Há muita controvérsia na doutrina e na jurisprudência acerca da validade da procuração outorgada por instrumento particular, para venda de bens imóveis de valor superior a 30 salários míniomos.
Grande parte da doutrina e da jurisprudência dos tribunais locais condicionam a validade do instrumento particular a bem imóvel de valor inferior a 30 salários mínimos com suposto amparo no art. 108 do Código Civil, que assim prescreve:
“Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país”.
O Código Civil estabeleceu como regra geral a formalidade da escritura pública para venda de bens imóveis contendo duas ressalvas.
A primeira delas é a de que a lei pode dispor em sentido contrário. É o caso das compras e vendas realizadas no âmbito do setor de financiamento habitacional em que se permite, inclusive, o leilão extrajudicial. A outra ressalva é a de que imóveis com valor inferior a 30 salários mínimos podem ser alienados por instrumento particular.
O final do dispositivo do art. 108 do Código Civil, por configurar uma exceção à regra geral, deve ser interpretado restritivamente. Ultrapassado o limite de 30 salários mínimos, ainda que em alguns centavos, impõe-se a formalidade da escritura pública.
Importante atentar que o preceito do art. 108 refere-se à transferência de direitos reais sobre imóveis, o que abrange a compra e venda de imóveis.
A operação de compra e venda de imóveis não se confunde com a outorga de procuração com poderes para alienar o imóvel. Nem mesmo a procuração em causa própria confunde-se com a alienação de bem imóvel.
Contrariamente ao que muitos supõem, o mandato é outorgado por instrumento particular como regra. É o que estabelece 654 do Código Civil com lapidar clareza:
“Art. 654. Todas as pessoas capazes são aptas para dar procuração mediante instrumento particular, que valerá desde que tenha a assinatura do outorgante”
Verifica-se, portanto, que a regra geral é a outorga da procuração, instrumento do mandato, por via de instrumento particular. Somente às pessoas não aptas ao pleno exercício dos direitos civis, como os menores de idade, por exemplo, é que se impõe a formalidade do instrumento público.
Por isso, até mesmo a procuração outorgada por instrumento público pode ser substabelecida por instrumento particular à pessoa apta, nos precisos termos do art. 655 do Código Civil:
“Art. 655. Ainda quando se outorgue mandato por instrumento público, pode substabelecer-se mediante instrumento particular”.
Conclui-se do exposto que nada há no ordenamento jurídico pátrio que vede o uso de instrumento particular para outorga de procuração contendo poderes para alienar bem imóvel, uma vez obedecidas as formalidades legais.
Positivamente, mandato não se confunde com compra e venda, nem mesmo o mandato em causa própria.
Enquanto no mandato há manifestação unilateral de vontade, na compra e venda há manifestação de vontade de ambas as partes: a do vendedor de alienar o bem imóvel pelo preço certo e ajustado, e a do comprador de adquirir o referido bem imóvel nas condições pactuadas pelas partes. Isso em nada altera em se tratando de procuração em causa própria que, por si só, não opera a transmissão da propriedade. Para que isso aconteça é preciso que o mandatário outorgue para si a propriedade do bem imóvel, o que se fará por instrumento público sempre que o valor do imóvel superar 30 salários mínimos segundo a regra do art. 108 do Código Civil.
Constata-se, pois, que aquilo que a praxe consagrou como correto e acatado por parcela da jurisprudência não resiste a uma análise mais aprofundada à luz dos preceitos do Código Civil.
Essa matéria controvertida está sendo discutida perante a 4ª Turma do STJ nos autos do Agint no Resp nº 1.894.758, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão. Após o voto do Relator validando a procuração por instrumento particular, pediu vista a Ministra Isabel Gallotti.
É difícil de prever o desfecho da demanda, mas pode-se afirmar com toda certeza que a formalidade para a validade do mandato difere da formalidade para a validade da operação de compra e venda.