7.A PANDEMIA E O DIREITO-DEVER DE VISITAS
Diante da recomendação de manter o isolamento social, evitar exposição a riscos desnecessários e restrição do fluxo de veículos, muitas demandas surgiram em relação à guarda, convivência e visitação dos pais em relação aos seus filhos menores que não residem consigo. As alterações da rotina em função das determinações impostas pelas autoridades de saúde perfazem uma situação absolutamente nova. Nesses estados de excepcionalidade, a recomendação maior é sempre manter a prudência, o bom senso, o equilíbrio e o diálogo – todos norteados pelos princípios atinentes ao Direito de Família e, ainda, com atenção ao bem da coletividade e à razoabilidade.
Diante da necessidade de manter a população isolada para assegurar a saúde e reduzir os riscos de contaminação, a convivência física entre aqueles que não residem juntos parece ser danosa tanto aos filhos quanto aos pais, além de gerarem impactos na sociedade. Dessa forma, face à inexistência de um marco legal, insta analisar o caso concreto no que diz respeito ao tipo das atividades laborais dos pais (estarem ou não na linha de frente), local das residências, condições relativas à saúde dos envolvidos – a fim de verificar se a realização da visita se mostra adequada.
8.DAS DECISÕES
Existe certa dificuldade para encontrar precedentes sobre o tema, dada a sua atualidade e, também, em função dos julgados sobre essa temática serem de segredo de justiça. De modo geral, foi possível verificar que, à luz da proteção da suade e do melhor interesse da criança, os magistrados têm determinado suspensão temporária da visita em consideração à situação excepcional vivida; onde o isolamento é a recomendação primordial para conter a disseminação do vírus – a visitação ou alternância de residências não se mostra essencial e adequada ao momento. O ineditismo do momento vivido deve ser avaliado com cautela, segundo Isabel Doria:
Não é razoável esperar que um acordo ou uma sentença de guarda compartilhada preveja cláusulas específicas para situações de pandemia. Também não existe, no Brasil, uma previsão legal específica que defina como os pais separados devem agir em momentos de quarentena forçada. (...)A falta de regras pré-definidas, no entanto, não impede que os pais tenham bom senso e estabeleçam uma rotina que preserve o melhor interesse dos filhos em tempos de pandemia. (DORIA, 2020, p.3)21
Deve ser mantido, de toda forma, o contato virtual através dos inúmeros aparatos digitais que temos atualmente, de modo a permitir a interação, participação e fiscalização do pai que se encontre fora do convívio físico com o menor – não fragilizando, portanto, o vínculo existente entre os envolvidos. A possibilidade de visitação virtual já vinha sido discutida pela doutrina antes mesmo da pandemia e, provavelmente, se tornará uma realidade ainda mais evidente – uma vez que aproxima, inclusive, aqueles que residem em locais distantes e preservam os laços, amenizando os efeitos de uma eventual alienação parental. Ainda no ano de 2012, Silvio Neves Baptista já defendia a viabilidade de sua realização:
As recentes modalidades de contato promovidas pela tecnologia da comunicação, oferecem meios virtuais de "visitação" que podem estreitar o relacionamento entre pais e filhos entregues a guarda do outro genitor. A criança e o adolescente têm acesso fácil à internet, e manipulam com destreza os diálogos através do computador. (BAPTISTA, 2012, p.01)22
Não é razoável que o pai ou a mãe realize qualquer conduta de modo a restringir ou dificultar a comunicação, devendo chegar sempre a um consenso com base no diálogo antes de provocar o Judiciário – que já se encontra em funcionamento restrito e com uma série de novas demandas.
Em função do ineditismo da situação vivida, é possível encontrar decisões em sentidos diversos dentro do mesmo Tribunal, como ocorreu no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o TJRS. A decisão proferida pelo Juiz Eduardo Zietlow determinou a possibilidade da visitação sob o argumento de que o real não se compara com o virtual e que, certamente, a mãe empenharia todos os cuidados para poder ver o seu filho. Assim sendo, em sede de recurso, ele decidiu por estabelecer horários de convivência da mãe com seu filho que reside com pai em guarda unilateral. Nas palavras do Relator, em seu voto, observa-se:
É cabível a pretensão de visitação, não obstante o evento COVID 19, uma vez que a mãe certamente empreenderá todos cuidados que a etiqueta médica recomenda para preservar a saúde da criança. (...) Devida a adequada convivência da mãe e filha, de forma pessoal e não somente virtual para o período do COVID-19, já que a mãe permanecerá neste período na cidade de residência da criança. (ZIETLOW, 2020, p.05) 23
Já a Juíza Vera Lucia Deboni24, também do TJRS, alegou que diante da situação vivida, ausente qualquer tipo de manual, cláusula ou precedente, deveria ser mantido apenas o contato virtual – considerado por ela vantajoso pelo fato de possibilitar a convivência sem o risco de contaminação. Assim, desautorizou temporariamente a visitação, mas deixando em aberto a possibilidade de rever a decisão diante de alterações no cenário vivido e assegurando ao pai posterior compensação do tempo que esteve provado. Alegou ainda que com sua medida estaria protegendo a criança, seus pais, demais parentes que com ela habitam, além da sociedade e do sistema de saúde. Seria melhor, então, pecar pelo excesso do que uma eventual contaminação com a doença – podendo ainda a juíza ser futuramente responsabilizada pela concessão realizada.
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. VISITA PATERNA AOS FILHOS MENORES. COVID-19. VISITAS NO MODO VIRTUAL. O convívio com o pai não guardião é indispensável ao desenvolvimento sadio das crianças e adolescentes. Situação excepcional configurada pela pandemia de COVID-19 e recomendação do Ministério da Saúde para manutenção do distanciamento social que apontam para o acerto da decisão recorrida, ao determinar contato do pai com o filho por meio de visita virtual diária, pelo menos por ora. Medida direcionada não só à proteção individual, mas à contenção do alastramento da doença. (Agravo de Instrumento, Nº 70084141001, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vera Lucia Deboni, Julgado em: 16-04-2020)”
Outro caso25 bastante interessante, no TJSP em decisão do Eduardo Gesse, diz respeito ao pai de uma criança que é piloto de avião e, diante disso, sua profissão lhe impõe constantes viagens que o colocam em risco praticamente permanente. Mesmo assim, ele insistiu em visitar a criança. A mãe procurou o judiciário diante da falta de consenso, alegando, inclusive, que o filho tem problemas respiratórios. Desse modo, o Juiz determinou que o pai ficasse em quarentena por 14 dias completamente isolado, para depois poder visitar a criança.
Em razão da pandemia mundial decorrente da propagação do Coronavírus é realmente recomendável, por força da profissão exercida pelo requerido, por algum tempo, deixe de manter contatos com seus filhos. É algo que no momento e infelizmente o bom senso nos impõe. Não sendo assim, involuntariamente seus filhos correrão maior risco de contaminação, o que há de ser evitado (...)Suspendo o direito-dever de visitas por parte do requerido por 14 dias, atento ao fato de que essa providência pode ser revisada para menos (ou para mais?) caso as recomendações das autoridades de saúde o permitirem ou exigirem o agravamento das restrições de saúde já conhecidas. (2ª vara de família e sucessões do Tribunal de Justiça de São Paulo, Juiz Eduardo Gesse julgado dia 23/03/2020 Processo: 1014033-60.2018.8.26.0482)
A realidade fática, entretanto, é que muitos pais que detém a guarda física acabam usando-a para monopolizar o contato com a criança e afastá- la do outro, em função de desavenças pessoais – deve ser sempre vedado o abuso do direito injustificado do detentor da guarda. Insta lembrar que resta como maior prejudicado o próprio filho, porquanto é ele que é privado do convívio familiar. Em recente artigo, Isabel Doria26 nos ensina sobre o momento:
O ‘excesso de zelo’, por si só, não deve justificar o rompimento da convivência de uma criança com um de seus pais. Vale lembrar que atitudes como “dificultar o contato de criança ou adolescente com um de seus genitores” ou “dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar” podem, inclusive, ser consideradas como prática de atos de alienação parental nos termos da Lei nº 12.318/2010. (DORIA, 2020, p03)
9. DIPLOMAS LEGAIS
O Conanda, Conselho Nacional da Criança e do Adolescente, editou, no dia 25 de marco de 2020, uma recomendação que visa à proteção integral das crianças e dos adolescentes durante a pandemia. Dentre as orientações ali expedidas, vale destacar:
“Que crianças e adolescentes filhos de casais com guarda compartilhada ou unilateral não tenham sua saúde e a saúde da coletividade submetidas à risco em decorrência do cumprimento de visitas ou período de convivência previstos no acordo estabelecido entre seus pais ou definido judicialmente”. (CONANDA, 2020, art. 18)27.
Diante disso, a recomendação sugere a manutenção da convivência por meios digitais, impõe o dever do responsável que permanece com a criança manter o outro informado, de modo a evitar o deslocamento desnecessário. Acrescenta que, caso seja decidido pela possibilidade da visita, os protocolos de higienização e proteção devem ser seguidos, assim como deve ser respeitada a quarentena de 15 dias em caso de exposição a situação de risco de contágio. Por fim, conclui o referido diploma legal:
“O judiciário, a família e o responsáveis devem se atentar, ao tomarem decisões relativas à permissão de visitas ou períodos de convivência, ao melhor interesse da criança e do adolescente, incluindo seu direito à saúde e à vida, e à saúde da coletividade como um todo”. (CONANDA, 2020, p.08)
Em tramitação, temos o Projeto de Lei 162728. que trata sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito de Família e das Sucessões no período da pandemia causada pelo coronavírus. No capitulo relativo à guarda, temos que:
Art. 6º O regime de convivência de crianças e adolescentes, qualquer que seja a modalidade de guarda, poderá ser suspenso temporariamente, de comum acordo entre os pais ou a critério do Juiz, para que sejam cumpridas as determinações emanadas das autoridades públicas impositivas de isolamento social ou quarentena. (PL 1627, 2020) 29.
Dada a sua imprevisão, não se tinha qualquer dispositivo legal que fizesse referência à ocorrência de uma pandemia e suas repercussões no Direito de visita, bem como das questões tocantes à guarda. Possivelmente surgirão novas disposições legais sobre o tema. Face à peculiaridade do momento, é necessário agir com toda a cautela possível, de modo a evitar o contato físico temporariamente e fornecer outros meios de contato, como o virtual e o telefônico. Ressalta-se a possibilidade de futura recompensa do tempo sem convivência. Essa situação, provavelmente, abrirá possibilidades para novas formas de realização do convívio familiar, o que facilitará, inclusive, para aqueles que moram longe dos seus filhos.