira é aquela vinculada à ideia de custódia material, enquanto a segunda, diz respeito à tomada de decisões e prestação de assistência. O guardião de uma criança é, portanto, o seu responsável legal.

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Em sua acepção jurídica8, a guarda pode ser atribuída a um só dos genitores ou alguém em seu lugar, ou seja, unilateralmente – ou de modo compartilhado, por meio do cumprimento dos deveres por parte de ambos os pais, de modo a dar continuidade à autoridade parental, de maneira semelhante àquela que ocorria na constância da sociedade conjugal, dividindo o tempo de convívio equilibradamente. segundo a realidade concreta e os interesses dos filhos. Essa modalidade não pressupõe necessariamente a existência das duas residências. Grande entusiasta das alterações trazidas pela Lei de Guarda Compartilhada, Maria Berenice Dias9 nos ensina:

“O novo modelo de corresponsabilidade é um avanço, pois favorece o desenvolvimento das crianças com menos traumas, propiciando a continuidade da relação dos filhos com seus dois genitores e retirando da guarda a ideia de posse” (DIAS, 2018, p.02).

Outra espécie é a da guarda alternada, hipótese em que o filho passa a ter, alternadamente, duas residências, dividindo o tempo de permanência com ambos os lugares de moradia. Esta última é pouco aceita e bastante criticada por alguns profissionais, uma vez que pode gerar a perda de referência especial por parte da criança, descontinuidade nas relações afetivas e dificuldades práticas na sua viabilização no cotidiano. O entendimento de Silvio Neves Baptista endossa que: “A guarda alternada constitui em verdade uma duplicidade de guardas unilaterais e exclusivas. Isso obriga que os filhos tenham mais de um local para morar sem um ponto de referência” (BAPTISTA, 2008, p.31)10.


4.A LEI 13.058/2014 – LEI DE GUARDA COMPARTILHADA

Em 2014, a edição da Lei 13.058, a chamada Lei da Guarda Compartilhada, alterou algumas disposições do Código Civil no tocante ao assunto. Conceitua-se a guarda compartilhada como o convívio equilibrado de acordo com a realidade fática e interesse dos filhos, mas não uma divisão equitativa do tempo entre duas residências.

Uma das mais significativas mudanças foi da prevalência da guarda compartilhada em relação às outras modalidades, em casos em que os pais não consigam estabelecer um consenso. Na nova redação do art.1584, §211, temos que o magistrado deverá aplicar a guarda compartilhada em caso de ausência de acordo dos genitores. A referida imposição, entretanto, merece algumas ressalvas, conforme se observa:

“(...)Obrigatoriedade essa, que pode ser relativizada, pelas previsões da concessão de guarda alternativa em caso de comprovação de que esta modalidade pode causar danos ao menor(...)Deste modo, é imprescindível que o aplicador do direito seja criterioso ao aferir as alegações dos genitores, para que possa buscar a melhor decisão ao caso concreto, sempre visando o melhor para a criança e, quando necessário, possa rever seu posicionamento quando a situação assim recomendar, haja vista não ser afetada pela coisa julgada a decisão que decide a guarda do menor. (BONDEZAN e VAN DAL, 2019, p.04)12

Essa é considerada, atualmente, a melhor modalidade por tratar os pais igualitariamente, manter a corresponsabilidade e a coparentalidade, além de ser uma tentativa de amenizar a ruptura do eventual vínculo anteriormente existente entre os genitores.

Na prática, o menor deve realizar as próprias escolhas segundo sua conveniência e interesse, podendo inclusive optar por estabelecer residência fixa. De toda forma, os deveres relativos à criação serão compartilhados e exercidos de modo conjunto. O bom senso, a razoabilidade e a prevalência do melhor interesse da criança e do adolescente devem nortear as decisões tomadas pelos pais ou pelo Judiciário. As desavenças pessoais atinentes aos genitores não podem colocar em jogo o bem dos filhos. Se faz pertinente colacionar os ensinamentos de Eduardo de Oliveira Leite:

A grande maioria das vezes marido e mulher brigam para demarcar o terreno das visitas, sem qualquer preocupação com o destino dos filhos; os mesmos são transformados em objeto de disputa e ataques cáusticos, ao invés de serem respeitados como pessoas, com suas próprias preferências e necessidades. (LEITE, 1996, p.67)13

Nesse ínterim, a Lei alterou o Código de modo a prever que o descumprimento das cláusulas relativas à guarda pode acarretar sanções como meio de coerção àquele que dificulta ou impede a convivência. Tem- se, na redação do §4º do art.1584: “A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda unilateral ou compartilhada poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor”. Tratando sobre o mesmo tema, o art. 24914 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que quem dificultar ou impedir o exercício regular do direito-dever de visita e convivência do filho com os pais está praticando infração administrativa, sujeita à multa.


5.PANDEMIA DO COVID 19

Em dezembro de 2019, na China, na cidade de Wuhan15, se teve notícia do primeiro caso de infecção pelo Novo Coronavírus, o chamado SARS-CoV216. Com certa rapidez, a doença começou a se espalhar no continente asiático e, posteriormente, alastrou-se pelo Mundo. Com a chegada do vírus à Itália e o seu alto índice de letalidade, no mês de fevereiro o mundo voltou os olhos para esse ainda tão pouco conhecido microrganismo. A velocidade de sua transmissão e os elevados números de óbitos, atingindo com mais frequência a população idosa, deram início a uma situação caótica global sem precedentes.

No Brasil, se teve o primeiro registro de caso ainda no mês de fevereiro, na cidade de São Paulo. No início, era possível identificar os ‘casos importados’ e isolar apenas aqueles que chegaram do exterior, vindos de lugares com alta disseminação e familiares daqueles que foram contaminados. Pouco tempo depois, restou configurada a chamada transmissão comunitária17, isso é, entre residentes que não tinham histórico de viagem ao exterior – meio pelo qual a doença foi ganhando espaço em outros Estados.

Em março, a Organização mundial da Saúde (OMS) definiu o referido surto como Pandemia e estabeleceu uma série de precauções e recomendações a serem seguidas de modo a tentar frear o contágio do vírus, no intuito de proteger a população e evitar a sobrecarga dos sistemas de saúde. Dentre as orientações, se faz crucial o isolamento social, devendo ser evitado o contato com outras pessoas fora do convívio diário tanto quanto seja possível, de modo a sair de casa apenas para o essencial – como idas aos supermercados e farmácias – sobretudo para aqueles que se encontram no grupo de risco, como os idosos e pacientes portadores de doenças crônicas e respiratórias.

De acordo com a realidade de cada País, do seu sistema de saúde, hábitos, economia e questões culturais, os Governos locais passaram a expedir uma série de medidas restritivas na tentativa do combate ao vírus. Aqui no Brasil, por exemplo, tivemos a suspensão das atividades presenciais de ensino, fechamento do comércio não essencial, proibição de eventos com mais de 10 pessoas, interdição de parques e praças, diminuição do transporte público, redução do tráfego aéreo. No âmbito do Direito, tivemos a suspensão dos prazos processuais, utilização do teletrabalho e audiências presenciais. Em algumas cidades, dada a gravidade da situação, medidas ainda mais severas foram tomadas, como o rodízio de veículos, obrigação do uso de máscaras de proteção e necessidade de apresentar declaração de atividade essencial para circular nas vias públicas – configurando o que se chama de lockdown18.

Diante disso, muitas foram as repercussões nas mais variadas áreas do Direito. No tocante ao Direito das Famílias, inúmeros impactos podem ser citados, como as solicitações de redução do valor de pensão alimentícia face à redução dos salários, revogação da prisão civil por dívida de alimentos (uma vez que o sistema prisional é local de aglomeração com elevados riscos de contágio), possibilidade de realização de casamentos virtualmente e guarda dos menores junto ao dever de visitação. Por tratar de uma situação sem precedentes, não temos qualquer previsão legal e nem disposições contratuais que abarquem o atual cenário. Assim, as soluções estão sendo pensadas gradativamente, com o surgimento das demandas e das novas orientações relativas ao momento vivido.


6.O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E A PROTEÇÃO INTEGRAL

Para as demandas relativas ao direito de família e, mais especificamente, aquelas que versam sobre guarda e visita, temos sempre como princípio norteador o melhor interesse da criança. Como já observado, ele é previsto em disposições Constitucionais (art. 227, caput), no Código Civil (arts.1.583 e 1.584) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts.3º e 4º). A ampla proteção se dá em função da vulnerabilidade de uma criança ou adolescente, e as consequente necessidade de  atenção  ao seu desenvolvimento e proteção integral. Paulo Lobo conceitua o princípio:

“O princípio do melhor interesse significa que a criança deve ter seus interesses tratados com prioridade pelo Estado, pela Sociedade e pela Família, tanto na elaboração quanto na aplicação dos direitos que lhe digam respeito(...). O princípio para da concepção de ser a criança e o adolescente como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, e não como mero objeto de intervenção jurídica e social quando em situação irregular. Nele se reconhece o valor intrínseco e prospectivo das futuras gerações, como exigência ética da realização de vida digna para todos(..). não se trata de uma recomendação ética, mas de diretriz determinante nas relações da criança e do adolescente com seus pais, com sua família, com a sociedade e com o estado. (LOBO, 2014, p.69)19.

Assim sendo, as crianças e adolescentes são titulares de direitos plenos e específicos – devendo a noção de melhor interesse da criança permear todas as ações e escolhas relativas a eles. Para Fachin (1996, p.125)20, esse princípio deve ser encarado como: “critério significativo na decisão e na aplicação da lei”. Não se fala aqui, necessariamente, do interesse em seu aspecto financeiro, mas de uma acepção mais ampla, considerando o aspecto emocional, seu pleno desenvolvimento, adequação de necessidades e vontades desta, bem como suas peculiaridades.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KRAUSE, Lara Foinquinos. O direito-dever de visita em tempos de pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6498, 16 abr. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89836. Acesso em: 22 nov. 2024.

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