Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Casamento e união estável: encontros e desencontros entre direito de família e previdenciário (Regime Geral de Previdência Social)

Agenda 12/09/2021 às 18:40

Reflexões sobre as similitudes e diferenças entre os institutos do casamento e da união estável.

A Constituição Federal de 1988 consagrou o Estado Constitucional Democrático, que situa a Constituição no centro do ordenamento jurídico, tornando-se uma “lente” através da qual todos os demais ramos do Direito, dentre eles, o Direito Privado, devem passar. O novo modelo constitucional tem como núcleo central a dignidade da pessoa humana, que ascende como valor supremo[1].

E é nesse contexto que está inserido o “novo” Direito de Família, também constitucionalizado e com ênfase na pessoa humana. Como afirma Conrado Paulino da Rosa[2], o conceito de família, até então extremamente taxativo, passou a apresentar um conceito plural. O art. 226 da Constituição elencou a família como base da sociedade, merecendo assim especial atenção do Estado. Ampliou-se o conceito de família, reconhecendo a união estável e as famílias monoparentais. O objeto da norma, segundo o mesmo autor, é valorizar a pessoa humana[3].

Com base nesse novo paradigma trazido pelo Estado constitucional (famílias plurais e valorização da pessoa humana), esse texto propõe uma reflexão, muito sintética, sobre a equiparação entre casamento e união estável em dois ramos distintos do Direito: o Direito de Família e o Direito Previdenciário. A intenção é dissertar sobre os pontos de encontro e desencontro entre esses dois institutos no Direito de Família e verificar se existe semelhança de tratamento no âmbito do Direito Previdenciário.


O casamento e a união estável no Direito de Família

O casamento e a união estável, assim como a família monoparental, estão disciplinados no Código Civil brasileiro[4].

O casamento (família matrimonial) encontra previsão nos arts. 1.511 e seguintes da legislação civil e é entendido como a união legal de duas pessoas com intuito de constituir família, vivendo em plena comunhão de vida e em igualdade de direitos e deveres. No dizer de Conrado Paulino da Rosa[5], trata-se de um contrato especial do Direito de Família vinculado a normas de ordem pública que têm por fim promover o enlace de pessoas a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole que porventura tiverem e se prestarem mútua assistência, se houver necessidade. Por se tratar de um enlace formal, que depende da chancela estatal, o casamento impõe diversas formalidades, disciplinadas no Código Civil[6].

A união estável (família convencional), por sua vez, é marcada pela informalidade[7], pois não há obrigatoriedade de contrato formal que marque o início da sua existência, não existe solenidade. Aliás, esse é um dos problemas enfrentados no Direito Previdenciário, como se verá adiante.

Nos termos do art. 1.723 do Código Civil, a união estável se configura na convivência pública, contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família[8].

Como afirma Conrado Paulino da Rosa[9], apesar de a legislação prever de forma exaustiva o casamento, dispensando poucos artigos para a união convivencial, não há qualquer motivo para tal comportamento, pois não há privilégio ou ascendência de uma sobre a outra.

Todavia, não podemos afirmar que se trata de institutos iguais[10], pois, ainda que, hodiernamente, equiparem-se em muitos aspectos, há pontos dissemelhantes entre os dois modelos. Nesse artigo, importa verificar essas distinções de tratamento perante o Regime Geral de Previdência Social.


Casamento e união estável no INSS

O rol de dependentes do Regime Geral de Previdência Social está elencado no art. 16 da Lei 8213/91. No inciso I, estão inseridos o cônjuge e o companheiro, ao lado dos filhos, como dependentes preferenciais, ou seja, não concorrem com os pais e irmãos. O parágrafo 3º do mesmo artigo faz remissão acertada ao § 3º do art. 226 da CF/88 para definir o conceito de companheiro (a) previdenciário.

Mas, a sintonia entre os dois ramos termina por aí. Enquanto para se habilitar aos benefícios de pensão por morte ou auxílio-reclusão, o cônjuge deve apresentar certidão de casamento atualizada, o companheiro(a) precisa comprovar a união estável através de documentos referentes aos últimos 24 (vinte e quatro) meses anteriores ao óbito, a teor do § 5º do art. 16, introduzido pela Lei 13.846/2019[11]. Trata-se de inovação legislativa recente, que afasta o direito previdenciário do Direito de Família, pois, pelo próprio caráter de informalidade de que se reveste a união estável, o(a) companheiro(a) sobrevivente nem sempre conseguirá apresentar provas contemporâneas, especialmente em se tratando de famílias de baixo poder aquisitivo.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

No Direito de Família, berço do instituto da união estável, essa, para que se configure, tem que ser pública, contínua e duradoura, mas não há prazo mínimo[12]. Precedente do STJ, v.g., entendeu que a convivência deve ser duradoura, em período suficiente a demonstrar a intenção de constituir família[13]. Se é certo que não pode ser reconhecido como união estável relacionamento de poucos dias, o critério objetivo imposto, de prazo mínimo, penaliza o(a) companheiro(a) dependente com a perda do direito ao benefício (pensão por morte ou auxílio-reclusão)[14].

Assim, a recente alteração legislativa previdenciária, além de dar as costas ao Direito de Família, representa afronta ao Estado Constitucional Democrático, por causar retrocesso social, o que é lamentável.


[1] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Gen, 2009. p. 59-61.

[2] ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 8ª ed. Salvador: Jus PODIVM, 2021. p. 56-57.

[3] No dizer de Maria Berenice Dias (Manual de Direito das Famílias. 14ª ed. Salvador: Jus PODIVM, 2021. p. 440), a expressão entidade familiar alargou o conceito de família. A ela é assegurada a especial proteção do Estado como base da sociedade (CR 226). Além do casamento, é feita expressa referência à união estável (CR 226, § 3º.) e à comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes (CR 226 § 4º), chamada de família monoparental. Mas não só nesse limitado universo flagra-se a presença de uma família. Os tipos de entidades familiares explicitados são meramente exemplificativos, sem embargos de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa.

[4] Neste artigo, o enfoque será apenas sobre casamento e união estável, embora não se ignore a família monoparental e os demais modelos implícitos de família.

[5] Op. Cit. p. 81.

[6] Capacidade (arts. 1517 a 1520, CC), inexistência de impedimentos e causas suspensivas (arts. 1521 a 1524, CC), regras sobre processo de habilitação (arts. 1525 a 1532, CC) e regras de celebração (arts. 1533 a 1542).

[7] Como afirma Conrado Paulino da Rosa (Op. Cit. p. 129), enquanto no casamento temos a presença de um procedimento rígido e formalista, na união estável, por outro lado, ela simplesmente “acontece”. Muitas vezes sequer existe a pergunta “quer morar comigo?”, afinal, a pessoa já está morando “contigo”.

[8] O dispositivo civil faz alusão à união estável entre homem e mulher. Mas, admite-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo por evolução jurisprudencial – ADI 4277 (Relator Min. Ayres Britto, DJ 14.10.2011) e ADPF 132 (Relator Min Ayres Britto, DJ 14.10.2011).

[9] Op. Cit. p. 128.

[10] No dizer de Rolf Madaleno (Direito de Família. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 1461), não há como estabelecer simetria entre o casamento e a união estável, embora se trate de institutos semelhantes, não são iguais, e suas reais diferenças não podem passar das idiossincrasias próprias de sua formação, onde pelo casamento, por sua absoluta formalidade para a sua constituição, assumem precedentemente os cônjuges, pública e formalmente, a sua relação, enquanto para a mútua convivência está reservada a completa ausência da intervenção estatal.

[11] “... § 5º As provas de união estável e de dependência econômica exigem início de prova material contemporânea dos fatos, produzido em período não superior a 24 (vinte e quatro) meses anterior à data do óbito ou do recolhimento à prisão do segurado, não admitida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, conforme disposto no regulamento”.

[12] Segundo Conrado Paulino da Rosa (Op. Cit., p. 134-135), embora não exista tempo mínimo para configuração enquanto entidade familiar, as circunstâncias do caso concreto deverão apresentar uma certa durabilidade no relacionamento para a proteção enquanto família.

[13] RESP 1761887/MS. Rel. Min. Luís Felipe Salomão, 4ª Turma, DJ 24.09.2019.

[14] Inclusive porque já existe uma penalização para relacionamentos de pouco tempo que é o fim da pensão vitalícia (art. 77, § 2º, V da Lei 8.213/91).

Sobre a autora
Silvia Resmini Grantham

Advogada. Professora de Direito Constitucional e Direito Previdenciário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GRANTHAM, Silvia Resmini. Casamento e união estável: encontros e desencontros entre direito de família e previdenciário (Regime Geral de Previdência Social). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6647, 12 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92980. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Texto produzido como avaliação em módulo da Pós-Graduação em Direito de Família e Sucessões da Fundação Superior do Ministério Público - FMP.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!