Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Aplicação da Lei Maria da Penha às transexuais

Agenda 16/05/2022 às 15:00

O crime contra a mulher trans é praticado no mesmo contexto cultural que conduziu o legislador a editar a Lei Maria da Penha, cuja premissa fundamental é o repúdio à violência doméstica e familiar, baseada no gênero.

Antes de falarmos propriamente sobre a aplicabilidade da Lei 11.340/2006 às transexuais, é importante tecermos alguns comentários sobre pontos importantes para este entendimento. Senão vejamos.

Sexo e Gênero

Sexo e gênero são termos distintos e não sinônimos, como alguns pensam.

Sexo condiz com a questão biológica, ou seja, define quem é homem e quem é mulher conforme as genitálias e as funções procriativas. Essas diferenças físicas constituem biologicamente a distinção entre macho e fêmea.

Por outro lado, o gênero diz respeito às questões sociais e culturais. E, a partir disso define-se se o indivíduo é homem ou mulher. Gênero é como a pessoa se vê, como ela quer ser reconhecida e como ela intenta se expressar, se relacionando com o interior do indivíduo.

Dessa forma, muitas vezes uma pessoa do sexo masculino não se enxerga como homem, mas sim como mulher, deseja se expressar como mulher, se vê como mulher. Então pode-se dizer que ela tem o gênero feminino, apesar de biologicamente ser do sexo masculino.

Transexualidade

A transexualidade não é uma doença ou distúrbio mas sim uma forma diferente de como a pessoa se vê, tem a ver com a identidade. Ou seja, a pessoa tem um corpo biológico e se identifica com o oposto. O gênero do transexual é diferente do seu sexo.

O transexual busca o reconhecimento pela sociedade da forma que ele se enxerga, mesmo que tenha biologicamente o sexo oposto ao que pretende ter reconhecido.

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O princípio da dignidade humana acoberta a proteção aos direitos humanos das mulheres, à sua integridade física, à sua moral e, o mais importante, à sua vida. O não reconhecimento da aplicação da Lei Maria da Penha a uma mulher transexual ensejará mais violência e discriminação, submetendo-as a intenso sofrimento e a uma vida indigna, o que é diferente do assegurado pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Princípio da Igualdade

A igualdade formal encontra-se presente no caput do art. 5º da Constituição Federal, que dispõe em sua redação que todos os indivíduos são iguais perante a Lei, sem exceção. Nesse sentido, a igualdade formal é a busca da própria lei em tratar as pessoas de forma igualitária. Por outro lado, ao falar em igualdade material, deve-se ter em mente que esta modalidade de igualdade é a materialização da igualdade formal, ou seja, é a igualdade que está descrita na lei sendo, de fato, aplicada ao caso concreto, no cotidiano das pessoas.

Em nome do princípio da isonomia, formal ou material, a Lei Maria da Penha pode e deve ser aplicada às mulheres transexuais, a fim de frustrar toda e qualquer forma de discriminação, mantendo um tratamento igualitário entre os indivíduos inseridos na sociedade, para que o Estado Democrático de Direito possa permanecer intacto.

Decisões Judiciais

As decisões judiciais não têm sido uníssonas no que tange à aplicação da Lei 11.340/2006 às transexuais. Mas o que percebe-se é que as decisões dos Tribunais têm se multiplicado em aplicar a Lei 11.340/2006 às transexuais, sendo suficiente a autodeclaração do gênero feminino, independente de ter se submetido à ablação do órgão genital ou alteração no registro civil. Importante salientar também que a violência sofrida deve se configurar em razão da condição de vulnerabilidade em razão da discriminação focada na identidade do gênero feminino no âmbito das relações domésticas, familiares e afetivas.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, em uma decisão proferida pela 10ª Câmara de Direito Criminal, sustentou a impossibilidade de se equiparar juridicamente uma transexual feminino a uma mulher. Então, o Ministério Público de São Paulo recorreu ao Superior Tribunal de Justiça em sede de Recurso Especial (1977124/SP), o que vai gerar jurisprudência nova sobre o tema. O processo é o de número 1500028-93.2021.8.26.0312.

A Associação Paulista dos Magistrados entende que a lei 11.340/2006 é aplicável a toda mulher cis (que se identifica com o gênero atribuído ao nascer) ou trans.

Nesse sentido, também tem o Enunciado 46 do FONAVID (Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher):

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A Lei Maria da Penha se aplica às mulheres trans, independentemente de alteração registral do nome e de cirurgia de redesignação sexual, sempre que configuradas as hipóteses do artigo 5º, da Lei 11.340/2006.

Vejamos algumas dessas decisões:

CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. Ação praticada contra travesti. Vítima do sexo masculino que se identifica como mulher, ostentando nome social feminino. Violência perpetrada no âmbito doméstico e baseada no gênero e vulnerabilidade da vítima. Incidência do artigo 5º, inciso II, da Lei 11.340/06. Conflito julgado procedente. Competência do Juízo da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Foro Regional de São Miguel Paulista, ora suscitado. (TJSP; Conflito de Jurisdição 0032035-86.2018.8.26.000; Relatora: Issa Ahmed; Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional VII Itaquera Vara do Juizado Especial Criminal; Data do Julgamento: 08/04/2019; Data de Registro: 10/04/2019)[1]

CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. Ação penal para apuração do crime previsto no art. 129, par. 9º., do CP. Delito supostamente praticado contra transexual. Vítima do sexo masculino que se identifica como mulher, ostentando nome social feminino. Elementos que indicam motivação do gênero no cometimento do crime, no âmbito doméstico. Desigualdade a ser amparada pela legislação especial. Inteligência dos art. 5º da lei nº 11.340/06. Precedentes. CONFLITO PROCEDENTE. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO. (TJSP; Conflito de Jurisdição 0052110-15.2019.8.26.0000; Relator: Sulaiman Miguel; Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Central Criminal Barra Funda 27ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 15/12/2020; Data de Registro: 15/05/2020) [2]

APELAÇÃO CRIMINAL Pleito de deferimento de medidas protetivas de urgência Requerimento inicial indeferido pelo Magistrado a quo em razão da ilegitimidade ativa e da incompetência do Juízo da Vara de Violência Doméstica. Vítima transexual Medidas concedidas durante o trâmite recursal. Perda superveniente do objeto Recurso prejudicado. (TJSP; Apelação Criminal 1520593-59.2019.8.26.0050; Relator Gilberto Ferreira da Cruz; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Criminal; Foro Central Criminal Barra Funda Vara Foro Cent. de Viol. Dom. e Fam. Cont. Mulher; Data do Julgamento: 10/07/2020; Data de Registro: 10/07/2020)[3]

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO CONTRA DECISÃO DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. DECLINAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA VARA CRIMINAL COMUM. INADMISSÃO DA TUTELA DA LEI MARIA DA PENHA. AGRESSÃO DE TRANSEXUAL FEMININO NÃO SUBMETIDA A CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL (CRS). PENDÊNCIA DE RESOLUÇÃO DE AÇÃO CÍVEL PARA RETIFICAÇÃO DE PRENOME NO REGISTRO PÚBLICO. IRRELEVÂNCIA. CONCEITO EXTENSIVO DE VIOLÊNCIA BASEADA NO GÊNERO FEMININO. DECISÃO REFORMADA. () 2. O gênero feminino decorre da liberdade de autodeterminação individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que adota, pela forma como se comporta, se veste e se identifica como pessoa. A alteração do registro de identidade ou a cirurgia de transgenitalização são apenas opções disponíveis para que exerça de forma plena e sem constrangimentos essa liberdade de escolha. Não se trata de condicionantes para que seja considerada mulher. 3. Não há analogia in malam partem ao se considerar mulher a vítima transexual feminina, considerando que o gênero é um construto primordialmente social e não apenas biológico. Identificando-se e sendo identificada como mulher, a vítima passa a carregar consigo estereótipos seculares de submissão e vulnerabilidade, os quais sobressaem no relacionamento com seu agressor e justificam a aplicação da Lei Maria da Penha à hipótese. Recurso provido, determinando-se prosseguimento do feito no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com aplicação da Lei Maria da Penha. (TJDFT, 20171610076127RSE, Relator George Lopes, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 05/04/2018, Publicado no DJE 20/04/2018, pág. 119/125)[4]

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. APLICAÇÃO DA LEI 11.340/06 (MARIA DA PENHA). VÍTIMA TRANSEXUAL. APLICAÇÃO INDEPENDENTE DE ALTERAÇÃO DO REGISTRO CIVIL. COMPETÊNCIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. RECURSO PROVIDO. 1. Diante da alteração sexual, comportando-se a recorrida como mulher e assim assumindo seu papel na sociedade, sendo dessa forma admitida e reconhecida, a alteração do seu registro civil representa apenas mais um mecanismo de expressão e exercício pleno do gênero feminino pelo qual optou, não podendo representar um empecilho para o exercício de direitos que lhes são legalmente previstos. Recurso provido. (TJDFT, 20181610013827RSE, Relator Silvanio Barbosa dos Santos, 2ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 14/02/2019, Publicado no DJE:20/02/2019, pág. 179/197) [5]

Projeto de Lei

O projeto de lei 8032/14[6] amplia a proteção de que trata a Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha às pessoas transexuais e transgêneros.

Por meio desse projeto, a redação da Lei 11.340/2006 passaria a ser a seguinte:

Art. 1º Esta lei amplia a proteção de que trata a Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha às pessoas transexuais e transgêneros.

Art. 2º O parágrafo único, do art. 5º da Lei 11.340/, de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 5º Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual e se aplicam às pessoas transexuais e transgêneros que se identifiquem como mulheres.

Dessa forma, o Projeto de Lei 8.032/2014 realizaria uma adequação da realidade social, ampliando a proteção às transexuais.

Interpretação da Lei Maria da Penha para Aplicação aos Transexuais

Entende-se, pela Lei 11.340/2006, que a sua aplicação às mulheres transgêneros é perfeitamente possível. Isso porque, a redação do artigo 5º, caput, do diploma legal em comento, é clara ao mencionar que a Lei protegerá o gênero Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: ()

Nesse artigo podemos ver que trata de gênero, incluindo aí o gênero feminino como um todo, abrangendo as mulheres transexuais.

Já o artigo 2º, Lei 11.340/2006 reza que: Toda mulher, independente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Já esse artigo trata somente de mulher, levando-se a entender somente mulher no sentido biológico, então estariam excluídas as mulheres transexuais. Há que se falar aqui em um erro material.

A Lei 11.340/2006 visa punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher, em razão do gênero feminino e não simplesmente do sexo feminino.

Importante salientar que há uma divergência na aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais e o Poder Judiciário, discricionariamente, tem decidido sobre a questão, o que pode gerar uma insegurança jurídica.

Portanto, é necessária uma interpretação ampla a fim de se considerar a aplicação da Lei 11.340/2006 às mulheres transgêneros, a fim de que sejam cumpridas a adequação social, igualdade e segurança jurídica.

Decisão do Superior Tribunal de Justiça

A Sexta Turma do STJ, decidiu em 05/04/2022 que a Lei 11.340/2006 pode ser aplicada para a proteção de mulheres transexuais. A decisão vale somente para o caso julgado no Recurso Especial 1977124/SP. No entanto, tal decisão pode abrir precedente para outros casos que versem sobre o mesmo assunto no Judiciário, o que vai findar com a insegurança jurídica que existia.

Nesse caso, citado anteriormente, a vítima foi agredida pelo pai que chegou alcoolizado em casa e que não aceitava a condição de transexual da filha. O Ministério Público do Estado de São Paulo pediu o afastamento do lar do pai. Em primeira instância, foram negadas as cautelares penais, reconhecendo que a Lei Maria da Penha aplica-se somente às mulheres, no sentido biológico. O Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a decisão.

Foi o primeiro caso que a Corte do Superior Tribunal de Justiça enfrentou sobre essa matéria.

O julgamento foi fundamentado na questão de que sexo biológico é diferente de gênero e deve ser feita a interpretação do artigo 5º da Lei 11.340/2006, abrangendo todo o gênero feminino, incluindo-se mulheres transexuais. Conforme ressaltado no julgamento, o sexo diz respeito aos aspectos biológicos e o gênero trata sobre um conjunto de características e construções sociais, assim relaciona-se com o aspecto cultural.

O ministro Rogério Schietti destacou que a aplicação da Lei deve ser estendida às mulheres transgêneros que se definem e se identificam como mulheres. E o crime foi praticado por um pai em uma relação de domínio, de opressão com o comportamento da filha transgênero, o que torna possível a aplicação da Lei Maria da Penha. [7]

A Ministra Laurita Vaz ponderou que a discriminação é de gênero. A mulher trans é agredida, em regra, especificamente por sua condição de mulher. O crime contra a mulher trans é praticado no mesmo contexto cultural que conduziu o legislador a editar a Lei Maria da Penha, cuja premissa fundamental é o repúdio à violência doméstica e familiar, baseada no gênero. [8]

A Subprocuradora-Geral Raquel Dodge ressaltou a ADI 4275 do Supremo Tribunal Federal, em que o Ministro Alexandre de Moraes afirma que: Os transexuais são pessoas que se identificam com o gênero oposto ao seu sexo biológico. Homens que acreditam e se comportam como se fossem mulheres e vice-versa. Tal identificação gera um desconforto ou sentimento de inadequação ao próprio corpo com sofrimento significativo e um desejo de viver e de ser aceito como pessoa pertencente ao próprio sexo. Esta Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, serviu de apoio para a análise e julgamento do caso em questão, segundo a Subprocuradora-Geral.[9]

Conclui-se que não obstante a decisão do Superior Tribunal de Justiça não ser aplicável a todos os casos semelhantes em discussão no Judiciário, a tendência é que haja uma pacificação sobre o assunto e a redução da insegurança jurídica existente.


  1. SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Conflito de Jurisdição 0032035-86.2018.8.26.000. Relatora Issa Ahmed. 08 de abril de 2019. Disponível em <http://www.tjsp.jus.br>. Acesso: 03/01/2022.
  2. SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Conflito de Jurisdição 0052110-15.2019.8.26.0000. Relator Sulaiman Miguel. 15 de dezembro de 2020. Disponível em <http://www.tjsp.jus.br>. Acesso em 03/01/2022.
  3. SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Criminal 1520593-59.2019.8.26.0050. Relator Gilberto Ferreira da Cruz. 10 de julho de 2020. Disponível em <http://www.tjsp.jus.br>. Acesso em 03/01/2022.
  4. DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça. RSE20171610076127. Relator George Lopes. 05 de abril de 2018. Disponível em <http://www.tjdft.jus.br>. Acesso em 03/01/2022.
  5. DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça. RSE2018161001382. Relator Silvanio Barbosa dos Santos. 14 de fevereiro de 2019. Disponível em<http://www.tjdft.jus.br>. Acesso em 03/01/2022.
  6. BRASIL. Projeto de Lei nº 8.032. 21 de outubro de 2014. Disponível em <http://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=623761
  7. Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 07/04/2022.
  8. Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 07/04/2022.
  9. Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 07/04/2022.
Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Taiana Alves Monteiro. Aplicação da Lei Maria da Penha às transexuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6893, 16 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97193. Acesso em: 21 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!