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Sentença com absolvição por falta de culpabilidade.

Determina internamento compulsório ou outro tratamento ambulatorial

Agenda 01/07/2012 às 14:19

Deve ser evitada ao máximo a interferência do controle penal em ações de saúde individual, devendo aqui prevalecer o princípio antimanicomial e também os da fragmentariedade e da ofensividade.

Explicação: A sentença abaixo foi prolatada em razão de uma decisão da Auditoria Militar do Rio Grande do Norte. O caso refere-se a uma absolvição imprópria, porém não houve aplicação automática de medida de segurança, mesmo tendo sido considerada ainimputabilidade absoluta. O destaque é que se fez a aplicação da Lei de Reforma Psiquiátrica (Lei n. 10.216/01) aos inimputáveis autores de injusto penal, ou seja, considerou-se que não deveria haver a aplicação obrigatória de medida de segurança, apenas com base nos preceitos da lei penal. Na situação, deu-se voz ao princípio antimanicomial, de modo que a aplicação de alguma medida somente ocorrerá em caso de necessidade concreta. Assim, não se acolheu a hipótese legal de periculosidade presumida, entendendo que a lei penal  deve ser compreendida à luz dos preceitos que norteiam a mínima intervenção penal.


ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

PODER JUDICIÁRIO – COMARCA DE NATAL

SENTENÇA

EM AUDIÊNCIA

INIMPUTABILIDADE. FATO TÍPICO E ANTIJURÍDICO. INJUSTO PENAL. INTEIRA INCAPACIDADE DE ENTENDER SEU CARÁTER ILÍCITO OU DE DETERMINAR-SE DE ACORDO COM ESSE ENTENDIMENTO. ABSOLVIÇÃO.

Provado que o agente, por doença mental, era, ao tempo da ação, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, forçosa a sua absolvição, em razão de causa isentiva de pena.

MEDIDA DE SEGURANÇA. INIMPUTABILIDADE ABSOLUTA. APLICAÇÃO DA LEI N. 10.216/01. INTERNAMENTO COMPULSÓRIO OU OUTRO TRATAMENTE AMBULATORIAL. PRINCÍPIO ANTIMANICOMIAL. NECESSIDADE A SER AFERIDA POR PERÍCIA MÉDICA.

Para com os inimputáveis, a periculosidade presumida pela lei penalrestou revogada pela Lei n. 10.216/01, devendo o juiz deixar à perícia médica a efetiva necessidade de internamento ou tratamento ambulatorial.


Vistos etc.

Imputam-se ao acusado as condutas dos arts. 305 (concussão), 312 (falsidade ideológica), 319 (prevaricação) e 324 (inobservância de lei, regulamento ou instrução), todos do Código Penal Militar, conforme descrição na denúncia.

Instaurado e homologado o incidente de insanidade mental (fls. ), cujo procedimento segue apenso aos autos principais.

Decretou-se medida de recolhimento domiciliar cautelar (fls. ).

Apresentou-se defesa prévia (fls. ).

O acusado foi interrogado em juízo (fls. ).

Conforme está registrado em meio audiovisual, as partes ofertaram alegações durante a sessão de julgamento.

O Ministério Público pediu a absolvição, ante a comprovação da inimputabilidade pela insanidade mental. O Ministério Público destaca que o laudo pericial não indicou se há necessidade de um internamento.

A Defesa reforça que o acusado sofre de perseguição e que de fato tinha realizado o curso de formação de sargento, faltando apenas a publicação no BG. Nega o uso de papel timbrado, sustentando que não havia estruturas na delegacia. Reforça que o acusado tinha um projeto social de ressocialização, não havendo em momento algum a prática de crimes capitulados na denúncia. Afasta a periculosidade do denunciado e alega que a sua saúde mental está devidamente comprovada, fundando que ele pode completamente conviver em sociedade.

O Conselho votou, à unanimidade, pela absolvição imprópria, em harmonia com o voto do juiz auditor, deixando que a medida de segurança seja determina conforme perícia médica que ateste a efetiva necessidade do tratamento a ser aplicado ao sentenciado.

Esse é o relatório.

Decido.


MOTIVAÇÃO

A fundamentação dos votos dos oficiais consta de gravação audiovisual. Também integram os fundamentos desta sentença as razões apresentadas quando do voto oral deste juiz, que se encontra gravado em meio audiovisual.


DA ABSOLVIÇÃO POR INIMPUTABILIDADE

Examinado o caso dos autos, verifica-se que a autoria e materialidade delitiva restaram satisfatoriamente provadas, não havendo prova de ocorrência de qualquer causa justificante.

Neste sentido seguiu a prova, demonstrando que houve prova da conduta típica e ilícita (injusto penal).

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Analisemos a prova.

Uma vez demonstra a autoria de uma conduta típica e ilícita, resta ainda concluir que a prova técnica demonstrou a condição de inimputabilidade, excluindo-se assim um dos requisitos de culpabilidade.

Apenso ao primeiro volume, o Incidente de Insanidade Mental do acusado é conclusivo no diagnóstico do paciente, em doença mental catalogada na CID-10 como F20.0 – ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE, fls. 19. Com relação ao estado do paciente à época dos fatos, atesta categoricamente que: “...o indiciado ou acusado era e é inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato que cometeu e de determinar-se de acordo com esse entendimento”, letra “c”.

O incidente de insanidade atestou que ele tempo da ação era inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (fls.).

De acordo com a regra do Código Penal Militar, 48, não é imputável quem, no momento da ação ou da omissão, não possui a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, em virtude de doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou retardado.

Uma vez provado por laudo pericial que o agente, ao tempo da ação, possuía doença mental que o impedia de compreender o caráter ilícito do ato, deve ser declarada a sua inimputabilidade.

Embora demonstrados a tipicidade e antijuridicidade da conduta inculpada ao denunciado, a ocorrência da causa de exclusão de culpabilidade, ordena a sua absolvição, aplicando-se medida de segurança.


DA APLICAÇÃO DA LEI DE REFORMA PSIQUIÁTRICA

Cabe fazer uma ligeira digressão sobre o atual sistema de proteção ao deficiente mental. O sistema legal não mais admite a aplicação obrigatória de medida de segurança.

Dessa forma, com o advento da Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, a primeira parte do art. 97, do Código Penal, restou parcialmente revogado. Ao dispor “sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais”, a Lei nº 10.216/01 determina que (art. 4º) a “internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”.

No sistema do Código Penal, para com os inimputáveis, a periculosidade era presumida (JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1997, vol. I, p. 537). Somente cabia ao juiz verificar o seu grau de intensidade e determinar o prazo mínimo de internação.

A Lei nº 10.216/01 dispõe ao contrário. Inovou ao prever que o internamento, compulsório ou não, “só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” (art. 4º). Embora a regra do art. 9º, da Lei nº 10.216/01, exprima que a internação compulsória seja determinada nos termos da legislação vigente, consentindo margem para entender-se pela vigência da legislação penal, o interprete não poderá limitar-se ao texto deste artigo, mas, para construir a norma, precisa combiná-lo com a regra do art. 4º., do texto normativo, que inaugura um avanço em nosso regulamento.

O internamento ou a aplicação de qualquer medida de segurança compulsória deixa de ser uma regra para ser uma exceção. Portanto, não mais se deve dar continuidade ao entendimento de que “em se tratando de inimputável, o juiz do processo de conhecimento, ao reconhecer essa condição e absolver o réu, não tem outra alternativa senão aplicar medida de segurança obrigatória da internação” (TJSP, AC. 107.700. Apud FRANCO, Alberto Silva et al. “Código Penal e sua interpretação jurisprudencial”. 6ª ed., São Paulo: RT, 1997, vol. I, tomo 1, p. 1469).

A interpretação da lei penalnão mais comporta leitura como essas.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que entrou no ordenamento pátrio desde 09 de novembro de 1992, extirpou do ordenamento pátrio toda e qualquer forma de recolhimento automático, não importando que seja decorrente de sanção-pena ou sanção-medida de segurança.

Com o advento da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216/01), não há dúvida de que a medida de segurança, embora não seja constitucionalmente considerada pena (art. 5º., XLVI), perde o efeito compulsório que lhe dera a lei penal.

A citada Convenção determina que “toda pessoa tem direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral” (art. 5º., n. 1). A aplicação de medida de segurança, com a imposição compulsória do internamento fundado apenas na determinação legal, viola os princípios da proporcionalidade e da fundamentação, por empregar regime de exceção legal sem motivação ou adequação da medida de segurança ao caso concreto (art. 93, IX, CF/88).

Como entendemos que, a partir da Lei nº 10.216/01, o internamento ou a aplicação de qualquer medida de segurança compulsória deve ser fundamentado, afasta-se qualquer possibilidade de presunção de periculosidade ou inferência desta pelo tipo penal imputada ao agente.

Portanto, não havendo indicação pericial da necessidade de imposição imediata de qualquer medida de segurança ou de existência de periculosidade, entendo que o tratamento médico deve ser determinado por perícia médica, mas sem estipular um prazo mínimo.

Ou seja, deve haver uma avaliação interna para determinar qual o melhor tratamento a ser aplicado ao paciente, mediante perícia médica, realizável em prazo razoável, em até 60 dias, para especificar se o sentenciado será ser submetido a internamento ou a outra medida não detentiva.

Para tanto, considero, para efeito desta decisão, o tempo de medida cautelar domiciliar já cumprida pelo sentenciado. Logo, devemos ter em mente o que dispõe o art. 116, Código Penal Militar, segundo o qual o exílio local consiste na proibição de que o sentenciado “resida ou permaneça, durante um ano, pelo menos, na localidade, município ou comarca em que o crime foi praticado”.

Na situação, considerando que o sentenciado já passou mais de ano em asilo domiciliar cautelar, razão pela qual deixo de especificar outra medida de segurança, ficando para a perícia médica determinar qual o tratamento adequado a sua condição no momento atual.

Dessa forma, deve ficar claro que deixo de aplicar medida de segurança específica, tomando como referência os princípios que norteiam o movimento antimanicomial, de modo que seja evitado ao máximo a interferência do controle penal em ações de saúde individual, devendo aqui prevalecer o princípio antimanicomial e também os da fragmentariedade e da ofensividade.

O princípio do movimento antimanicomial, consagrado a partir daLei da Reforma Psiquiátrica, precisa ser aplicada em sua integridade, ou seja, precisa se estender também aos penalmente sentenciados. Isso significa dizer que não deve ser estimulado modelo penal clássico de incentivo à internação ou qualquer outra forma de imposição obrigatória de medida de segurança em prejuízo dos princípios voltados à despenalização e à desinstitucionalização.

A política de saúde mental instituída pela Lei n. 10.216/01 deve então se aplicar ao doente mental infrator, superando os dogmas clássicos da lei penal. Numa visão crítica, a internação ou a aplicação de outras medidas de segurança não devem ficar exclusivamente a critério legal, mas apenas condicionadas às reais necessidades individuais de tratamento, a serem observadas no momento exato da execução da medida de segurança, sem prejuízo de imposição de medidas cautelares.

Na lei penal, comum ou militar, a periculosidade deve deixar de ser presumida, em razão de que não mais se justifica a imposição de prazos mínimosde internamento.

Seguindo essa linha crítica, defende Carmen Silvia de Moraes Barros o seguinte:

“Assim é, porque a lei da reforma psiquiátrica assegura os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, sem qualquer forma de discriminação.

E mais, estabelece a Lei n. 10.216/2001 que a internação, em qualquer de suas modalidades, “só será autorizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize seus motivos”; “só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” e o tratamento terá a finalidade permanente de inserir o paciente em seu meio – ou seja, sua duração será a mínima possível (arts. 6º e 4º).

Portanto, não há mais que se falar em internação atrelada às disposições do Código Penal. Em termos penais, é de se afirmar que o tratamento compulsório, através da internação, só se sustenta eticamente se for absolutamente indispensável e que não é mais admissível que o juiz estabeleça o tratamento indicado ao paciente. Ao juiz compete, constatada a doença mental, oferecer o tratamento adequado de acordo com a indicação de equipe de saúde (multidisciplinar)” (Aplicação da Reforma Psiquiátrica e da Política de Saúde Mental ao Louco Infrator. In: BORGES, Paulo César Corrêa (Org.). Marcadores sociais da diferença e repressão penal.São Paulo: NETPDH; Cultura Acadêmica Editora, 2011, p. 215).

O tratamento do doente mental infrator não mais compete à lei penal, abstratamente considerada, mas deve ser focado numa perspectiva fragmentária e à luz da ofensividade, pautando-sea decisão judicial pela ótica exclusiva da saúde pública.


DISPOSITIVO

PELO EXPOSTO, provado que S.T.S.A, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, ABSOLVO-O IMPROPRIAMENTE.

PELO EXPOSTO, considerando que o sentenciado já cumpriu medida cautelar de asilo domiciliar superior a um ano, determino que, após o trânsito em julgado, seja determinado perícia para especificar o tratamento psiquiátrico adequado, internamento ou tratamento ambulatorial, de acordo com a averiguação concreta de sua periculosidade e condições de receber medidas não interventivas, tudo mediante perícia médica, que deverá ser avaliada e considerada pelo Juiz da Execução na forma do art. 4º., da Lei nº 10.216/01.


Da concessão do direito de recorrer em liberdade

Considerando o tempo de internamento cautelar determinado e o teor desta decisão quanto à desnecessidade de imediato internamento, não mantenho os efeitos da medida cautelar, em razão de que lhe concedo o direito de recorrer em liberdade.


Disposições finais

Cumpram-se as seguintes diligências:

Publicações e intimações em audiência.

Após o trânsito em julgado,expeça-se guia de recolhimento, enviando cópia à Vara de Execuções.

Remeta-se a folha individual à Secretaria de Segurança Pública.

Custas pelo Estado.

Natal, terça-feira, 26 de junho de 2012

Fábio Wellington Ataíde Alves

Juiz de Direito

Sobre o autor
Fábio Wellington Ataíde Alves

juiz de Direito, especialista e mestrando em Natal (RN), Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Fábio Wellington Ataíde. Sentença com absolvição por falta de culpabilidade.: Determina internamento compulsório ou outro tratamento ambulatorial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3287, 1 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/22126. Acesso em: 24 nov. 2024.

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